sexta-feira, 30 de setembro de 2016

FESTIVAL DO RIO 2016


Antonio Carlos Egypto


De 06 a 16 de outubro acontece a edição do Festival do Rio 2016.  O público poderá ver 250 filmes, distribuídos em 15 mostras distintas, com sessões em mais de 20 cinemas da cidade.  Quem está no Rio não pode perder a oportunidade de ver o cinema que se faz hoje em todo o mundo e filmes que se destacaram em festivais internacionais, além de uma ampla mostra da produção nacional.

Na mostra Première Brasil, está “Pequeno Segredo”, de David Schurmann, escolhido para representar o Brasil na disputa por uma vaga ao Oscar de melhor filme estrangeiro.





 

                   PEQUENO SEGREDO


PEQUENO SEGREDO.  Brasil, 2015.  Direção: David Schurmann.  Com Júlia Lemmertz, Maria Flor, Erroll Shand, Marcelo Anthony, Fionnula Flanagan, Mariana Goulart.  108 min.


Nos anos 1980 e até início dos 1990, a transfusão de sangue foi responsável pela contaminação pelo HIV de muita gente no Brasil. O controle mais efetivo dos bancos de sangue demorou a alcançar os níveis de confiança que temos hoje.

A Aids, uma doença nova e mortal, assustou o mundo e, até que muitos milhões de dólares fossem investidos em pesquisas, que evoluíram para um quadro mais controlável e tratamentos que possibilitam mais sobrevida e melhor qualidade de vida aos portadores do HIV, era um estigma.  Até então, os contaminados estavam sujeitos a todo tipo de discriminação e preconceitos em larga escala.

A história real que o filme “Pequeno Segredo” conta envolve justamente essas questões.  Mas não se espere algo sombrio ou assustador daí.  Ao contrário.  O filme de David Schurmann é solar, se passa em grande parte no mar, em belos barcos que navegam pelos oceanos e se centra nas relações familiares.

Sua narrativa trabalha em dois tempos que se alternam para expor uma situação um tanto inusitada.  Mas o faz de forma novelesca, enfatizando o amor e a solidariedade em laços familiares que envolvem a pequena Kat.  A menina será adotada por uma família de velejadores e levada a percorrer o mundo.  O fato de a ação se passar na região amazônica, e na Nova Zelândia, agrega um componente importante: a beleza das locações.  O objetivo é o entretenimento, em que pese a seriedade do tema abordado.




Um elenco muito bom foi recrutado para o filme, embora seja forçoso reconhecer, nem sempre bem aproveitado.  A menina Mariana Goulart encanta, fazendo Kat.  Sua mãe na trama, Heloísa, vivida por Júlia Lemmertz, incomoda pela superproteção e pelas falas rasas, banais, beirando o piegas.  Júlia é uma ótima atriz, mas os diálogos não a ajudam.  Marcelo Anthony faz Vilfredo, o pai dessa família de velejadores, mas é um papel fraco, inexpressivo.  Maria Flor e Erroll Shand têm maior destaque nos seus desempenhos.  Seus papéis carregam conflitos e incertezas com um nível de humanidade mais convincente.

A atriz Fionnula Flanagan tem de sustentar um personagem que é um clichê ambulante, a senhora Bárbara.  Age de modo imbecil e diz tanta barbaridade que cai no ridículo.  Quando se redime, não dá para acreditar.  O problema não é da atriz, muito boa, mas do seu papel, que não faz qualquer sentido da forma como está desenvolvido.

Se, para indicar para concorrer ao Oscar deveríamos escolher nosso melhor produto, não seria o caso de cravar “Pequeno Segredo”.  Ele está a quilômetros de distância daquele que foi o seu concorrente mais direto, “Aquarius”.  O que se disse é que a comissão escolheu o que melhor poderia sensibilizar a Academia de Hollywood, que aprecia mais esse gênero de filme.  É possível.  Mas que essa escolha teve um evidente caráter político, não resta dúvida.





segunda-feira, 26 de setembro de 2016

A PASSAGEIRA

 Antonio Carlos Egypto



A PASSAGEIRA (Magallanes).  Peru, 2015.  Direção e roteiro: Salvador del Solar.  Com Damián Alcazar, Magaly Solier, Federico Lupi, Christian Meier.  109 min.


