quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

EU, DANIEL BLAKE


Antonio Carlos Egypto




EU, DANIEL BLAKE (I, Daniel Blake)Inglaterra, 2016.  Direção : Ken Loach.  Com Dave Johns, Hayley Squires, Dylan Mc Kierman, Sharon Percy.  101 min.



O cineasta britânico Ken Loach chega aos 80 anos de idade levando mais uma Palma de Ouro em Cannes, com “Eu, Daniel Blake”.  A anterior foi conquistada há dez anos, em 2006, com “Ventos da Liberdade”.  A filmografia do diretor é extensa e brilhante, envolve títulos como "Terra e Liberdade”, de 1995, “Meu Nome é Joe”, de 1998, “Pão e Rosas”, de 2000, “A Parte dos Anjos”, de 2012, “Jimmy’s Hall”, de 2014, para citar só alguns de seus trabalhos.  Ele tem sólida formação política e um decidido e generoso olhar voltado para a classe trabalhadora.  É um dos maiores críticos, no cinema, dos desmontes das políticas públicas voltadas para o bem-estar social.

Em “Eu, Daniel Blake”, Loach mostra que uma política de serviço social, aparentemente destinada a proteger os mais pobres e as decorrências a que estão sujeitos, pode ser cruel e insensível, com relação àqueles que deveria apoiar.  Benefícios concedidos por lei, como auxílio em situação de doença que incapacita temporariamente ao trabalho e o seguro desemprego, esbarram numa burocracia infernal, despropositada e, consequentemente, indutora de injustiça, deixando ao desamparo justamente quem lhes cabe proteger. 




Perguntas distantes do problema de saúde do trabalhador e totalmente inadequadas fazem parte de formulários a serem enviados somente pela Internet e os contatos se fazem por telefone ao bel prazer de um técnico que vai ligar para o trabalhador no dia e hora em que melhor lhe aprouver.  Enquanto isso, o tempo passa e nada se resolve.  Ou melhor, o aluguel deixa de ser pago, a luz é cortada e os mais pobres passam fome e frio dentro de casa.  Quem é uma espécie de analfabeto digital, como o personagem Daniel, com 40 anos de experiência e habilidade para consertar de tudo, menos computadores, fica perdido em meio a dificuldades para ele insolúveis, na condição de viúvo, sem filhos ou netos para ajudá-lo. Assim humilhado, ele vai perdendo a própria dignidade.

Além da burocracia, Ken Loach deixa claro também o quanto o espírito britânico rígido, em relação a normas e procedimentos, se torna cruel junto aos mais fracos.  A famosa pontualidade inglesa se volta contra uma jovem que, com duas crianças, se perde na cidade em que acaba de chegar, mas não é atendida, em função de alguns minutos de atraso.




O trabalhador é um número, tratado como objeto, para quem o sistema não é capaz de se dignar a olhar e compreender suas necessidades.  Isso num período de crise e mudanças no paradigma econômico europeu, em época de desmanche do Estado de Bem-Estar Social.

A filmagem de Loach mescla esse óbvio realismo crítico, capaz de revoltar qualquer pessoa de bom senso, a uma experiência emocional, que nos conta o que vivem e sentem os personagens envolvidos nessa trama kafkiana.  Pessoas reais, com pensamentos e sentimentos, sua luta diária, seus valores, qualidades e defeitos, estão lá, num cinema soberbo, que exala humanismo.  Como nosso mundo está cada vez mais carente de olhares assim!

“Eu, Daniel Blake” tem no comediante Dave Johns um dedicado desempenho como protagonista dramático, que mantém uma leveza interpretativa muito apropriada ao tema tratado.  E à situação, que é de deixar qualquer um louco, desesperado.  Mas quem teve um ataque cardíaco precisa se conter a qualquer custo. A atriz Hayley Squires, no papel de Katie, a jovem a quem Daniel ajuda a sobreviver, é muito expressiva e afetiva em sua performance.  O elenco, sem estrelas, é muito bom, inclusive o menino Dylan Mc Kierman.




