quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

O MELHOR ESTÁ POR VIR

Antonio Carlos Egypto

 


O MELHOR ESTÁ POR VIR (Il Sol Dell’Avvenire). Itália, 2023.  Direção: Nanni Moretti.  Elenco: Nanni Moretti, Marguerita Buy, Mathieu Amalric, Silvio Orlando, Barbara Bobulova. 95 min.

 

 “O Melhor Está Por Vir”, título do novo trabalho cinematográfico de Nanni Moretti, é também um bom lema: sempre esperar pelo melhor e trabalhar por isso.

 

Moretti, como ele mesmo se define, é um homem da classe média romana, de esquerda, acostumado a fazer a crítica do cotidiano, do mundo e de si mesmo.  Ele pertence a essa geração forjada na ideia de transformar as coisas para melhor e militar por isso.  Não por acaso, seu filme aborda um diretor de cinema, Giovanni , (ele próprio como ator), que faz um filme sobre o Partido Comunista Italiano (PCI), na Roma dos anos 1950.  Justamente no período da invasão soviética na Hungria, que colocava numa saia justa o PCI.  Diante da opressão e dos crimes stalinistas, seria necessário romper o vínculo umbilical com a União Soviética e assumir um posicionamento independente.  Está aí o conflito político.

 

“O Melhor Está Por Vir” é também um filme sobre o cinema.  As dificuldades da produção, orçamento apertado, contestações sobre a abordagem cinematográfica diante do mercado, de uma visão pessimista e trágica do realizador e de uma postura radical dele frente, por exemplo, à violência explorada no cinema, sem qualquer substância, só pelo caça-níqueis.  Ele tem razão, mas sua obsessividade incomoda todo mundo, sem limites, e aí fica complicado.

 

Há muitas outras coisas em questão, como o próprio casamento de Giovanni com a mulher, produtora de todos os seus filmes, e que agora também trabalha para alguém que tem concepções opostas às dele.  Em suma, ele não quer ver, mas seu casamento está em colapso e seu cinema, em cheque.  Além disso, a jovem filha deles encontrou um namorado por quem se apaixonou, que tem muita idade, é uma escolha inesperada que mexe com eles.

 


Enquanto o cineasta tenta realizar o filme que discute as posições da esquerda nos anos 1950, a realidade transforma o filme, ao mesmo tempo em que o filme reconfigura a realidade, reconstruindo o sonho por meio de uma visão crítica sobre o passado.  Além disso, as questões pessoais e profissionais atuais entram na trama do filme, modificando-o também.  Moretti adota uma visão dialética do mundo, tendo a mudança, a transformação, como a base das coisas.

 

Este é basicamente o recheio de uma comédia que provoca, faz pensar, remete à autoanálise tão necessária, não só ao nosso cineasta, mas a qualquer um de nós.

 

O resultado é muito bom, engraçado, denso, revelador da natureza humana e da importância do contexto político da vida, embora hoje tudo pareça tão diferente, estranho, para quem não perdeu a característica de querer tornar o sonho de um mundo melhor possível. Se a realidade atual decepciona, incomoda, existe o cinema para vender o sonho. Nanni Moretti remete ao povo a solução da encruzilhada em que nos metemos. Só assim o sonho ganha entusiasmo e uma força admirável.

 

Um elenco de primeira sustenta essa trama meio complicada, em que as questões existenciais são políticas e as questões políticas são filosóficas, existenciais. Atores e atrizes que primam pela sutileza, pela ambiguidade, pela dúvida, no desempenho de seus papéis criam personagens reais, facilmente identificáveis e falíveis, como todos nós.  Vale a pena conhecê-los.

 

“O Melhor Está Por Vir” tem estreia marcada para o início de janeiro de 2024 nos cinemas.

 

 

                              FELIZ ANO NOVO !





quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

A MENINA SILENCIOSA

Antonio Carlos Egypto

 

 


A MENINA SILENCIOSA (An Cailín Ciúin).  Irlanda, 2023.  Direção e roteiro: Colm Bairéad.  Elenco: Catherine Clinch, Carrie Crowley, Andrew Bennett, Michael Patric.  96 min.

 

O diretor e roteirista irlandês Colm Bairéad fez um filme bonito, sensível, emocionante: “A Menina Silenciosa”.  Passa-se na zona rural em que vive essa menina de 9 anos de idade, Cáit, num desempenho magnífico de Catherine Clinch, de 11 anos à época da filmagem.  O que ela vive, percebe, conclui, como reage ou não, é tudo o que sabemos. É por meio dela que acompanhamos os acontecimentos.