“A Passageira”, que dá título ao filme de Salvador del Solar no Brasil, é o nome do romance de Alonso Cueto (La Pasajera),  o que põe em evidência uma mulher que toma um táxi e abala os sentimentos do motorista, que a partir daí passará a procurá-la, com a intenção de se redimir de um passado cheio de culpa.

Esse homem é “Magallanes”, título original do filme peruano, que se centra, de fato, na figura desse personagem, que enfrentará seu passado comprometido, que está umbilicalmente ligado ao de seu país. Ele foi soldado do exército peruano, lutou contra o Sendero Luminoso, na guerra civil que abalou o Peru e produziu a ditadura de Fujimori.  Um passado violento e terrível, que todos parecem querer esquecer.  Mas é possível?




Magallanes, vivido pelo ótimo ator mexicano Damián Alcazar, trabalha hoje transportando e servindo ao “coronel”, papel do grande ator argentino Federico Lupi.  Coronel, evidentemente, remete aos núcleos de poder militar e também de domínio da terra, representação de uma elite dominante opressora.

A passageira que Magallanes reconhece é Celina, papel da atriz peruana Magaly Solier, em excelente atuação.  Celina sofreu diretamente sob o jugo do tal coronel, de modo vil, ainda muito jovem.  Ela é a primeira a querer esquecer o sofrimento atroz que passou.  Ao coronel, a seu filho e seus colaboradores policiais e políticos, não interessa mexer nisso.  As atrocidades se esquecem.  No caso do coronel, a idade avançada já lhe produziu a doença de Alzheimer, ou equivalente, de modo que ele não se lembra de nada.




É do esquecimento, do não se lembrar, do não querer saber, do propósito declarado de pôr uma pedra em cima de tudo que se move esse pequeno grande filme.  Uma metáfora das feridas deixadas em aberto pelas ditaduras e guerras da América Latina, de 25, 30 anos atrás, que não fecharam, mas que não podem ser ignoradas.  Remetem a uma história que compromete cada um e todos, de um modo ou de outro.  Algozes, vítimas, omissos, a todos cabe a tarefa de resgatar a memória do passado recente, para poder superá-lo e não repetir a tragédia.

“Magallanes” é um filme que tem uma trama muito bem urdida, no sentido de nos revelar, na história pessoal dos três principais personagens, as dimensões sociopolíticas da realidade peruana e, claro, latino-americana do período.  Uma época que esperávamos superada pela democracia recém-conquistada, mas que está sempre em risco.  Sobretudo, quando tudo o que se quer é esquecer e não enfrentar os fantasmas e demônios que se produziram por aqui.




Além disso “A Passageira” trabalha com uma narrativa policial e de suspense que mantem o espectador muito ligado nas cenas e sequências apresentadas. A resolução do filme é fantástica, para mostrar a quem interessa e as motivações que estão por trás desse desejo de apagar a História.

A produção envolve a participação de diversos países de língua espanhola, como Argentina, Colômbia e Espanha.  O peruano Salvador del Solar já tem uma larga trajetória como ator de cinema e TV.  Sua estreia como diretor é muito convincente.




quarta-feira, 21 de setembro de 2016

O SILÊNCIO DO CÉU


Antonio Carlos Egypto




O SILÊNCIO DO CÉU (Era el Cielo).  Brasil, Uruguai, 2015.  Direção: Marco Dutra.  Com Leonardo Sbaraglia, Carolina Dieckmann, Chino Darín, Álvaro Armandi Ugón, Mirella Pascual.  102 min.



A vida de um casal pode resistir a algumas omissões e segredos, talvez, sem maiores sobressaltos.  Mas quando algo muito importante aconteceu, foi vivido com muita dor e de forma traumática e, ainda assim, nada se diz sobre isso, como fica a situação?  Pior: e quando o outro viu o que aconteceu, sabe do que se trata e também não aborda o assunto, porque tem algo muito importante a esconder?

