terça-feira, 23 de janeiro de 2024

OS REJEITADOS, AS BESTAS e SERVIDÃO

Antonio Carlos Egypto

 


OS REJEITADOS (The Holdovers).  EUA, 2023.  Direção: Alexander Payne.  Elenco: Paul Giamatti, Dominic Sessa, Da’vine Joy Randolph, Carrie Preston.  134 min.

 

“Os Rejeitados” trata da questão educacional em forma de comédia, buscando uma reflexão bastante interessante sobre a humanização do processo de ensino-aprendizagem e especialmente das estruturas escolares.  O contexto é o de um internato nos anos 1970, no interior dos Estados Unidos, em que alguns alunos devem permanecer durante o período de festas natalinas e de ano novo, com um dos professores que deve acompanhá-los didaticamente e como protetor.  Os alunos, por razões de desempenho ou de família, são os rejeitados.  O professor, igualmente, foi escolhido como uma espécie de punição, já que é bastante impopular, tanto junto aos alunos quanto junto ao corpo docente.  Somente a cozinheira-chefe da escola, que os acompanhará, está em situação distinta, vivendo um luto pela perda do filho jovem na guerra do Vietnã.  No final das contas, a trama afunila para o professor, um aluno dito problemático e a cozinheira.  É a partir daí que o universo escolar, seus julgamentos, avaliações e a relevância do que ensina serão postos em cheque.  No começo, tudo parece um tanto caricato, antiquado e valendo-se de clichês.  Mas, com a evolução dos fatos, as coisas vão mudando substancialmente e nos trazem para a vida real das pessoas e para além dos papéis, das diferenças de status, de geração, de gênero, de raça ou de classe.  Aí, sim, “Os Rejeitados” ganha musculatura e reveste-se de humanismo.  O diretor, Alexander Payne, de “Nebraska” (2013), parece pôr todos os obstáculos e dificuldades à frente do que é essencial e que se revelará depois de muita água passando pela ponte, Em “Nebraska” a estrutura é semelhante. Mas o encanto acontece, nos dois casos.  O elenco de “Os Rejeitados” tem o ótimo Paul Giamatti no papel do professor Paul Hunham e se mostra um livro aberto no que toca à vida do seu personagem e de suas emoções, embora acredite que engana seus alunos e convivas em geral.  Dominque Sessa faz o personagem Angus, o aluno problema que, na verdade, é ativo, inteligente, perspicaz e rebelde, no caso com causa.  O ator é muito bom, embora seja mais velho do que o papel que pretende representar. Tanto que a gente estranha quando lhe é negado o direito à bebida alcoólica, por ser menor de 18 anos.  Da’vine Joy Randolph é outro grande destaque do filme. Ela faz Mary Lamb, a cozinheira boa gente, com expressividade, na medida certa para cada cena.  E é bastante exigida emocionalmente, em todas as variações de sua participação na trama.  O filme é um dos  indicados ao Oscar 2024.

 

Também estão entrando em cartaz nos cinemas dois outros filmes que vale a pena mencionar.




AS BESTAS, filme espanhol, de 2022, premiado com Goyas, dirigido por Rodrigo Sorogoyen, é um drama e suspense que traz um ponto de partida provocador. Um casal de franceses maduros, por circunstâncias aleatórias, decide se estabelecer como agricultores orgânicos numa aldeia espanhola.  Com toda a boa intenção do mundo e em busca de paz e concórdia.  Mas encontra o oposto: hostilidade e guerra.  Ocorre que os objetivos deles colidem com as expectativas da comunidade, que deseja obter dinheiro suficiente para partir dali, deixando o espaço para os aparatos da energia eólica.  Compreensível e politicamente aceitável, claro.  Em todo caso, a evolução da história será, como já seria presumível de imediato, trágica. E a segunda parte do filme surpreende pela ruptura que produz.  No entanto, um elemento de cena, a filmagem para registrar agressões, denunciar e se proteger perante a lei, antecipa o que esperar do final, irremediavelmente.  Bem previsível, mas não tira o prazer de usufruir do filme.  Elenco: Denis Ménochet, Marina Fois, Luís Zahera, Diego Anido, Marie Colomb.  137 min.

