quarta-feira, 29 de julho de 2015

TUDO POR AMOR AO CINEMA


Antonio Carlos Egypto




TUDO POR AMOR AO CINEMA.  Brasil, 2014.  Direção e roteiro: Aurélio Michiles.  Documentário.  97 min.


O amazonense Cosme Alves Netto (1937-1996) foi curador da cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, por mais de três décadas.  Nesse período, e mesmo antes dele, se notabilizou na luta pela preservação e divulgação de antigos filmes brasileiros.  E dos filmes que mais admirava na infância, como ele mesmo dizia.

Seu trabalho adquiriu grande significado político, em função do período da ditadura,  que envolvia forte censura, prisões e tortura.  Ele assumiu a cinemateca do MAM, cujo acervo ele constituiu, a partir de agosto de 1964, poucos meses após a deflagração do golpe.  Seu trabalho foi de resistência.  Envolvia o agrupamento e a organização de manifestações culturais, a guarda clandestina de filmes perseguidos pela ditadura e a disposição de procurar exibi-los sempre que uma oportunidade pudesse aparecer.




Basta lembrar que as filmagens interrompidas de “Cabra Marcado Para Morrer”, de Eduardo Coutinho, que puderam ser retomadas duas décadas depois porque ficaram lá guardadas sob o nome falso de “A Rosa do Campo”, permitiram ao diretor realizar um dos mais importantes trabalhos da história da filmografia brasileira.

Cosme foi, mesmo, uma figura apaixonada, como o título do filme “Tudo Por Amor ao Cinema” sugere.  Mas isso deve ser entendido dentro da sua militância política.  Não por acaso foi preso e torturado em duas ocasiões, no período da ditadura militar.

O documentário de Aurélio Michiles, uma cinebiografia de Cosme, é uma homenagem a esse grande batalhador cultural do cinema no Brasil.  Nele, o próprio Cosme expõe algumas de suas ideias em vídeo, 34 entrevistas de pessoas falam dele e de seu trabalho, entremeadas por cenas de 70 filmes e um grande arquivo de imagens fotográficas e objetos ligados à sua vida.  Dá uma dimensão clara da importância do personagem.




O que mais me impressionou, no entanto, foram duas histórias fantásticas.  Uma, a de como Cosme recuperou uma agenda de endereços comprometedora, seis meses depois, dentro de um dos órgãos repressores das Forças Armadas, durante a ditadura militar.  A outra, de como todo o acervo da cinemateca e filmes com nitrato de prata, facilmente inflamáveis, sobreviveu intacto ao incêndio que destruiu o MAM do Rio.  Situações inacreditáveis, que marcaram a história de vida de Cosme Alves Netto e evitaram que novas tragédias acontecessem.




segunda-feira, 27 de julho de 2015

UMA NOVA AMIGA


Antonio Carlos Egypto




UMA NOVA AMIGA (Une Nouvelle Amie). França, 2014.  Direção: François Ozon.  Com Romain Duris, Anaïs Demoustier, Raphäel Personnaz, Isild Le Besco, Aurore Clément. 107 min.



Do cineasta francês François Ozon não se espere nada de convencional.  Ele está sempre em busca de situações e personagens que escapam à rotina e põem em questão a ética chamada burguesa.  Ou seja, ele mexe no que incomoda ao conservadorismo vigente, especialmente na questão dos costumes.

Tem o hábito, também, de estar muito atento aos dramas humanos, ao inesperado das situações e aos mistérios e surpresas que possam ser explorados.  Sabe lidar bem com a afetividade, com o desconcertante do amor, com leveza e suspense na narrativa.




Em “Uma Nova Amiga” ele trata com profundidade e delicadeza da questão do travestismo.  Tentando entendê-lo e mostrá-lo ao espectador, para além dos estereótipos tão comumente associados ao tema.