Os silêncios substituem a comunicação e o diálogo, criando um insuportável tabu na vida dos dois.  É curioso como os passos de um se guiam pelos passos do outro, justamente em relação ao assunto-tabu.  Certos tipos de cuidados, apoios e solidariedade, se darão nessa zona escura que, de um modo ou de outro, é conhecida por eles.




O filme “O Silêncio do Céu” aborda com muita competência essa trama, em que o psiquismo dos personagens fala mais alto.  Muito mais importante é o não-dito, em relação a tudo que é dito.  O clima onde isso se dá, em torno da casa, do ateliê de trabalho, de um grande viveiro de venda de plantas e em torno do movimento dos automóveis, coloca o espectador dentro do mistério.  Que para ele não é exatamente um mistério: é uma grande questão entender as motivações dos comportamentos naquela situação dada.  E o que se abre a partir desse universo de omissões como consequência.  A tragédia é que omissão puxa omissão e as coisas podem se agravar muito.

Para alcançar um resultado muito expressivo nas interpretações, o diretor Marco Dutra contou com Carolina Dieckmann, no papel de Diana, que desde a primeira cena vive um drama pesado e devastador, que ela terá de carregar ao longo de todo o filme.  E fazer isso representando em espanhol.  Ela é brasileira, mas a produção é toda filmada no Uruguai, falada em espanhol. O outro elemento do casal é Mário, papel do ator argentino Leonardo Sbaraglia, que tem de se mostrar contido, cheio de medos, covarde, sofrendo por dentro e em vias de explodir.  Papel exigente, de que ele dá conta muito bem.  O ator já é conhecido no Brasil por filmes como “Relatos Selvagens” (2014), “O Que os Homens Falam” (2012) e “Plata Quemada” (2000).




Todos os demais atores e atrizes compõem  com segurança esse mundo tenso, angustiante, opressor e potencialmente violento, em termos psíquicos.  Entre eles, a presença do jovem Chino Darín, filho de Ricardo Darín, que tem pela frente o desafio de se mostrar à altura do talento do pai.  Está bem no filme, no papel que lhe coube.  Há, também, a atriz uruguaia Mirella Pascual, conhecida por sua atuação em “Whisky” (2004).

O roteiro, muito bem construído, contou com três talentos.  Primeiro, o do escritor do romance que lhe deu origem, “Era el Cielo”, o argentino Sergio Bizzio.  Segundo, o da  cineasta argentina Lucía Puenzo, de “XXY” (2008) e “O Médico Alemão” (2013).  Terceiro, o do cineasta brasileiro Caetano Gotardo, do excelente “O Que Se Move” (2013).




O jovem diretor brasileiro Marco Dutra realizou “Quando Eu Era Vivo” (2012) e “Trabalhar Cansa” (2011), este em parceria com Juliana Rojas, dois filmes bem recebidos pela crítica.

“O Silêncio do Céu” ganhou no 44º. Festival de Cinema de Gramado o prêmio de melhor filme pelo júri da crítica, além de melhor desenho de som e o prêmio especial do júri.  Um belo trabalho de equipe que uniu brasileiros, uruguaios e argentinos numa autêntica produção latino-americana.  Fato raro e alvissareiro.





domingo, 18 de setembro de 2016

O HOMEM QUE VIU O INFINITO


Antonio Carlos Egypto





O HOMEM QUE VIU O INFINITO (The Man Who Knew Infinity).  Inglaterra, 2015. 
Direção e roteiro: Matt Brown.  Com Jeremy Irons, Dev Patel, Devika Bhise, Stephen Fry, Toby Jones.  110 min.



De Madras (hoje, Chennai), no extremo sul da Índia, no início do século XX, surgiu um matemático brilhante, que contribuiu com fórmulas decisivas para o avanço da ciência e o alcance de soluções muito complexas.  Com um detalhe: Ramanujan (1887-1920), esse indiano, notável matemático, não tinha estudo formal nenhum.  Ainda assim, seu talento era tão evidente que ele acabou numa universidade inglesa, em Cambridge (onde também estava Bertrand Russell) e chegou a pertencer à Royal Society de Ciências, uma honraria por merecimento.