 

Ela fala pouco, só o necessário, mas o ritmo do filme nos permite apreciar calmamente as coisas, ir sentindo o que ela provavelmente sente.  Não é possível ficar alheio ao que se vê, tanto no abandono, descaso ou rejeição, quanto na acolhida, na ternura e no afeto. 

 

Cáit vive numa família grande e pobre, em que um novo bebê vem a caminho.  Acaba sendo levada para passar um tempo num local longínquo somente com um casal de meia-idade, parentes distantes, que ela desconhece. 

 

O pai a leva de carro, mas esquece de pegar a mala dela e parte, deixando-a só com a roupa do corpo.  Isso dará margem a que fatos dolorosos e complexos acabem por vir à tona, com o tempo. Nesse filme tudo tem seu tempo.

 

Enquanto isso, vamos apreciando as locações do campo, a natureza, os animais e lances de beleza nas pequenas coisas.  Por exemplo, numa caneca que pega água num poço profundo que abastece a casa.

 

Uma questão que a narrativa do filme coloca é sobre o que significa ser pai ou mãe, o papel da biologia, do acolhimento e do afeto, nessa história.  Além do desejo de ter e cuidar de filhos.

 

A trama de “A Menina Silenciosa” é uma adaptação de um conto, Foster, de Claire Keegan, co-roteirista no filme, publicado em 2010.

 

Além do título irlandês, em gaélico, “An Cailín Ciúin”, foi lançado internacionalmente com os títulos de “The Quiet Girl” e “Les Trois Lumières”, na França.  Está indicado ao Oscar de filme internacional pela Irlanda.

 

BOAS FESTAS

Para você que está lendo meu texto agora, meu desejo de Boas Festas, num fim-de-ano mais tranquilo e com esperanças para o futuro.  Saudações cinéfilas.  Grande abraço.




terça-feira, 12 de dezembro de 2023

DOIS FILMES

     Antonio Carlos Egypto

 

 


A SOCIEDADE DA NEVE (La Sociedad de la Nieve), Espanha, 2023.  Direção: J. A. Bayona.  Elenco: Enzo Vogrincic, Simon Hempe, Augustín Pardella, Matias Recalt, Rafael Federman. 145 min.

 

“A Sociedade da Neve” retoma a história do trágico acidente que envolveu o voo 571 da Força Aérea Uruguaia, que levava a seleção uruguaia de rúgbi ao Chile, em 1972.  O acidente ficou famoso na época pelas circunstâncias trágicas que o cercaram e pela sobrevivência quase impossível daqueles jovens, entre outros passageiros, que com a queda do avião foram forçados a viver num dos ambientes mais inóspitos e isolados do mundo, a Cordilheira dos Andes, na neve.  A retomada dessa história real se dá agora, a partir do livro escrito por Pablo Vierci, em 2008, com o mesmo título do filme.  Dos 45 passageiros, somente 29 sobreviveram de imediato.  Ao longo dos meses passados, surpreendentemente, 16 ainda conseguiam sobreviver, até que pudesse ocorrer o resgate.  O que tiveram que fazer para se manterem vivos, quem não sabe do caso, pode imaginar.  O filme narra a sequência do longo período em que esse grupo sobrevivente, que ia perdendo elementos também, se manteve, suas ações, decisões, desespero dentro do que restou do avião e frente às tempestades de gelo e tudo o mais.  O filme explora também o relacionamento que se dá entre eles nessa situação extrema, a sociedade que se estabelece ali.  É o que se denomina de filme catástrofe.  Mas pretendendo-se rigorosamente real.  Um dos sobreviventes verdadeiros até representou o papel de seu próprio pai no filme, no caso, Carlitos Páez.  O que havia para mostrar era também inevitavelmente escandaloso e arrasador.  O filme consegue, no entanto, fazer isso com sutileza, pelos menos, até certo ponto.  Era difícil, reconheço, contar os fatos sem cair no sensacionalismo e sem moralismos.  O resultado pode não ser agradável, claro, mas é palatável.  E coloca questões claramente em discussão, questões obviamente de vida e de morte, o tempo todo.  Sobreviver, em algumas circunstâncias, é um desafio sobre-humano, que tem um alto custo.  Isso o filme explora corretamente, eu diria, até minuciosamente, mas com cuidado.  Do contrário, não daria para aguentar.  Seria um produto de horror puro e simples.  Uma curiosidade: o filme se vale de um narrador, um dos personagens, que vai relatando o que se faz e como ele vê e participa dos fatos, seus próprios sentimentos, medos, dúvidas e sua deterioração física.  Ele morre um pouco antes de que o filme termine.  O final, portanto, é necessariamente coletivo.  Uma solução, embora estranha, razoável.  “A Sociedade da Neve” é uma produção Netflix que tem seu lançamento nos cinemas agora.