O roteiro é bem construído e todos os detalhes de cotidiano que aparecem são essenciais para a empatia com os dramas da classe trabalhadora em momentos de dificuldade.  Não há excessos ou gordura na trama.  O final é previsível, mas verdadeiro.


“Eu, Daniel Blake” é um filme que pode ajudar algumas pessoas a compreenderem a realidade de uma classe social diferente da sua, experimentando com Daniel uma dimensão do cotidiano em que o respeito pelo outro vale muito.  Julgar é fácil, entender é sempre muito difícil.  Em tempos de redes sociais, barbaridades são postadas diariamente como se fossem verdades, elas refletem apenas a ignorância e a desinformação de seus autores.  Se eles se dignassem a ver um filme como esse, quem sabe poderiam enxergar um pouco os preconceitos que os movem.


terça-feira, 13 de dezembro de 2016

NERUDA


Antonio Carlos Egypto





NERUDA (Neruda).  Chile, 2016.  Direção: Pablo Larrain.  Com Luís Gnecco, Gael García Bernal, Alfredo Castro, Mercedes Morán.  107 min.


O poeta Pablo Neruda (1904-1973), prêmio Nobel de Literatura, é uma das maiores referências culturais do Chile, em todos os tempos.  O poeta do amor também teve forte participação política, foi senador da República, vinculado ao Partido Comunista.  E nessa condição chegou a apoiar a eleição de Gabriel González Videla (1898-1980).  Mas Videla se tornaria, depois, um forte perseguidor dos comunistas.  Em 1948, promoveu uma verdadeira caça, conhecida como “A Lei Maldita”, a versão chilena do macartismo nos Estados Unidos, na mesma época.  A força da União Soviética, após a vitória na Segunda Guerra Mundial, incomodava muito e era preciso combatê-la.  A Guerra Fria vigorava.  Segundo um diálogo do filme “Neruda”, de Pablo Larrain, o presidente do Chile tem um chefe: é o presidente dos Estados Unidos.  Logo, é natural que siga as ordens da matriz. Bem, o fato é que Pablo Neruda, na condição de senador, atacou o presidente González Videla e denunciou tudo o que estava acontecendo com centenas de presos e perseguidos.  Claro que se tornou um deles, teve que se esconder e brincar de gato-e-rato com a polícia, que estava em seu encalço.




A história dessa perseguição é o assunto do filme “Neruda”, protagonizado por Luís Gnecco, no papel do poeta, e pelo ator mexicano Gael García Bernal, no papel do policial Oscar Peluchoneau, filho de um grande agente que havia marcado história na polícia.

Curiosamente, o personagem secundário do policial é quem narra a história, é do seu ponto de vista que vamos conhecendo o que se passou.  Inclusive, com direito a falas em off, que narram, explicam o que se passa na tela, na visão dele.  Recurso que incomoda e é desnecessário.  No entanto, é interessante o enfoque do filme, produz uma história de suspense ao estilo noir, que é capaz de interessar uma plateia menos politizada.




A caçada é emocionante, tem lances curiosos, surpresas, e é uma produção ficcional com base na realidade histórica.  O policial Oscar é uma criação do escritor, existe só em função de Neruda, só relacionado a ele, não dispõe de realidade própria.  E é o centro da narrativa do filme, contando com um ator global que puxa plateias, como Gael García Bernal.

Essa mesma história já havia sido filmada no Chile, em caráter ficcional, há cerca de dois ou três anos.  O filme “Neruda Fugitivo”, de Manuel Basoalto, que é parente de Neruda, é bem inferior ao trabalho atual de Larrain, que vai mais fundo, questiona e inova sua narrativa, sem medo de tirar o poeta do pedestal em que se encontra.




Pablo Neruda cresceria de importância internacional, depois desse episódio narrado nesses filmes e só morreria em 1973, doze dias depois de instaurado o golpe militar que levou Augusto Pinochet ao poder e que produziu uma das ditaduras mais sanguinárias do continente.  Oficialmente, Neruda morreu em decorrência de câncer de próstata, mas um calmante que lhe foi injetado teria produzido a parada cardíaca que o matou.  Há quem não só questione como ainda esteja investigando a hipótese de assassinato, perfeitamente plausível naquele momento político.  Mas essa já é uma história posterior, que não está no filme.  Talvez no futuro, em um novo filme, novas revelações possam aparecer.