 


E, por fim, um documentário brasileiro que merece nossa atenção pelo que revela de forma muito clara: a abolição da escravidão ainda não se processou de fato, embora tenha sido formalmente decidida ainda no século XIX.  SERVIDÃO, dirigido por Renato Barbieri, mostra condições de trabalho análogas à escravidão existindo fartamente no Brasil do século XXI.  Apesar de contar com uma legislação adequada e moderna sobre o tema, a realidade no campo e na cidade, na Amazônia e no Brasil profundo como um todo, revela as pessoas vivendo sob o jugo de uma mentalidade colonial, escravista, opressora e exploradora.  Alimentada por grilagens, pelo grande latifúndio e por mecanismos políticos e econômicos que a perpetuam.  O filme também trata dos caminhos de resistência e mudança que existem em torno desse assunto.  Narração da artista Negra Li.  73 min.






sábado, 20 de janeiro de 2024

VIDAS PASSADAS

Antonio Carlos Egypto

 




VIDAS PASSADAS (Past Lives).  Coreia do Sul, 2023.  Direção e roteiro: Celine Song.  Elenco: Greta Lee, Teo Yoo, John Magaro, Seung Ah Moon, Leem Seung Min. 105 min.

 

“Vidas Passadas” começa nos mostrando duas crianças, encantadas uma com a outra, inseparáveis, a menina Na Young (Seung Ah Moon) e o menino Hae Seung (Leem Seung Min).  Isso há 24 anos atrás, quando a família dela se muda da Coreia do Sul, enquanto ele permanece lá. O filme irá explorar ao longo do tempo o que acontece com uma conexão tão forte quanto essa.  Partindo do pressuposto, como nos explica ela quando adulta, de que existe o In-Yun, um laço que une as pessoas porque esse vínculo já existia, já veio de vidas passadas.  Essa crença dá à história um sabor de originalidade, um plus que sofistica um amor que sempre teria existido, por isso pode ser reativado muitos anos depois.

 



Com efeito, buscas na Internet possibilitam um encontro virtual entre eles, 12 anos depois da separação, enquanto crianças, quando Na Young já vive em Nova York, desenvolvendo uma carreira literária e adotando lá o nome de Nora (Greta Lee).   Ela está casada com o norte-americano Arthur (John Magaro).  Passam-se mais 12 anos, até que Hae Seung (Teo Yoo) resolva ir pessoalmente a Nova York, para ver Nora.  Como esse vínculo se manifestará agora?

 

O que o filme da diretora e também roteirista Celine Song desenvolve é uma capacidade de dizer muito com muito pouco, explorando olhares, silêncios, ambiguidades.  Tudo com muita sutileza, tanto nos desempenhos dos atores e atrizes, ótimos, quanto na trilha sonora leve e na fotografia que dispensa cores fortes ou muita luminosidade.  Tudo isso num romance em meios tons, sem arroubos ou expressões emocionais intensas.  De um modo oriental.  Ou, quem sabe, mesmo coreano.  Nora explica para Arthur como é Hae Seung, dizendo que ele tem uma virilidade bem coreana.  E dá para entender, vendo o personagem agir com educação, cuidado, respeito pelas pessoas, sem sinais de grossura ou agressividade, mesmo contrariado.  Nora é uma figura de mulher forte, decidida, ambiciosa, mas, ao mesmo tempo, doce, acolhedora, delicada. 

 

Com essas características creio que já dá para ver que “Vidas Passadas” consegue fisgar o espectador, deixando sempre uma dúvida no ar.  Observar a forma como cada personagem lida com as situações, e ao longo do tempo, é um exercício muito interessante a se fazer, enquanto o filme rola.  Incluindo o não-oriental Arthur, o marido de Nora.

 

“Vidas Passadas” é um dos concorrentes ao Oscar.  Seu maior triunfo, em tempos de muita ação, super-heróis e todo tipo de excessos, é essa capacidade de ser envolvente com sutileza.

 


 


 

CINEMA FANTÁSTICO BRASILEIRO 100 filmes essenciais

Esta é a capa de um novo livro da Abraccine, organizado por Gabriel Carneiro e Paulo Henrique Silva, que está sendo lançado amanhã (21/01/2024) na 27ª. Mostra de Cinema de Tiradentes, MG. Em breve ele será lançado em São Paulo e em vários outros estados brasileiros. Eu participo dele com uma crítica do filme “O Auto da Compadecida”. Voltarei ao assunto em breve.



quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

MAL VIVER

Antonio Carlos Egypto 



MAL VIVER.  Portugal, 2023.  Direção: João Canijo.  Elenco: Anabela Moreira, Rita Blanco, Madalena Almeida, Cléia Almeida, Vera Barreto.  127 min.

 

A família é vista como um ambiente de acolhimento, afetividade e apoio para os seus membros.  Idealmente falando, é claro.  Porque na família podem se dar os grandes confrontos, rejeições e opressões.  Nelson Rodrigues foi pródigo em mostrar isso nas suas peças teatrais.  Pois bem, “Mal Viver”, o filme do cineasta português João Canizo, foca neste lado negativo da família.  Em especial, nas relações mãe e filha.

