segunda-feira, 18 de março de 2024

O PRIMEIRO DIA DA MINHA VIDA

        

 Antonio Carlos Egypto

 


 

O PRIMEIRO DIA DA MINHA VIDA (Il Primo Giorno Della Mia Vita).  Itália, 2023.  Direção: Paolo Genovese.  Elenco: Toni Servillo, Valerio Mastandrea, Marguerita Buy, Sara Serraiocco, Gabriele Cristini.  121 min.

 

É raro que o autor de um romance se torne também o diretor do filme que adapta o texto literário.  Essa é uma das características de “O Primeiro Dia da Minha Vida”, de Paolo Genovese. 

 

Há muitas outras especificidades no filme, que parte de uma questão que nos ocupa ao longo de toda a vida.  O que acontece após a morte?  Esse assunto é, geralmente, muito explorado pela filosofia e pelas religiões.  Frequentemente, envolve questões morais e a expectativa por uma imortalidade.  O trabalho de Paolo Genovese não vai por aí.  Trilha um caminho mais original sobre o tema.  Mais leve, também, mas não se trata exatamente de uma comédia.  É uma fantasia que nos leva a uma reflexão bastante interessante sobre a vida e a forma como lidamos com seus desígnios e suas agruras.  Por exemplo, quem nunca pensou em como segue o mundo quando eu não estiver mais aqui?  Se faz alguma diferença a minha ausência?

 

Após um suicídio, o que vem em seguida?  Quero dizer, imediatamente após, na primeira semana que se segue ao fato.  Em primeiro lugar, encarar o que se fez e o que motivou o ato.  Buscar uma reparação seria algo possível?  Imaginemos que sim e o processo dessa semana seja conduzido por um homem misterioso, uma figura misteriosa, que não é Deus, nem demônio, nem anjo, nada disso.  No entanto, tem um papel fundamental nesse momento. 




Diante de quatro suicídios ocorridos na noite anterior, o condutor do processo vai reunir um comunicador famoso, da área de motivação, uma atleta jovem, vice-campeã na ginástica de competição, que por uma queda acaba numa cadeira de rodas, uma mulher madura, inconsolável com a morte da filha e um menino de 12 anos, diabético, que comeu 40 donuts intencionalmente e não tomou sua insulina habitual.

 

Toni Servillo faz o homem misterioso de uma forma contida, como convém ao personagem.  E explora bem o inusitado da figura.  Napoleone, o motivador desmotivado com a própria vida, papel de Valerio Mastandrea, exige dele uma ambiguidade constante e uma rejeição à situação em que está.  Que é central para a trama. 

 

Marguerita Buy, no papel de Arianna, explora muito bem o lado materno e acolhedor, mesmo em contexto tão angustiado e desesperador.  Sara Serraiocco, a atleta Emilia, compõe um papel que nos remete à vida em suspenso, com muita clareza.  E o jovem Danielle, de 12 anos, vivido por Gabriele Cristini, compõe o quarteto dos suicidas com alguma leveza e até toques de humor, em meio à circunstância trágica de rejeição de pai e mãe.

 

Acompanha-se o filme com muito interesse, porque é um modo novo de abordar o assunto.  E porque a armadilha do moralismo e da literatura de autoajuda está bem perto, mas não triunfa.  Afinal, é sempre possível olhar os assuntos triviais por outra ótica, buscando um novo ângulo, desviando do que não interessa tratar.  Ainda bem.  Ponto para o romancista cineasta.



 

quarta-feira, 13 de março de 2024

LUPICÍNIO RODRIGUES - CONFISSÕES DE UM SOFREDOR

 

Antonio Carlos Egypto 

 


 

LUPICÍNIO RODRIGUES – CONFISSÕES DE UM SOFREDOR.  Brasil. 2022.  Direção: Alfredo Manevy.  Documentário.  Narração: Paulo César Pereio.  96 min.

 

O longa de estreia do diretor Alfredo Manevy, o documentário “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor” tem o mérito de destacar o trabalho de um grande compositor, poeta e intérprete da música popular brasileira.

 

O gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914-1974) teve composições gravadas por intérpretes de várias gerações, que alcançaram sucesso e se tornaram clássicos, nas vozes de Francisco Alves, Orlando Silva, Ciro Monteiro, Elizeth Cardoso, Linda Batista, Jamelão.  E também de Paulinho da Viola, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, Elis Regina, Ney Matogrosso, Marisa Monte.  Enfim, todos os grandes intérpretes da música brasileira beberam na fonte de Lupicínio.

