FILHOS DO MANGUE.
Brasil, 2024. Direção: Eliane
Caffé. Elenco: Felipe Camargo, Genilda
Maria, Titina Medeiros, Maria Alice da Silva, Roney Villela. 110 min.
Na primeira cena do filme “Filhos do Mangue”, vemos
um homem deitado na areia de uma praia deserta, já num horário tardio,
aparentemente em má situação, e vemos um cavalo e um cavaleiro passeando ali,
ignorando o acontecimento. Rejeitando
qualquer interesse ou ajuda à figura humana desamparada, ou supostamente
desamparada. Esta sequência já define o
confronto homem e comunidade que se contará a seguir.
Um acidente pode produzir uma situação extrema de
amnésia total, em que a pessoa não se lembra de nada do que viveu ao longo da
vida. Mal sabe quem é ou o próprio nome.
Acrescente-se a isso uma série de acusações gravíssimas que lhe são
imputadas por toda uma comunidade.
O sujeito é descrito como dono de um belo barco,
com recursos. Mas, opressor, além de
bater na esposa, está envolvido com tráfico de mulheres, prostituição forçada
delas e, ainda, roubo de uma significativa quantia de dinheiro da população
local. Sem memória, como se defender
disso ou resgatar essa dívida tão ampla?
A relação desse personagem, Pedro Chão (Felipe
Camargo) com a mulher, a filha e toda a comunidade local é o fio central da
narrativa de “Filhos do Mangue”, dirigido por Eliane Caffé, com base no livro Capitão,
de Sérgio Prado, lançado em 2011. A ação
se passa em Barra do Cunhaú, Rio Grande do Norte, conhecida como o Caribe do
Nordeste. Isso se evidencia na filmagem,
que nos mostra uma beleza cênica, única, e o encontro do rio com o mar. A fotografia acentua e valoriza a beleza do
lugar e movimentos de câmera convidam à contemplação e ao deleite. Isso combinado com um som magnificamente
construído, que destaca tudo o que acontece na natureza e com as pessoas:
movimento das águas, chuva, vento, pássaros e outros animais, caminhadas,
gritos e discussões, mas também sussurros e palavras quase inaudíveis,
indicando a distância e a imprecisão da percepção. Um trabalho primoroso.
O roteiro da diretora e de Luís Alberto de Abreu
privilegia a discussão do poder na vida comunitária numa vila de pescadores e,
especialmente, a questão feminina, a opressão que se abate contra as mulheres,
o uso, o abuso, a desvalorização e a violência que atingem o gênero
feminino. Por outro lado, mostra os
caminhos da união entre elas, para se empoderarem e resistirem, a sororidade
como necessidade e cooperação mútua. E,
ainda, a separação dos homens que as violentam, a busca de uma vida mais livre
e respeitosa, quando necessário. Não há
que se suportar calada uma situação que não se sustenta e que não traz sinais
de prazer e felicidade. Enfim, os
personagens são representativos do ambiente social de uma pequena comunidade,
mas as questões que aparecem têm uma dimensão maior do que essa, a de um
caráter universal.
A cineasta Eliane Caffé já nos deu filmes
importantes, como “Os Narradores de Jafé”, 2003, e “Era o Hotel Cambridge”,
2016. Conseguiu reunir um elenco
competente para contar essa história, com destaque para o protagonista Felipe
Camargo, que dá conta muito bem do seu complicado papel. E alcança um alto nível estético, com esse
filme.