 

Mostra uma família vivendo num hotel de propriedade de Sara (Rita Blanco), mãe de Piedade (Anabela Moreira), cujas relações são péssimas.  Sara acusa Piedade de incompetência, incapacidade de tocar a própria vida e teme por ela, se vier a morrer.  Acusa a filha de não assumir, rejeitar, a neta, a jovem Salomé (Madalena Almeida).  Salomé apareceu de surpresa  após a morte do pai, com quem vivia.  Isso incomodou muito Piedade, que não a esperava, nem desejava que viesse.  Mas assim como Piedade não ama Salomé, está claro que Sara não ama Piedade.

 

Outras mulheres da família participam desse clima no hotel, e uma família de hóspedes aparece, com a mãe e a filha às turras.  Ou seja, mães que não amam suas filhas e, por consequência, filhas que não respeitam as mães, tornam todo o ambiente muito sofrido e doloroso.  Essa é uma boa palavra, o filme de João Canijo é doloroso, difícil de assistir por esse aspecto.

 

No entanto, é um belo filme do ponto de vista do seu visual e também em relação aos tempos e ao clima que revela.  A locação no hotel permite circular por ambientes bonitos, bem cuidados, com boa comida.  Piscina ao ar livre no alto da montanha, desvelando uma paisagem atraente.  Mais do que isso: o diretor explora muito bem as luzes, os reflexos, as vidraças que se antepõem, os caminhos internos, em belos enquadramentos. E nos ambientes externos também.

 


Um ritmo lento ajuda a compor um clima pesado, hostil, seco, com muita competência.  A incapacidade de Piedade em acariciar os cabelos de Salomé quando ela se deita ao seu lado, é algo que repugna, mas mostra a que ponto pode chegar a ausência do afeto maternal.  Isso é ainda mais grave quando contrastado com a pequena cadela que Piedade carrega, mima e procura desesperadamente quando ela some.

 

Um ambiente de mulheres marcado pela crueldade nas relações tem algo de desesperador.  As mulheres são associadas à sua capacidade de cuidar e de serem acolhedoras, na maioria das vezes.  Aqui, não.  Quando os homens já estão ausentes, porque sumiram ou morreram, o que ficou foi a hostilidade entre elas.   “Mal Viver” não dá trégua nesta triste constatação.  Há choro e ranger de dentes, mas não há redenção, nem reparação.  É angustiante esse jeito de mal viver.  Porém, é real, incomoda, mas existe.

 

O diretor João Canijo mostra talento e tem seu filme reconhecido, venceu o Urso de Prata, em Berlim, pelo Juri. Vem de uma grande escola de cinema.  Foi assistente de Manoel de Oliveira, Wim Wenders, Alain Tanner e Werner Schroeter.  “Mal Viver” se relaciona com outro filme dele, que ainda não vi, mas que chegará aos cinemas logo em seguida: “Viver Mal”.  Pelo jeito, tem mais crueldade por aí.

 

 

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

PARE COM SUAS MENTIRAS

Antonio Carlos Egypto

 

 


PARE COM SUAS MENTIRAS (Arrête avec tes Mensonges). França, 2023.  Direção: Olivier Peyon.  Elenco: Guillaume De Tonquédec, Victor Belmondo, Gulaine Londez, Jérémy Gillet, Julien De Saint-Jean.  105 min.

 

Um primeiro amor que ficou no passado distante, 35 anos atrás, retorna com força quando o escritor Stephane (Guillaume De Tonquédec) recebe e aceita um convite para retornar à sua cidade natal, a pequena Cognac, para uma homenagem.  Apesar de Cognac ter dado origem à bebida mundialmente famosa, Stephane não bebe, não gosta de bebidas alcoólicas e já não tem nenhum interesse na visita à destilaria local.  Aliás, não é só em relação à bebida, que marca a cidade, que o escritor se sente deslocado. Ele não esconde sua homossexualidade e isso, ainda hoje, incomoda por lá.

 

Por que, então, ele teria sido escolhido para participar de festividades da cidade e receber uma homenagem?  De quem partiu essa ideia?  Claro que ter se tornado um escritor de sucesso e ser de lá pode explicar isso, ainda assim, algo mais deve haver. E ele sabe disso, apenas deixou de lado ao longo de tantos anos distante.

 

Tudo começa a clarear quando, ao autografar um livro, ele percebe que um dos organizadores do evento tem o mesmo nome de seu antigo caso de amor adolescente.  Encontrar o filho de seu amado trará tudo de volta à sua mente, reavivando suas lembranças.

 

O filme “Pare Com Suas Mentiras” vai, então, alternando presente e passado, sem deixar de continuar sendo linear, tanto no que está ocorrendo agora como na sucessão de fatos daquele passado.  A forma clássica, acadêmica, segue preservada.