 

O compositor se alimentou das desventuras do amor para fazer suas letras ternas, duras e diretas, machistas também, mas de rara beleza poética.  Pode ser considerado o criador do chamado samba da dor de cotovelo.  Lembremos um trecho de “Esses Moços, Pobres Moços”, quando ele se dirige aos jovens: Se eles julgam que a um lindo futuro só o amor nesta vida  conduz, saibam que deixam o céu por ser escuro e vão ao inferno à procura de luz.  Bonito, não é?

 

Lupicínio, com sua música, aparece inteiro no documentário, todo montado a partir de vasto material de arquivo, incluindo entrevista  e canto com ele e muita música dele em várias interpretações, como citei acima.  Destaque para a linda interpretação de João Gilberto, para “Quem há de dizer”.  E para uma música de Lupicínio que foi indicada ao Oscar 1945, no filme “Dançarina Loura”, sem consulta ao compositor e sem lhe dar crédito.  Era nada mais nada menos do que uma versão instrumental e dançante de “Se Acaso Você Chegasse”.  A mesma canção lançaria a grande Elza Soares ao estrelato, pela genialidade de sua interpretação, em 1960.

 


São muitas as histórias que envolvem a música que ele criou com maestria.  Vamos lembrar mais algumas delas?  “Felicidade” (foi-se embora...), “Vingança”, “Nervos de Aço”, “Cadeira Vazia”, “Nunca”, “Ela Disse-me Assim”, “Volta”, “Maria Rosa, “Loucura”, “Brasa”...

 

Sustentado à base do álcool e das noites e madrugadas de música, bares e mulheres, foi um compositor que ultrapassou seu próprio tempo.

 

Embora marcada pelos valores de sua época, a música de Lupicínio é tão atual hoje, 50 anos após a sua morte, que o filme de Alfredo Manevy, narrado por Paulo César Pereio, com certeza vai entusiasmar todos que forem vê-lo no cinema.  De todas as idades e preferências musicais.  E é muito bom que a música popular brasileira, tão rica e variada, com talentos tão fantásticos, esteja sendo tão bem documentada pelo cinema brasileiro.

 

 

 

sexta-feira, 8 de março de 2024

ERVAS SECAS

Antonio Carlos Egypto

 



ERVAS SECAS ((Kuru Otlar Üstüne), Turquia, 2023.  Direção: Nuri Bilge Ceylan.  Elenco: Deniz Celiloglu, Merve Dizdar, Musab Ekici, Ece Bagci, Erdem Serocak.  197 min

 

O cineasta Nuri Bilge Ceylan é muito respeitado, admirado pelos cinéfilos pelo trabalho de alta qualidade que desenvolve. É só lembrar de “Climas” (2006), “Era uma Vez em Anatólia” (2011), “Sono de Inverno” (2014) e “A Árvore dos Frutos Selvagens” (2018).

 

Em “Ervas Secas”, personagens bem representativos aparecem.  Como um professor de cidade pequena, a escola onde atua, os alunos, os pais, os colegas e a burocracia, que dificultam uma existência mais livre e criativa.  Onde um erro pode pesar muito e as relações de poder podem se dar por coisas menores, comezinhas.  O ciúme, a maledicência, as simulações, correm soltos.  

 

Uma mulher bonita e inteligente precisa vencer não só o machismo e os preconceitos de gênero como os das pessoas com alguma deficiência, que é o caso dela. Tanto naquilo que envolve a visão de mundo e as ideologias, quanto na manifestação humanística da aceitação, da compreensão e da solidariedade.  As coisas são difíceis.  

 


Ao longo de mais de 3 horas brilhantemente conduzidas, o filme flui em consistência e beleza.  A sequência inicial nos remete à neve que se alastra no local, ocupa toda a tela, exceto por um transporte coletivo visto lá atrás e alguém que vem à frente, aos poucos, já dá toda a dimensão do filme.  

 

Essa neve, esse branco, esse frio, representam as relações humanas que não florescem, não se aquecem, não se colorem.  Fora do inverno, vigoram as ervas descoloridas. Desprezíveis, desinteressantes, sem brilho.  E... secas.  Nesse sentido, o filme é realística e simbolicamente pessimista.  