O filme “O Homem que Viu o Infinito”, de Matt Brown, pretende contar a história real desse gênio da matemática, especialmente no seu período de estudos e publicações na Inglaterra, tendo como mentor e amigo, apesar da improbabilidade que sempre cercou essa amizade, do professor e também ilustre matemático G. H. Hardy.  O período é o que começa em 1913, atravessa toda a Primeira Guerra Mundial e a ultrapassa um pouco.  Oceanos de distância os separavam, mesmo estando próximos, se pensarmos nas crenças, modos de vida, hábitos alimentares, de vestuário, entre outras coisas, associados a um e a outro. 

Por outro lado, a guerra distanciou Ramanujan de sua amada e família, de modo absoluto.  No filme, também pela correspondência não entregue, um dos elementos de uma narrativa novelesca, que põe a tal realidade a serviço de uma fórmula comercial de contar histórias para entreter e agradar o público.




Outro elemento é a adoção da ideia de que todo o conhecimento absurdo daquele gênio da matemática derivava de uma intuição divina.  Daí a dificuldade que o indiano teve para construir as provas acadêmicas daquilo que ele “sabia que era assim “.  Quem quiser crer que a matemática deriva diretamente de Deus, ou de uma deusa hindu, que compre essa narrativa.  A mim, não pode convencer, como não deveria convencer o grande professor Hardy, ateu convicto, mas, sabe como é, né?

O que não dá é para vender a ideia de que a realidade é – ou foi – assim.  Isso é uma interpretação religiosa dos fatos.  Algo que está em evidência em certos estudos pseudocientíficos, associados à física quântica, na atualidade.  Em todo caso, Deus ainda carece de provas, não basta a convicção. Tal como andou se falando muito por aqui.




“O Homem que Viu o Infinito” é uma boa produção, a história é bem contada, de forma linear, filmada na Índia e na Inglaterra, em belíssimas locações e tem um elenco muito bom.  Quem faz Ramanujan é Dev Patel, ator de “Quem Quer Ser um Milionário?”, e o professor Hardy é o papel de Jeremy Irons.  A amada Janaki é vivida pela bela atriz Devika Bhise, convincente no seu sofrimento.  O que não me convence é a ideologia do filme.





quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Viva a França!

Tatiana Babadobulos




VIVA A FRANÇA! (En Mai Fais Ce Qu'il Te Plaît), França, 2015. Direção: Christian Carion. Roteiro: Christian Carion, Andrew Bampfield e Laure Irmann.  Com August Diehl, Joshio Marlon, Alice Isaaz.  114 min.



Para recontar o êxodo de milhões de franceses durante a Segunda Guerra Mundial, nos anos 1940, o cineasta francês Christian Carion se vale do olhar de um pai alemão e de seu filho de oito anos de idade.

É durante a invasão nazista na França que se passa o longa-metragem “Viva a França!” (“En Mai Fais Ce Qui’il Te Plaît”). Na trama, Hans (August Diehl), que se considera comunista, foge da Alemanha e, fingindo ser belga, se mistura com os franceses que vivem em um pequeno vilarejo. Proíbe o filho, Max (Joshio Marlon), por exemplo, de falar alemão. 
Mesmo entre os dois, o idioma oficial deve ser o francês.

Hans, porém, é descoberto e preso. Max fica para trás, mas é cuidado pela professora, Suzanne (Alice Isaaz). Com a ajuda dela, aliás, o garoto tem uma ótima ideia para não desistir do pai.

Junto com o prefeito e outros habitantes do vilarejo, os dois vão viajar de carroça, a pé, de bicicleta, com um caminhão velho, rumo ao norte, para, então, atravessar até o Reino Unido e fugir dos nazistas.