O protagonista da trama é David/Virgínia (Romain Duris), um homem que fica viúvo e, a partir daí, dá vazão ao seu desejo de se vestir de mulher e experimentar a identidade feminina.  Em paralelo a isso, cuida de sua filha de poucos meses e convive com Claire (Anaïs Demoustier), grande amiga de sua mulher morta, por toda a vida de ambas, e com Gilles (Raphael Personnaz), o marido de Claire.

A história se desenvolve explorando um suspense à la Hitchcock e com um toque almodovariano na narrativa, típica do diretor espanhol, em que a diversidade sexual se destaca.  O roteiro é muito rico em momentos e situações, em que o humor caminha ao lado da ansiedade e da surpresa, sempre com muito respeito aos personagens e à sua condição humana.




É daqueles filmes que, depois de conhecido o enredo, vale a pena rever, debater, explorar didaticamente o assunto, já que ele foi muito bem exposto na ficção.  Travestis são comumente mostrados no cinema, mas raramente dissecados, como acontece com o personagem central de “Uma Nova Amiga”.  Só mesmo nos filmes de Pedro Almodóvar se pode encontrar algo semelhante.




François Ozon tem uma capacidade de expor as coisas por meio de imagens, praticamente sem palavras, quando assim o deseja, que é cativante.  A história de Claire e sua grande amiga Laura é mostrada em toda a sua inteireza e com riqueza de detalhes, cobrindo da tenra infância à morte de Laura, nos primeiros dez minutos do filme, incluindo-se o preparo do corpo e o enterro.  E o que se mostra nesse início é fundamental para entender o que se passará depois.

Há outros momentos, rápidos e eficientes, em que a imagem diz tudo, quando algo é imaginado ou sonhado, revelando um medo, preocupação ou desejo.  Ou quando a câmera invade a intimidade, praticamente entrando no personagem por seu rosto, seus olhos, sua boca.  Cinema de primeira, enfim.



O desempenho do elenco é igualmente notável.  Todos muito bem nos seus papéis.  Os destaques vão para os protagonistas Anaïs Demoustier, excelente atriz, e especialmente Romain Duris, que se desdobra no papel duplo de David e Virgínia e consegue nos transmitir as ambiguidades da passagem de uma a outra identidade.  Uma exigência pesada a que ele dá conta com sucesso e, a julgar pelo seu sorriso, parece ter se divertido com isso.


sábado, 25 de julho de 2015

ADEUS À LINGUAGEM


Antonio Carlos Egypto





ADEUS À LINGUAGEM (Adieu au Langage).  França, 2013.  Direção e roteiro: Jean-Luc Godard.  Com Héloise Godet, Kamel Abdeli, Richard Chevallier, Zoé Bruneau e o cão Roxy Miéville.  70 min.


Jean-Luc Godard, um dos mais importantes cineastas da França e um dos realizadores da revolução estética da nouvelle vague, é, na verdade, de origem suíça.  É um dos diretores mais inovadores da história do cinema, alguém que sempre procurou renovar a linguagem, experimentar, provocar. 

Desde o início, buscou novas formas de filmar, novos enquadramentos (foi o primeiro a ousar filmar personagens de costas, vistos por meio de suas nucas, filmar pés em primeiro plano, filmar corpos omitindo rostos, etc.), ainda que contasse histórias ou atuasse dentro de um gênero cinematográfico. Aí, a digressão da narrativa, o uso do tempo entrecortado, a originalidade dos personagens e situações, se destacavam




Godard foi, então, se direcionando para um cinema mais diretamente político, reflexivo e questionador, abandonando qualquer convenção narrativa.  Foi um pulo para a negação do chamado cinema comercial.

O cinema de Godard se torna radical, em forma e conteúdo.  Na realidade, sempre foi, mas há um rompimento com os esquemas de produção, distribuição e divulgação.  Consequentemente, com uma rejeição no mercado.  Mas como nada é tão absoluto, Godard, mesmo se dedicando à experimentação, alcança êxitos, não só nos festivais, mas nas salas de cinema mundo afora.  Seu talento é evidente demais para ser ignorado.