 

A fotografia nos filmes de Ceylan é sempre um espetáculo à parte.  Os enquadramentos perfeitos e as paisagens turcas escolhidas são primorosos.  É um arrebatamento visual, uma experiência muito gratificante. 

 

 

terça-feira, 5 de março de 2024

ANIMAÇÕES NO OSCAR 2024

 

 Antonio Carlos Egypto

 



Animação indicada ao Oscar 2024 e considerada favorita na disputa é O MENINO E A GARÇA (The Boy and the Heron), desenho japonês de Hayao Miyazaki, que é um mestre do gênero e está com 83 anos.  Já levou um Oscar por “A Viagem de Chihiro”, em 2003. Foram 7 anos para conceber e concluir “O Menino e a Garça”, a aventura de Mahito, de 12 anos de idade, em uma nova cidade, após a morte da mãe.  Será que ela morreu mesmo?  O processo de elaboração dessa morte, da aceitação de um novo ciclo de vida com Natsuko, a madrasta, igual a sua mãe (irmã dela?), com quem ele reluta em conviver.  O filme explora a questão do luto, da morte, da velhice, do passar do bastão de seu tio-bisavô e, claro, das muitas lutas que é preciso encarar pela vida.  A animação é muito bonita, cativante.  Seu ponto fraco, para mim, é o excesso de ação, o excesso de lutas.  Mahito não tem de lidar só com a garça, que inferniza sua vida, mas pode ser parceira em algumas situações.  Há um monte de aves hostis, e em bando, que ele tem de encarar.  Isso cansa quem não é grande aficionado das tais batalhas hollywoodianas que enchem os filmes de ação, em que a gente já nem sabe quem luta com quem e por quê.  Aqui, nem tanto, mas o suficiente para cansar.  O filme é complexo, leva em conta desejos, sonhos, expectativas, esperanças e, evidentemente, fantasias.  Por gerar tantas batalhas e variações para alcançar a maturidade e a compreensão, o desenho é longo, passa de duas horas.  Convenceria mais se fosse mais editado.  Mas é um belo trabalho, inegavelmente.  124 min.

 



MEU AMIGO ROBÔ (Robot Dreams), produção da Espanha/França, do diretor espanhol Pablo Berger, também indicado ao Oscar de Animação 2024, é um desenho mais simples, mais tradicional.  Bonito e criativo, também.  É uma ode à amizade, já que Dog compra e monta um robô para poder ter um amigo com quem conviver.  E se dá muito bem, até que seu amigo robô, empolgado pela praia e pelo mar, acaba paralisado pela ferrugem.  Aí o desenho envereda pela fantasia dos sonhos, do que aconteceu, do que poderia ter acontecido ou do que cada um dos dois personagens principais gostaria que acontecesse.  Nesse sentido, o filme é inovador, vai de uma sequência a outra, variando o registro, emociona e diverte.  102 min.

 

 

 

sexta-feira, 1 de março de 2024

PRÊMIO ABRACCINE 2023

Antonio Carlos Egypto

 




Prêmio Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema – para os melhores filmes de 2023 escolhidos pelo voto dos críticos associados.

 

Melhor Filme Internacional

 

Vencedor: ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES, de Martin Scorsese

 

 


e divulgou a lista dos 10 mais votados (por ordem alfabética):

  

“Afire”, de Christian Petzold

“Assassinos da Lua das Flores”, de Martin Scorsese

“Close”, de Lukas Dhont

“Os Fabelmans”, de Steven Spielberg

“Folhas de Outono”, de Aki Kaurismäki

“John Wick: Baba Yaga”, de Chad Stahelski

“Monster”, de Hirokazu Kore-eda

“Saint Omer”, de Alice Diop

“Sem Ursos”, de Jafar Panahi

“Tár”, de Todd Fie


Melhor Longa Nacional

Vencedor: MATO SECO EM CHAMAS, de Adirley Queirós e Joana Pimenta




e divulgou a lista dos 10 mais votados (por ordem alfabética):

  