 


ALMAS GÊMEAS (Les Âmes Soeurs), França, 2023. Direção: André Téchiné.  Elenco: Noémie Merlant, Benjamin Voisin, Audrey Dana, André Marcon.  100 min.

 

A narrativa do novo filme de André Téchiné ( de “Rosas Selvagens”, 1994 e “As Testemunhas”, 2007), “Almas Gêmeas”, discute o papel da amnésia na vida de um personagem jovem.  David (Benjamin Voisin), um tenente do exército francês no Mali, é seriamente ferido, mas o que resta lesionado, depois de um duro tratamento e da acolhida emocional da irmã nesse período, é a amnésia.  Que parece resistir por muito tempo.  Ele vive uma nova vida, dispensando o passado, sem querer saber dele, incomodando-se com isso.  Apenas a retomada de algumas habilidades, como nadar e andar de moto, lhe parecem atraentes.  E o dia-a-dia ao lado da irmã, num belo lugar de natureza, um tanto isolado, parece contentá-lo.  Jeanne (Noémie Merlant) demonstra uma dedicação excepcional ao irmão, parecendo ocupar o lugar da mãe que eles não têm.  No entanto, ela se empenha em trazê-lo de volta, incorporando o passado que ele rejeita.  Ela busca um relacionamento mais profundo e verdadeiro, que não pode dispensar a memória.  Sentimentos reprimidos virão à tona, na medida em que os fatos sejam recordados.  Algo que ficou intocado terá de ser encarado.  Os personagens vão se desvelando em cena e é muito fácil para o espectador se envolver na história, não só pelo enigma, mas pela própria questão do que significa a ausência de memória, a negação do passado.  O que somos nós sem identidade, sem passado, ainda que o presente possa parecer suficiente?  Isso vale o filme.  Muito bem conduzido com delicadeza e sutileza, contando com uma atriz e um ator jovens muito talentosos, que valorizam seus personagens e transmitem as nuances de suas vivências de forma muito convincente.  O filme foi exibido no Festival Varilux do Cinema Francês, antes de entrar no circuito comercial.




quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

ROBERTO FARIAS, MEMÓRIAS DE UM CINEASTA

Antonio Carlos Egypto 

 



ROBERTO FARIAS, MEMÓRIAS DE UM CINEASTA.  Brasil, 2023.  Direção: Marise Farias.  Documentário.  90 min.

 

A filha mais nova do cineasta Roberto Farias (1932-2018), Marise Farias, realizou um importante documentário sobre a relação de seu pai com o cinema, sua obra e suas motivações em defesa do cinema brasileiro.  Além do registro de seu trabalho no cinema e na TV bastante conhecido e de sucesso, ela encontrou um livro de memórias que ele deixou para a posteridade, numa pasta do seu computador.  Essas memórias, narradas ao longo do filme pelo ator e irmão Reginaldo Faria, vão compondo uma história de amor pelo cinema e uma visão de quem se expressa pelo vínculo audiovisual sempre buscando alcançar o público.  Para isso, se vale de uma narrativa mais direta, capaz de ser compreendida e assimilada pelos espectadores.

 

Depois de passar pela chamada chanchada, realizando, por exemplo, “Rico Ri à Toa”, 1957, enveredou por um caminho mais autoral e social, com “Cidade Ameaçada”, 1960, “Assalto ao Trem Pagador”, 1962, e “Selva Trágica”, 1963.  Com a eclosão da ditadura militar, em 1964, aliada ao fracasso econômico de “Selva Trágica”, dedica-se ao cinema de entretenimento, com muita qualidade.  Realizou “Toda Donzela Tem um Pai que é Uma Fera”, 1966, e o grande sucesso da trilogia com Roberto Carlos como protagonista, em grandes produções: “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura”, 1968, “R C e o Diamante Cor-de-Rosa”, 1970, e “R C a 300 kms por hora”, 1971.  Voltaria ao gênero com “Os Trapalhões no Auto da Compadecida” 1986.  Mas antes deixaria como marca de sua carreira “Prá Frente, Brasil”, 1982, que explora os espaços de distensão e o declínio da ditadura, para abordar corajosamente a questão da tortura e desaparecimentos no Brasil, numa narrativa ficcional.