Godard pensa o cinema e pensa o mundo, reflete sobre o que vê e nos obriga a olhar para o que precisa ser visto e pensado.  Nunca de forma linear, organizada, com causalidades ou propostas a serem veiculadas.  Não, ele o faz de modo fragmentado, provocador, desorganizador.  Impossível não sair mexido de um filme dele.  Ou irritado, rejeitando aquela aparente confusão mental.  Amando ou odiando, temos de reconhecer sua importância e sua força.

“Adeus à Linguagem”, filme realizado em 2013, quando o cineasta já tinha 83 anos de idade (nasceu em 1930), está sendo lançado agora como o primeiro filme de Godard realizado em 3D, em que ele explora as possibilidades dessa novidade dentro do seu universo peculiar.  É verdade isso.  Mas há um equívoco na afirmação.  Ele já havia realizado um episódio em 3D no filme “3 X 3D”, dividindo a cena com outros cineastas: o inglês Peter Greenaway e o português Edgar Pêra.  Naquela oportunidade, o filme de Godard foi o que menos aproveitou os recursos do 3D, os dois outros diretores se destacaram mais.




  Neste primeiro longa, “Adeus à Linguagem”, a história é outra. Godard explorou muito bem a nova possibilidade tecnológica.  Fez um filme altamente sensorial, vigoroso, questionador e, como sempre, levantando uma profusão de temas e questões que tratam do papel do Estado na vida contemporânea, do que resta de função ao conhecimento,  do impasse da literatura, de um mundo que se desintegra em imagens, dos direitos dos animais.  Isso tudo se apresenta enquanto um casal se relaciona e se desentende e um cachorro anda entre eles.

Fica tudo claro?  Absolutamente!  Nem Godard busca qualquer coisa semelhante à clareza.  Mas o filme brilha nas cores, por vezes estouradas, nas ideias jogadas, em que muitas se perdem à nossa mente, na provocação que incorpora a beleza que a tecnologia do 3D pode acentuar.  E até na superposição de algumas imagens, o que embaralha a visão nessa técnica.  O que ele consegue produzir é, paradoxalmente, mais cativante do que vinha fazendo nos últimos tempos.  O octogenário realizador está em grande forma.


Héloise Gadet e Kamel Abdeli no Reserva Cultural


Héloise Godet e Kamel Abdeli, protagonistas do filme, estão no Brasil para o lançamento, já que Godard, obviamente, não faria esse tipo de trabalho.  São ótimos, alegres, desinibidos.  E, em São Paulo, o cine Reserva Cultural inaugura seu equipamento em 3D com “Adeus à Linguagem”, de Jean-Luc Godard, em projeção impecável.


terça-feira, 7 de julho de 2015

O SÉTIMO SELO


Antonio Carlos Egypto





O SÉTIMO SELO (Det Sjunde Inseglet).  Suécia, 1957.  Direção e roteiro: Ingmar Bergman.  Com Max Von Sydow, Gunnar Bjornstrand, Bengt Ekerot, Bibi Andersson, Gunnel Lindblom.  96 min.


A morte, única certeza inevitável da nossa vida, causa muito medo e insegurança a todos.  Ingmar Bergman expressava esse medo reconhecendo-o em si como algo muito forte e o associava às vulnerabilidades infantis.  A questão da existência ou não de Deus, que serve para aplacar as ansiedades da morte nos registros religiosos, foi fonte de grandes questionamentos e preocupações ao longo de toda a vida e obra do mestre sueco do cinema.

O grande clássico de Bergman, “O Sétimo Selo”, é uma parábola sobre a morte, situada no mundo medieval.  Um cavaleiro, Antonius Block (Max Von Sydow), retorna das Cruzadas e só vê morte ao seu redor.  A peste dizima a todo instante, as pessoas caem como moscas.  A Inquisição sacrifica as bruxas, que nada mais são do que mulheres que, por sua juventude, beleza, desejo ou sensualidade, merecem literalmente o fogo do inferno.