“Capitu e o Capítulo”, de Julio Bressane

“Incompatível com a Vida”, de Eliza Capai

“Luz nos Trópicos”, de Paula Gaitán

“Mato Seco em Chamas”, de Adirley Queirós e Joana Pimenta

“Medusa”, de Anita Rocha da Silveira

“Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho

“Pedágio”, de Carolina Markowicz

“Propriedade”, de Daniel Bandeira

“Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho

“Tia Virgínia”, de Fábio Meira


Melhor Curta ou Média Nacional

Vencedor: CAIXA PRETA, de Bernardo Oliveira e Saskia




e a lista dos 10 mais votados (por ordem alfabética):

 

“Os Animais Mais Fofos e Engraçados do Mundo”, de Renato Sircili

“Cabana”, de Adriana de Faria

“Caixa Preta”, de Bernardo Oliveira e Saskia

“Cama Vazia”, de Fábio Rogério e Jean-Claude Bernadet

“A Edição do Nordeste”, de Pedro Fiuza

“Ela Mora Logo Ali”, de Fabiano Barros e Rafael Rogante

“Mãri-Hi: A Árvore do Sonho”, de Morzaniel Iramari Yanomami

“Pulmão de Pedra”, de Torquato Joel

“Ramal”, de Higor Gomes

“Remendo”, de GG Fákòlàdé

 

 

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

DIAS PERFEITOS

  Antonio Carlos Egypto

                                                 



DIAS PERFEITOS (Perfect Days).  Japão, 2023.  Direção: Wim Wenders.  Elenco: Koji Yakusho, Tokio Emoto, Arisa Nakano, Aoi Yamada.  123 min.

 

O grande cineasta alemão Wim Wenders declarou publicamente que o cineasta japonês clássico Yasujiro Ozu (1903-1963) é um mestre muito admirado por ele.  Em 1985, Wenders foi a Tokio fazer um documentário, “Tokyo-Ga”, sobre a cidade de seu mestre no cinema e as mudanças que se operaram 20 anos após a morte de Ozu.

 

Não surpreende, portanto, que “Dias Perfeitos”, que concorre ao Oscar, representando o Japão na disputa de filme internacional, seja dirigido por Wim Wenders, numa produção nipo-alemã, com roteiro de Wenders e de Takuma Takasaki. 

 

E qual é a temática de “Dias Perfeitos”?  Eu diria que é viver em harmonia consigo mesmo e com a natureza, mesmo diante das adversidades e de questões não resolvidas no passado.  Parece que mais do que isso: viver feliz, com um sorriso no rosto e um otimismo que parece estar em desacordo com os fatos.

 

Senão, vejamos.  Hirayama (Koji Yakusho) é um senhor (de meia-idade? Esta expressão é estranha) que vive só e cumpre uma rotina de trabalho que ele faz cuidadosa e esmeradamente.  Qual seja, a de limpar banheiros públicos, envergando um macacão da The Tokyo Toilet, com um jovem ajudante pouco interessado nesse serviço: Takashi (Tokio Emoto).

 


Vemos que, na rotina de Hirayama, cabem a leitura de bons livros, a fotografia das árvores, o cuidado com as plantas e a música, que ele ouve por meio de fitas cassetes no veículo que usa para o trabalho.  Não, não estamos no passado, nem nos anos 1980.  As músicas ouvidas, sim.  Mas aprendemos que, com a revalorização do analógico, as fitas cassetes de som podem ser vendidas num sebo, por 80 a 120 dólares.  Ele nem está interessado nisso.  Esse emprego não deve lhe render um alto salário, claro, mas ele coleciona não só fitas, como livros, fotos tiradas com uma máquina antiga, que revela regularmente. Seu assistente reclama da falta de dinheiro até para namorar, mas ele não se queixa de nada.  Aliás, fala muito pouco, quase nada.

 

Acompanhar o dia-a-dia desse personagem e o que, eventualmente, acontece com ele é o que importa ao filme.  O personagem é, na sua vida simples, bastante interessante e muito bem interpretado pelo ator Koji Yakusho, que sustenta o filme quase sem falar.  Sua rotina é sua segurança, seu meio de vida, seu porto seguro.  E, como dizia o título em português do último filme de Yasujiro Ozu, “A Rotina tem seu Encanto” (Sanma No Aji).

 

O filme flui muito bem e nos desafia a pensar o que é que vale nessa vida, afinal?  O conformismo do personagem, evidentemente, provoca estranheza.  Mas faz sentido para ele e é certamente útil para a comunidade.  Quem é que não aprecia um banheiro público limpo, bem higienizado, na hora em que precisa usá-lo?

