Antonio Carlos
Egypto
EU,
DANIEL BLAKE (I, Daniel Blake). Inglaterra, 2016. Direção : Ken Loach. Com Dave Johns, Hayley Squires, Dylan Mc Kierman, Sharon Percy. 101 min.
O cineasta britânico Ken Loach chega aos 80 anos de
idade levando mais uma Palma de Ouro em Cannes, com “Eu, Daniel Blake”. A anterior foi conquistada há dez anos, em
2006, com “Ventos da Liberdade”. A
filmografia do diretor é extensa e brilhante, envolve títulos como "Terra
e Liberdade”, de 1995, “Meu Nome é Joe”, de 1998, “Pão e Rosas”, de 2000, “A
Parte dos Anjos”, de 2012, “Jimmy’s Hall”, de 2014, para citar só alguns de
seus trabalhos. Ele tem sólida formação
política e um decidido e generoso olhar voltado para a classe
trabalhadora. É um dos maiores críticos,
no cinema, dos desmontes das políticas públicas voltadas para o bem-estar
social.
Em “Eu, Daniel Blake”, Loach mostra que uma política
de serviço social, aparentemente destinada a proteger os mais pobres e as
decorrências a que estão sujeitos, pode ser cruel e insensível, com relação
àqueles que deveria apoiar. Benefícios
concedidos por lei, como auxílio em situação de doença que incapacita
temporariamente ao trabalho e o seguro desemprego, esbarram numa burocracia
infernal, despropositada e, consequentemente, indutora de injustiça, deixando
ao desamparo justamente quem lhes cabe proteger.
Perguntas distantes do problema de saúde do
trabalhador e totalmente inadequadas fazem parte de formulários a serem
enviados somente pela Internet e os contatos se fazem por telefone ao bel
prazer de um técnico que vai ligar para o trabalhador no dia e hora em que
melhor lhe aprouver. Enquanto isso, o
tempo passa e nada se resolve. Ou
melhor, o aluguel deixa de ser pago, a luz é cortada e os mais pobres passam
fome e frio dentro de casa. Quem é uma
espécie de analfabeto digital, como o personagem Daniel, com 40 anos de
experiência e habilidade para consertar de tudo, menos computadores, fica
perdido em meio a dificuldades para ele insolúveis, na condição de viúvo, sem
filhos ou netos para ajudá-lo. Assim humilhado, ele vai perdendo a própria
dignidade.
Além da burocracia, Ken Loach deixa claro também o
quanto o espírito britânico rígido, em relação a normas e procedimentos, se
torna cruel junto aos mais fracos. A
famosa pontualidade inglesa se volta contra uma jovem que, com duas crianças,
se perde na cidade em que acaba de chegar, mas não é atendida, em função de
alguns minutos de atraso.
O trabalhador é um número, tratado como objeto, para
quem o sistema não é capaz de se dignar a olhar e compreender suas
necessidades. Isso num período de crise
e mudanças no paradigma econômico europeu, em época de desmanche do Estado de
Bem-Estar Social.
A filmagem de Loach mescla esse óbvio realismo
crítico, capaz de revoltar qualquer pessoa de bom senso, a uma experiência
emocional, que nos conta o que vivem e sentem os personagens envolvidos nessa
trama kafkiana. Pessoas reais, com
pensamentos e sentimentos, sua luta diária, seus valores, qualidades e
defeitos, estão lá, num cinema soberbo, que exala humanismo. Como nosso mundo está cada vez mais carente
de olhares assim!
“Eu, Daniel Blake” tem no comediante Dave Johns um
dedicado desempenho como protagonista dramático, que mantém uma leveza
interpretativa muito apropriada ao tema tratado. E à situação, que é de deixar qualquer um
louco, desesperado. Mas quem teve um
ataque cardíaco precisa se conter a qualquer custo. A atriz Hayley Squires, no
papel de Katie, a jovem a quem Daniel ajuda a sobreviver, é muito expressiva e
afetiva em sua performance. O elenco, sem estrelas, é muito bom,
inclusive o menino Dylan Mc Kierman.
O roteiro é bem construído e todos os detalhes de
cotidiano que aparecem são essenciais para a empatia com os dramas da classe
trabalhadora em momentos de dificuldade.
Não há excessos ou gordura na trama.
O final é previsível, mas verdadeiro.
“Eu, Daniel Blake” é um filme que pode ajudar algumas
pessoas a compreenderem a realidade de uma classe social diferente da sua,
experimentando com Daniel uma dimensão do cotidiano em que o respeito pelo
outro vale muito. Julgar é fácil,
entender é sempre muito difícil. Em tempos
de redes sociais, barbaridades são postadas diariamente como se fossem verdades,
elas refletem apenas a ignorância e a desinformação de seus autores. Se eles se dignassem a ver um filme como
esse, quem sabe poderiam enxergar um pouco os preconceitos que os movem.