Ter como enfoque o olhar das crianças não é novidade no cinema, mas é sempre emocionante. Em “O Menino do Pijama Listrado” (2008), o tema é o holocausto, contado aos olhos de um pequeno rapaz. Já no italiano “A Vida É Bela” (1997), o pai finge estar participando de uma grande brincadeira para driblar as emoções do filho, pois, na verdade, está em um campo de concentração. Os dois finais a história já deu conta de escrever.

Neste longa francês, pontuado pela música original de Ennio Morricone (“Por um Punhado de Dólares”, “Os Intocáveis”), a trama é baseada em histórias da mãe do cineasta.

“Viva a França!” é um road-movie que se passa no interior daquele país e traz pequenas histórias de família, enchendo o espectador de esperança.

O longa passou pelo Festival Varilux de Cinema Francês, neste ano, e agora estreou comercialmente.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

HESTÓRIAS DA PSICANÁLISE


Antonio Carlos Egypto





HESTÓRIAS DA PSICANÁLISE.  Brasil, 2015.  Direção: Francisco Capoulade.  Documentário.  96 min.


Impossível falar do documentário que trata de Freud, sua leitura e aplicação no Brasil, sem se referir ao esdrúxulo título dado ao filme: “Hestórias (sic) da Psicanálise – Leitores de Fred”.  Com hestórias, tenta-se criar um neologismo para abarcar o fato de que aborda questões históricas da psicanálise no Brasil e relata casos e situações ficcionais, invenções ou brincadeiras que fizeram parte disso.  Para evitar escrever Histórias e Estórias da Psicanálise, tascaram logo Hestórias.

Faz sentido?  Eu acho que não.  Para começar, a palavra estória não vingou na língua portuguesa, foi uma ideia infeliz, não aprovada, nem recomendada, por quem se expressa em bom português.  Os dicionários, quando a registram, geralmente o fazem criticamente.  A palavra história abarca todo o sentido que se pretendeu considerar aqui.




O cinema hoje já nem mais concebe documentário e ficção como coisas totalmente diferentes.  Todo fato comporta não só interpretações várias, mas memórias e lembranças que são inevitavelmente seletivas e a verdade, como tal, se perde.  Há um diálogo, uma fusão, um questionamento e uma integração do documentário com a ficção.  Os filmes refletem esse amálgama de fatos, situações, encenações, personagens, que se confundem no real, no imaginário, oriundos do mundo interno ou da dimensão sociológica, sem delimitações claras.

Isso posto, é bem intencionada a ideia de aproximar Freud de um público mais amplo do que o dos profissionais da área.  Já que o povo diz que “Freud explica”, que tal entender um pouco quem foi ele e por que ele jamais teve a intenção de explicar tudo, como imagina o leigo.

Para isso, o diretor Francisco Capoulade, psicanalista e documentarista, não poupou esforços e foi atrás de um grande número de entrevistados ilustres, como Christian Dunker, Lya Luft, Joel Birman, André Medina Carone, Leopold Nosek, Monique David-Mérard, Mário Eduardo Costa Pereira, Paulo Sérgio Rouanet, Miriam Chnaiderman, Marcelo Masagão e muitos outros.  Filmou cenas de mar por dentro, foi até as ruas de Viena, procurando contextualizar o universo de Freud também nessas imagens.




No entanto, o filme não vai além de ser um documentário bastante convencional, em que os depoimentos, sejam de que tipo forem, ocupam quase todo o espaço e, se sucedendo um após o outro e alternando as falas, vão interessar muito a quem já faz parte desse universo, mas se tornarão cansativos para o público em geral.  Além de que algumas questões, embora relevantes, são eruditas.  A discussão de como se leu Freud em português, a partir da tradução em inglês do original alemão e, com isso, se introduziram distorções conceituais, dificilmente envolverá os que não se utilizam da obra, brilhante, genial, de Freud para objetivos profissionais.