 

Uma curiosidade: nunca tinha visto o banheiro público envidraçado que se torna opaco e colorido ao ser trancado por dentro.  Coisas da tecnologia, coisas do Japão.



quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

ZONA DE INTERESSE

        Antonio Carlos Egypto

 

 


ZONA DE INTERESSE (The Zone of Interest).  Reino Unido, 2023.  Direção: Jonathan Glazer.  Elenco: Christian Friedel, Sandra Hüller, Johann Karthaus, Medusa Knopf.  103 min.

 

O comandante Rudolf Höss (Christian Friedel) do campo de concentração, na verdade, de extermínio, de Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial, vive com sua família numa bela casa, exatamente ao lado do campo, separada por uma muralha.  Com sua mulher, Hedwig (Sandra Hüller), filhos, a sogra que aparece para visitá-los e outros, todos têm uma vida aparentemente normal e muito confortável.  Esse é o ponto de partida do filme, baseado em obra de Martin Amis.

 

Convenhamos que, por mais negacionismo que se pratique, por mais que se queira ignorar o que acontece ao lado, isso é impossível.  Fornos crematórios emitem fumaça, há sons de tensão, gritos e, ainda mais óbvio, as roupas de judeus que aparecem para serem aproveitadas pelos empregados da casa e até um casaco de peles que Hedwig recuperará.  Banalidade do mal é pouco.

 

Pois bem, o que faz o diretor Jonathan Glazer? Não mostra nada de Auschwitz, tudo está extracampo.  O que é importante não está em cena, não é mostrado, com exceção daquilo que interfere na vida familiar de Höss.  Uma maneira de não explorar o Holocausto sensacionalisticamente?

 

Isso é possível na medida em que já se conhece toda a história.  Pequenos indícios são suficientes para relembrá-la e condená-la.

 


Um grande número de filmes já abordou o tema no cinema, das mais variadas formas e estilos.  Uma obra seminal é “Noite e Neblina”, um curta de Alain Resnais, de 1956, que mostra o que foi Auschwitz, quando o tema ainda estava quente.  Hoje tudo já foi dito e feito, direta ou indiretamente, por personagens distintos, de forma documental, dramática e até de humor. Lembram-se de “A Vida é Bela”, de Roberto Benigni?  E já houve polêmicas sobre o que se deve ou não mostrar sobre um assunto tão sensível e dolorido.

 

A escolha de “Zona de Interesse” pelo distanciamento está não apenas na ausência de imagens do Holocausto, mas também na filmagem de longe e no desempenho dos atores e atrizes, sem nenhum close de rostos, expressões, movimentos.  As performances estão bem contidas, evitando as manifestações emocionais.  Tudo ascético, supostamente neutro.  E sem detalhes, exceto em algumas flores vermelhas, que acabam transformando toda a tela em vermelho, representando o sangue.  Assim como a morte aparece, no início e no fim do filme, em tela toda escura.  A fotografia também é escura.  O filme é lúgubre, desagradável de se ver.  O grande mérito está no uso do som para revelar os horrores escondidos.

 

“Zona de Interesse” está indicado ao Oscar de melhor filme, melhor filme internacional, direção, roteiro adaptado e som.  Se, porventura, eu tivesse direito a voto, cravaria o som.  E só.




 

 

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

POBRES CRIATURAS

 Antonio Carlos Egypto

 

 



POBRES CRIATURAS (Poor Things). Estados Unidos, 2023.  Direção: Yorgos Lanthimos.  Elenco: Emma Stone, Willem Dafoe, Mark Ruffalo, Ramy Youssef.  141 min.

 

Ficção científica desvairada em tom de comédia um tanto amalucada, mas nem sempre engraçada.  “Pobres Criaturas”, produção norte-americana dirigida pelo cineasta grego Yorgos Lanthimos, é um filme bastante estranho para merecer 11 indicações ao Oscar (perde somente para “Oppenheimer” com 13).

 

Nele se veem cabeças de porco em ave, animal metade pássaro-metade cachorro e carruagem dirigida apenas pela cabeça do cavalo.  Isso só para entrar no clima.