O diretor Pablo Larrain já nos deu “No”, de 2012, sobre o plebiscito que tirou Pinochet do poder, analisando aquele peculiaríssimo processo eleitoral com maestria.  Brilhou ainda mais com “O Clube”, de 2015, que trata com muita clareza da pedofilia dentro do clero da igreja católica.  Mostra-se um cineasta que mergulha na história chilena, fazendo um cinema político importante e crítico, com posição, mas sem qualquer dose de panfletarismo.  “Neruda” concorre ao Oscar 2017 de filme estrangeiro, pelo Chile.



sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

BLOW-UP

  
Antonio Carlos Egypto





BLOW-UP (Blow-Up).  Inglaterra/Itália, 1966.  Direção e roteiro: Michelangelo Antonioni.  Com David Hemmings, Sarah Miles, Vanessa Redgrave, Veruska.  111 min.



Para quem gosta de cinema, não há nada melhor do que rever grandes filmes, experiências marcantes, históricas, na telona.  E isso vem acontecendo.  Periodicamente, têm sido relançados no cinema alguns dos mais marcantes e significativos filmes de sua história.  Inúmeras vezes já deixei o DVD em casa e fui ao cinema, para ver um filme que eu teria à mão a qualquer hora.  E não me arrependi.




Minha sugestão hoje é ir ver “Blow-Up”, do mestre italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007), filme em inglês, já que trata da Swinging London dos anos 1960.  O personagem central é Thomas (David Hemmings), fotógrafo de moda naquele fervilhante período britânico, que se envolve acidentalmente com o que pode ser um assassinato, revelado pelas lentes de sua câmera.  Lá estará a verdade.  Ou não?  A cada ampliação da revelação das fotos, uma nova imagem e uma nova dúvida.  Onde está a verdade?  Mesmo a verdade revelada pela câmera, será que ela existe?  É alcançável pelos recursos tecnológicos, no caso, aqui, da fotografia? 

Será preciso ver para crer?  Ou melhor será crer para ver?  Nesse sentido, o final do filme é genial, uma das melhores sequências cinematográficas já feitas.  Se alguém ainda não viu, ou não se lembra, vale a pena conferir.




“Blow-Up” é um filme absolutamente brilhante que, a par de mexer com a insegurança, o medo, a paranoia, a desorientação humanas, revela, como poucos o fizeram, todo o clima efervescente dos anos 1960, com sua transgressão, seu psicodelismo, seu amor livre, suas festas e drogas.  Que nos legou, por exemplo, a música dos Beatles, a revolução sexual, a emancipação feminina, a visibilidade dos gays, as intensas manifestações de rua, o espírito crítico, a luta por mudanças.  Tudo isso tem muito a ver com o sentido inovador e profundamente questionador da arte de Antonioni.

A ele foi atribuído um especial interesse em revelar e desvendar a incomunicabilidade humana em seu filmes, mas ele vai muito além disso.  Antonioni inova na narrativa, no jeito de contar uma história, quando é o caso, ou de vivenciar uma situação, um personagem, um grupo de personagens, uma coletividade que se expressa, um sistema econômico e social que aprisiona ou oprime.  E tem um estilo maravilhoso de narrar tempos mortos, momentos em que nada acontece ou acontece na mente, nos movimentos e sentimentos dos personagens.




Em “Blow-Up”, aqui lançado com o estúpido subtítulo de “Depois daquele beijo”, Antonioni baseia seu roteiro, feito em parceria com Tonino Guerra e Edward Bond, em um conto do escritor argentino Julio Cortázar.  Revê-lo restaurado, e na tela grande, é um luxo que todos merecem, 50 anos passados de seu lançamento original, quando foi o grande vencedor do Festival de Cannes de 1967.

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Se “Blow-Up” é um velho notável filme que volta ao cartaz, “Belos Sonhos”, de Marco Bellocchio, é um produto novo em folha, muito talentoso, que está sendo lançado agora.  Veja a crítica postada no cinema com recheio, por ocasião da 40ª. Mostra.