É verdade que o trabalho do grande pensador vai muito além do que a sua aplicação na análise de pacientes, aqui ou em qualquer outro canto do mundo.  Mas não será dessa forma que se conseguirá alcançar uma dimensão maior de popularização da obra freudiana.  O documentário “Hestórias da Psicanálise” vai interessar aos psicanalistas, psicólogos, psiquiatras e outros médicos e educadores, em função das informações sobre a psicanálise no Brasil e pelas falas inteligentes dos ilustres entrevistados.  Como cinema, nada de novo, além do título despropositado.


sexta-feira, 2 de setembro de 2016

AQUARIUS


Antonio Carlos Egypto




AQUARIUS, Brasil, 2015.  Direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho.  Com Sônia Braga, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Humberto Carrão, Carla Ribas.  143 min.



A personagem Clara, em grande desempenho de Sônia Braga, é uma mulher-coragem, que não hesita em desafiar interesses poderosos para preservar seus direitos.  No caso, o de habitar um apartamento do qual ela cuida com carinho, de frente para o mar, na praia de Boa Viagem, em Recife.  Num ambiente aconchegante e cercado de produtos culturais, principalmente livros e LPs de vinil, ela vive sua vida tranquila de viúva, jornalista e escritora aposentada.  Seus três filhos adultos já estão fora de casa, vivendo suas próprias vidas.

Seu direito fica ameaçado por uma empresa de engenharia que resolve demolir o prédio onde ela mora e construir lá um novo empreendimento.  Compra todas as unidades, mas Clara não está disposta a vender a sua.




Nesse confronto, que se estabelece porque os interesses em jogo são incompatíveis, Kleber Mendonça Filho vai construindo uma trama que revela os múltiplos aspectos das relações que permeiam a sociedade brasileira, sua história, os conflitos de classe e de poder, o caráter autoritário que a posse e o dinheiro trazem, o vale-tudo que acaba sendo gestado para impor e obrigar decisões que contrariam direitos individuais.  E mais: mostrar quem pode mais, a qualquer preço, com a disposição de se utilizar da violência mais abjeta.  Isso se faz, no entanto, sob a aparência de cordialidade.  Ou seja, do homem cordial a serviço da opressão.  Para tentar resistir a isso, é necessária uma tenacidade absurda.  Há um sistema que sustenta tudo isso e fragiliza o indivíduo na luta por seus direitos.  O que torna a resistência uma questão política fundamental.

Há outras questões humanas que permeiam essa narrativa, envolvendo elementos como o câncer e o preconceito, o desejo e a pornografia, as relações familiares e os interesses de cada um, o respeito a uma reação obstinada que a todos pode parecer enlouquecida, a avalanche de uma religiosidade que também oprime e por aí vai.




“Aquarius” alonga sua história para recheá-la da complexidade das relações humanas e sociais e possibilitar uma reflexão séria sobre a realidade brasileira dos dias atuais.  Torna-se um produto oportuno e importante, nesse momento grave que o país vive.  Não podemos ser governados por simplificações grosseiras, ódios e pelos interesses mais inconfessáveis.  Temos de encontrar nosso eixo, nosso rumo, superando atavismos históricos terríveis.  Em “O Som Ao Redor”, de 2013, o diretor Kleber Mendonça Filho já havia apontado nessa mesma direção e partido também das questões urbanas da modernidade, onde os arcaísmos se escondem.

O filme tem uma trilha sonora forte e expressiva, composta quase totalmente pela MPB da melhor cepa que hoje, em tempos digitais, já pode ser considerada antiga.  Mas é magnífica.  Tal como a figura da personagem Clara, a quem a trilha, de certo modo, descreve.  Destaque para a canção “Hoje”, composição e interpretação de Taiguara.





“Aquarius” foi exibido no Festival de Cannes e teve grande repercussão, não só pela qualidade do trabalho, mas também pela manifestação que a equipe do filme realizou no tapete vermelho, denunciando ao mundo o que estava ocorrendo na política brasileira.  Isso incomodou muito os que estão agora no poder.  Por conta disso, pode deixar de ser indicado como o nosso representante, na disputa pelo Oscar de filme estrangeiro, uma indicação que ele, sem dúvida, mereceria.