 

A personagem principal é Bella Baxter, num desempenho espetacular de Emma Stone, também produtora do filme e indicada ao Oscar de atriz.  Bella foi salva da morte por um experimento “científico” no começo do século XX, que lhe implantou o cérebro do bebê que ela estava gerando, quando resolveu se suicidar.  E ela se tornou uma mulher adulta e bonita num cérebro que nada conhecia do mundo e que precisava crescer e se desenvolver.  Mulher com cabeça e comportamento de criança, ou seja, uma espécie de Frankenstein de saias.

 

Seu “pai”, o estranho cientista Godwin Baxter (Willem Dafoe) também é uma espécie de Frankenstein e mais claramente marcado, com cortes intensos por todo o rosto, consequências dos experimentos de seu pai, também cientista.  Lembrem-se de que, no Frankenstein original, criador e criatura sempre foram confundidos.  Pois é! Vale a brincadeira.

 


Isso é só o começo de uma história delirante que, no entanto, pretende abordar o desenvolvimento, conhecimento e a libertação de Bella, no seu processo de amadurecimento rápido e avançado.  Uma espécie de ode ao feminismo.  Será?  Mas como assim?  Que liberdade e decisões autênticas e bem pensadas podem vir de uma pessoa despreparada e ingênua?

 

Aí vai um exemplo do filme.  Quando Bella descobre a pobreza e a morte de crianças por fome, ela toma todo o dinheiro espalhado que o amante ganhou no jogo, guarda numa caixa e o entrega a dois tripulantes do navio onde estavam vivendo, para que seja entregue aos pobres que precisam, ficando o casal sem dinheiro para nada, a partir daí.  Socialismo ou pura ingenuidade? 

 

Na mesma linha, suas descobertas dos prazeres do corpo, na masturbação, experimentando relações sexuais variadas e na prostituição que ela não chega a conceituar propriamente, não podem ser entendidas como libertação ou autonomia feminina. Falta consciência nessas ações infantilizadas de Bella.

 

Reconheço que o filme é bem feito e até divertido, embora cometa muitos excessos.  Quando, por exemplo, o personagem Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo, também indicado ao Oscar de ator coadjuvante) bate voluntariamente a cabeça contra o balcão ou contra a parede, por causa do ciúme de Bella, absolutamente inexplicável, dadas as circunstâncias, sabendo-se quem ela é.

 

Enfim, é um filme para quem gosta de curtir o non sense, o fantástico, o amalucado.  Não cabem muitas reflexões nesse terreno, apesar das intenções dos realizadores.  Fica tudo bem artificial e esquisito.  Pelo menos para mim.



domingo, 18 de fevereiro de 2024

EU, CAPITÃO

 Antonio Carlos Egypto

 

 



EU, CAPITÃO (Io, Capitano).  Itália, 2023.  Direção: Matteo Garrone.  Elenco: Seydou Sarr, Moustapha Fall, Issaka Sawadogo, Hichen Yacoubi.  121 min.

 

Migrar é um direito humano, o de ir e vir em busca de melhores condições de vida.  Nosso mundo de fronteiras, muros e burocracias, torna a vida dos imigrantes um problema constante a desafiar governos e instituições mundiais.  Mesmo em situações de guerra, extrema pobreza, fome, perseguições políticas e religiosas, é tudo muito complicado para se encontrar a paz em algum canto.  A ilegalidade torna-se a regra da imigração em nossos tempos conturbados.

 

“Eu, Capitão” é um drama ficcional, obviamente inspirado nessa realidade flagrante da atualidade, forte e denso, que nos leva a viver intensamente a saga da imigração ilegal de dois adolescentes africanos, senegaleses, em busca do sonho de viver melhor na Europa.  Partindo de Dakar, passando pelo deserto do Saara e pela Líbia, com vistas à Sicília, na Itália.

 

O filme é uma aventura, uma narrativa muito bem construída sobre um tema duro, difícil.  Matteo Garrone diz que essa saga dos imigrantes, suas histórias, são provavelmente as únicas possíveis narrativas épicas dos nossos tempos.  Para isso, se valeu do testemunho dos que estão mergulhados nessa situação, viveram as agruras dessa imigração.