 


A abordagem do tema, no entanto, traz a novidade da transformação pelo passar do tempo.  Ninguém permanece o mesmo tanto tempo depois.  Nem mesmo a cidade que cultiva escrupulosamente suas tradições.  Por esse caminho, o filme emociona, até surpreende.  Verdade que o discurso que Stephane vai tentando construir, enquanto vive essas novas e perturbadoras emoções do presente, se torna bastante previsível com a evolução da história.  O filme tenta fazer suspense disso, mas não consegue.

 

O personagem adolescente do escritor, vivido pelo ator Jérémy Gillet, é muito diferente dele, enquanto tipo físico, o que provoca uma certa estranheza.  O jovem Stephane é também muito contido e isolado, embora já se destacasse pela boa escrita.  Seu parceiro amoroso, Thomas (Julien De Saint-Jean), que ficou restrito ao espaço de Cognac, cuidando dos negócios da família, era mais expressivo e ativo, mas não alçou voo.  A imagem que ficou de Thomas, a partir do relato de seu filho, foi a mais fechada possível.  O casamento não lhe trouxe felicidade e ele quase não se comunicava com o filho.  Enfim, uma história de amor e desejo intensos que flopou, como se diz atualmente.

 

A redescoberta do escritor, que é a essência da história, baseada na obra original de Philippe Besson, resultou num filme bem realizado por Olivier Peyon, que desperta interesse.




quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

FILMES BRASILEIROS 2023

Antonio Carlos Egypto

 

 Aí vai a minha lista dos melhores filmes nacionais em 2023, entre o que pude ver ao longo do ano, lançados nos cinemas.  Excluem-se mostras, festivais e streaming.  Como estava tendo dificuldade de chegar aos chamados top 10, resolvi deixá-la com 12 filmes, em ordem decrescente de preferência, ou seja, o primeiro que aparece foi o melhor do ano para mim.  Quase todos os filmes têm críticas publicadas aqui, no cinema com recheio e podem ser acessadas no campo de pesquisa pelo nome ou virando as páginas no celular:

http://cinemacomrecheio.blogspot.com

 

Elis & Tom

OS MELHORES LONGAS BRASILEIROS DE 2023

 

ELIS & TOM... SÓ TINHA QUE SER COM VOCÊ.  Roberto de Oliveira e Tob Azulay.

RETRATOS FANTASMAS. Kleber Mendonça Filho.

O RIO DO DESEJO. Sérgio Machado.

JAIR RODRIGUES – DEIXA QUE DIGAM... Rubens Rewald.

MARINHEIRO DAS MONTANHAS. Karim Aïnouz.

ANDANÇA, OS ENCONTROS E AS MEMÓRIAS DE BETH CARVALHO. Pedro Bronz.

ROBERTO FARIAS, MEMÓRIAS DE UM CINEASTA.  Marise Farias.

O HOMEM CORDIAL. Iberê Camargo.

NOITES ALIENÍGENAS. Sérgio de Carvalho.

SEUS OSSOS, SEUS OLHOS.  Caetano Gotardo.

MATO SECO EM CHAMAS.  Joana Pimenta e Adirley Queirós.

MEU NOME É GAL. Dandara Ferreira e Lô Politi.

 

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

FILMES INTERNACIONAIS 2023

 

    Antonio Carlos Egypto

 

Começo de ano é propício para que listemos os melhores filmes do ano que passou.  Geralmente, os 10 melhores, como tradição.  Ou, de forma mais esnobe, os chamados top ten.  Seja lá como for, aí vão os meus melhores de 2023, por ordem de preferência, considerando os lançamentos dos filmes realizados nos cinemas, ao longo do ano.  Excluídos mostras, festivais e streaming.  Primeiro, a lista dos filmes internacionais. Na próxima postagem, vou apresentar a minha lista dos brasileiros.

 

Importante – Todos os filmes da lista que se segue têm críticas publicadas aqui no cinema com recheio.  Para acessar qualquer um deles, é só virar as páginas ou escrever o nome do filme (ou parte dele) no campo de pesquisa do blog: 

https://cinemacomrecheio.blogspot.com

 

Folhas de Outono

MELHORES LONGAS INTERNACIONAIS 2023

FOLHAS DE OUTONO.  Aki Kaurismaki (Finlândia)

ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES. Martin Scorsese (EUA)

MONSTER. Kore-Eda (Japão)

AFIRE. Christian Petzold (Alemanha)

EO. Jerzy Skolimowski (Polônia)

OS FABELMANS. Steven Spielberg (EUA)

NOSTALGIA. Mario Martone (Itália)

A MENINA SILENCIOSA. Colm Bairéad (Irlanda)

SEM URSOS. Jafar Panahi (Irã)

OPPENHEIMER. Christopher Nolan (EUA)