Antonius não poderá se surpreender quando vir a morte chegar até ele.  E a morte se aproxima de uma forma muito concreta, para buscá-lo.  É quando Bergman materializa a morte (Bengt Ekerot), uma figura de capa preta e semblante tranquilo, sem caveira ou foice.  É possível conversar com ela, argumentar e até negociar um tempo, enquanto se disputa uma partida de xadrez.  Simples e audacioso.

A partida de xadrez em que a morte, naturalmente, sorteia as pedras pretas, constitui-se em uma das mais belas e inesquecíveis sequências da história do cinema. Cada espectador pode, então, conviver cavalheirescamente e dispondo de tempo, durante a projeção do filme, com a morte, seus mistérios e demônios.  Ou seja: é o momento de encarar a inevitabilidade da morte, procurando encontrar-se diante dela e de si mesmo.  Tentar superar o susto da presença da morte, bastante discreta, apesar de incisiva e apavorante.  Não pelo que ela é, mas pelo que ela nos tira.  E pelo grande vazio que se abre, em que a incerteza se impõe.




No momento em que concretiza em imagem a figura da morte, Bergman nos familiariza com ela, nos possibilita não só encará-la, interagir com ela, ser capaz de enfrentá-la, como superar a angústia que ela nos causa.  É possível jogar, mesmo sabendo que, no fim, a gente vai acabar perdendo. Afinal, o que é a vida, senão um eterno jogo com a morte?  Não exatamente um jogo macabro, mas uma experiência fascinante e enriquecedora.

A caracterização da Idade Média, locais, agrupamentos, roupas, comportamentos, é perfeita, em “O Sétimo Selo”.  O filme nos transporta para uma outra realidade.  Mas a intenção de Bergman não era, simplesmente, fazer um filme de época.  Como sempre, ele está em busca do que é essencial, nas questões filosóficas que levanta.  O que  não impede que o filme, realizado em 1956, também reflita o ambiente do pós II Guerra Mundial, encerrada há onze anos, e a Guerra Fria, com a polarização política mundial e com a ameaça de uma hecatombe nuclear.  Intolerâncias e pestes contemporâneas não faltavam para os cidadãos modernos que, como todos, tinham que se entender com a morte.




Em outros momentos da filmografia de Bergman, a morte aparece como muito mais assustadora e, dolorida, como se pode ver em “Gritos e Sussurros” (1973), por exemplo.  A opressão em nome de um Deus está também em grande parte da obra bergmaniana.  De forma muito evidente, em “Fanny e Alexander” (1982), um de seus últimos filmes, com fortes toques autobiográficos.




Quem nunca viu “O Sétimo Selo”, ou quem só conseguiu vê-lo na tela da TV, não pode perder a oportunidade que se apresenta do seu relançamento nos cinemas brasileiros, em julho de 2015.  Uma cópia digital restaurada será exibida, iniciando uma série do catálogo Clássica (Zeta Filmes e FJ Cines), que pretende trazer de volta às telonas filmes indispensáveis da história do cinema.  Em agosto, será relançado “A Doce Vida”, de Fellini (1960), em setembro, “Nosferatu – O Vampiro da Noite”, de Werner Herzog (1978), em outubro, “Mamma Roma”, de Pasolini (1962), em novembro, “Morangos Silvestres”, de Bergman (1957), em dezembro, “Fitzcarraldo”, de Herzog (1982) e, em janeiro de 2016, “8 ½”, de Fellini (1963).  As cidades onde os filmes serão exibidos nos cinemas são: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Florianópolis, Salvador, Porto Alegre, João Pessoa e Santos.  Uma iniciativa magnífica.  Indispensável, sobretudo para que os mais jovens possam usufruir da magia do grande cinema na tela em que ele merece estar.