 

O ponto de vista do filme é o dos imigrantes, no caso, os dois adolescentes, Seydou (Seydou Sarr) e Moussa (Moustapha Fall) e tudo o que eles vão experimentando nessa travessia.  O dinheiro que eles conseguiram guardar, que vai sendo todo consumido de forma exploradora, sem direitos, sem respeito, com maus tratos.  Abandono no deserto, prisão, tortura, trabalho escravo, delírios e fantasias necessários para enfrentar o que se vive (e isso é bem explorado visualmente) e uma travessia de barco inusitada, que fica a cargo de um dos jovens como condutor.  É isso que dá o nome de “Eu Capitão” ao filme.

 


Entender o sentimento dos jovens imigrantes a cada experiência radical a que são submetidos, sem que possam reagir à altura, revela-nos a face desumana dos nossos dias.  Ao mesmo tempo em que mostra as enormes possibilidades de luta e resistência que os seres humanos alcançam nas situações mais desesperadoras.

 

Durante as duas horas de duração do filme, somos levados a uma jornada de empatia com os protagonistas e a população mais ampla que os circunda, num filme realista de aventura e suspense que, apesar de tudo, destila esperança e, sobretudo, respeita seus retratados.

 

Para quem, porventura, ainda não conheça a obra do diretor e roteirista Matteo Garrone recomendo que veja também “Dogman”, de 2018, e “Gomorra”, de 2008.  “Eu, Capitão” está na disputa pelo Oscar de filme internacional como representante da Itália.




sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

ANATOMIA E COLONOS

 Antonio Carlos Egypto

 

 


 

ANATOMIA DE UMA QUEDA (Anatomie d’une chute).  França, 2023.  Direção: Justine Triet.  Elenco: Sandra Huller, Swann Arland, Milo Machado Graner, Antoine Reinartz.  150 min.

 

Filme de abertura da  47ª. Mostra Internacional de Cinema em São Paulo , “Anatomia de uma Queda” vem com a chancela da Palma de Ouro no Festival de Cannes e concorre ao Oscar.  Em essência, trata-se de um filme de tribunal, que é onde ocorre a grande maioria das sequências.  E o assunto é o esclarecimento de uma queda que resultou em morte.  Homicídio?  Suicídio? A investigação adentra a vida do casal Sandra e Samuel e de seu filho de 11 anos, que passou por um acidente aos 4 anos e deixou marcas profundas na relação do casal.  Essa relação sempre foi difícil, conturbada.  Sem escarafunchá-la, não se chegará a nada.  A questão é que a verdade, mesmo a factual, está sempre sujeita à subjetividade, aos sentimentos, aos desejos e às preferências.  O filme da já experiente diretora Justine Triet explora bem os meandros dessa relação e o contexto dessa morte.  Dela também fazem parte importante o garoto e seu cachorro.  Está menos preocupada em definir o caso do que em explorar seus meandros.  A narrativa é clássica, valendo-se de gravações de som e vídeos exibidas, para ir além do espaço formal do tribunal.   Por sinal, as formalidades conhecidas e esperadas acontecem bem pouco.  Como se já fosse possível uma conversa coloquial, com a participação dos envolvidos, réplica e tréplica de forma relativamente independente da acusação e da defesa.  Até a juíza é informal no modo de botar ordem na discussão.  Parece bem melhor assim do que aquilo a que estamos acostumados a ver, pelo menos nos filmes de tribunal.  Mas tem acontecido na prática, no século XXI, ao menos na França?  Não tenho notícia.  No fim das contas, um filme centrado muito mais nas questões psicológicas do que nas jurídicas, mas usando uma forma tradicional que o cinema já utilizou largamente.

 



 

OS COLONOS (Los Colonos) indicado chileno ao Oscar 2024 de filme internacional, dirigido por Felipe Gálvez Haberle, é um western.  O gênero sempre marcado pela ação e aventura aqui tem uma inflexão mais crítica e social. Mostra que as incursões civilizadoras do país no começo do século XX incluíam a matança indiscriminada dos indígenas, apenas imaginados como ameaçadores. Um autêntico genocídio estava em curso.  Além disso, a vida humana em geral valia muito pouco. Para o patrão, um braço perdido do empregado podia justificar o sacrifício imediato da vida, como acontece aos animais.  Os personagens da viagem pelas belas paisagens da cordilheira dos Andes: um jovem mestiço chileno, um mercenário americano e um tenente britânico entrarão em conflito.

Elenco : Camilo Arancibia, Mark Stanley, Benjamin Westfall, Alfredo Castro, Marcelo Alonso. 97 minutos.