 


O documentário também mostra o papel do cineasta quando foi indicado e assumiu a Embrafilme, entre 1974 e 1978, quando em plena ditadura a produção brasileira de cinema cresceu e ganhou grande público, por meio também do incremento das cotas de tela.  Foi um período áureo do nosso cinema nesse sentido.  Os méritos de Roberto Farias parecem hoje inegáveis, mas havia contestação e oposição ao seu trabalho, na época.

 

O foco do documentário está no amor ao cinema, que Roberto Farias demonstrou com sua atuação e trabalhos, seu depoimento e como o descreveu no seu livro de memórias.  Destaca o profissional apaixonado, que envolveu toda a família com o cinema, com ideias muito claras sobre como realizar e promover o cinema brasileiro, conquistando o público e disputando o mercado com o produto estrangeiro.  Alcançou bastante êxito em seus objetivos, embora a situação tenha se revertido e hoje essa batalha seja ainda mais difícil e complicada do que foi naquele período passado, em que Roberto Farias atuava com intensidade.

 

24ª. EDIÇÃO DA RETROSPECTIVA DO CINEMA BRASILEIRO

Já começou a tradicional Mostra Retrospectiva dos filmes recentes do cinema brasileiro, para quem não pôde vê-los ou quer rever algum.  De hoje, 07 de dezembro de 2023, até 10 de janeiro de 2024, no Cinesesc, em São Paulo, rua Augusta, 2075. Veja a programação no site do Cinesesc.



terça-feira, 5 de dezembro de 2023

PUAN

Antonio Carlos Egypto

 

 


PUAN (Puan), Argentina, 2023.  Direção: Maria Alché e Benjamin Naishtat.  Elenco: Marcelo Subiotto, Leonardo Sbaraglia, Julieta Zylberberg, Alejandra Flechner.  109 min.

 

“Puan” nos coloca no ambiente acadêmico, da Universidade de Buenos Aires, em que a morte inesperada do chefe do Departamento de Filosofia engendra uma disputa de poder entre dois docentes. 

 

O primeiro, e personagem central do filme, é Marcelo (Marcelo Subiotto), que trabalhou muitos anos ao lado do antigo e respeitado chefe Caselli e espera ser seu sucessor no cargo.

 

O segundo é um professor que volta da Europa, da Alemanha, e para surpresa de Marcelo disputa o cargo.  É Rafael (Leonardo Sbaraglia), que esbanja extroversão e charme, enquanto Marcelo é preparado, mas tímido.

 

Nessa disputa de poder, entram Rousseau, Hobbes, Platão, Spinoza e outros mais.  Mas entra também um fator totalmente alheio à academia (ou assim se esperava que fosse), Rafael conquistou uma bela e famosa atriz de cinema, Vera Motta (Lali Espósito) e isso lhe dá um status especial.  É o moderno, o que vem para mudar.

 

Enquanto isso se desenvolve, o país entra em colapso com seus problemas econômicos (inflação, fuga de dólares, etc.) e a Universidade sente as consequências.  Os estudantes lutam com as suas possibilidades e isso é evidenciado pelo que se vê no campus e na própria sala-de-aula.

 


A disputa acadêmica terá de ser confrontada com a realidade que invade o mundo universitário.  Mas o filme não se furta de mostrar ideias e frases dos filósofos, que orientam o método pedagógico das aulas dos professores, ilustrando a beleza do conhecimento e da razão.  Já a práxis parece um pouco distante.

 

É uma narrativa interessante, inteligente, que se vale de dois grandes atores nos desempenhos principais.  Marcelo Subiotto, perfeito na caracterização e tipologia de seu papel.  O ótimo Leonardo Sbaraglia, no entanto, me parece inadequado enquanto figura, ele não sugere o charme e o encanto que o personagem precisa ter.  Sua interpretação é muito boa, mas sua aparência não casa bem com o personagem.  É preciso desviar disso para embarcar na história.

 

O filme é dirigido por Maria Alché e por Benjamin Naishtat, que é o realizador de “Vermelho Sol”, de 2018, um belo trabalho.  “Puan” foi exibido na 47ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e entra agora em cartaz no circuito comercial.  Mais um bom produto do cinema argentino, tão bem recebido pelos brasileiros e pelo mundo, e que corre sérios riscos de perder força diante do novo governo eleito pelos hermanos, que não pretende dar nenhum apoio à cultura.  Deve deixá-la à sua própria sorte ou se entendendo com os interesses da chamada iniciativa privada.