terça-feira, 21 de janeiro de 2020

OS MELHORES DO ANO

Antonio Carlos Egypto


2019 foi um ano muito pródigo em termos de qualidade cinematográfica, tanto para o cinema mundial como para o cinema brasileiro (e o latino-americano).  Não foi fácil escolher os 10 melhores do cinema nacional e internacional.
Como toda lista, as que apresento a seguir representam, antes de mais nada, meu gosto pessoal.  Há, no entanto, algumas quase unanimidades críticas entre os filmes escolhidos.  Alguns deles já figuraram na minha lista de melhores da Mostra Internacional de Cinema, tendo sido lançados comercialmente agora, ao final do ano.
Considerei apenas os lançamentos que puderam ser vistos no cinema, ao longo do ano de 2019.  Os que estiveram presentes somente em mostras e festivais não foram levados em conta.  Muitos deles só são lançados um bom tempo depois de participarem desses eventos, outros, nunca aparecem nos cinemas do circuito comercial.  Os filmes que foram lançados exclusivamente em streaming, ou DVD, também não foram considerados elegíveis.
É bom lembrar, ainda, que boa parte dos filmes aqui apresentados continua em cartaz nos cinemas.  Chance para quem não viu no lançamento.  E há as outras opções: streaming, TV paga, DVD.  Afinal, o cinema está em toda parte.  E é bom que seja assim.


BACURAU

LONGAS NACIONAIS – 2019

1. BACURAU, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. 
2. A VIDA INVISÍVEL, de Karim Aïnouz.
3. RAIVA, de Sérgio Tréfaut (coprodução com Portugal).
4. PASTOR CLÁUDIO, de Beth Formaggini.
5. ESTOU-ME GUARDANDO PARA QUANDO O CARNAVAL CHEGAR, de Marcelo
    Gomes.
6. LOS SILENCIOS, de Beatriz Seigner (coprodução com Colômbia).
7. AMAZONIA GROOVE, de Bruno Murtinho.
8. LEGALIDADE, de Zeca Brito.
9. CHUVA É CANTORIA NA ALDEIA DOS MORTOS, de João Salaviza e Renée
    Nader Messora.
10. O JUÍZO, de Andrucha Waddington.



O PARAÍSO DEVE SER AQUI


LONGAS INTERNACIONAIS – 2019

1. O PARAÍSO DEVE SER AQUI, de Elia Suleiman.  Palestina.
2. PARASITA, de Bong Joon-ho.  Coreia do Sul.
3. DOR E GLÓRIA, de Pedro Almodóvar.  Espanha.
4. A ÁRVORE DOS FRUTOS SELVAGENS, de Nuri Bilge Ceylan.  Turquia.
5. CORINGA, de Todd Philips.  Estados Unidos
6. VARDA POR AGNÈS, de Agnès Varda.  França.
7. PÁSSAROS DE VERÃO, de Cristina Gallego e Ciro Guerra.  Colômbia.
8. DOGMAN, de Mateo Garrone.  Itália.
9. O IRLANDÊS, de Martin Scorsese.  Estados Unidos.
10. SANTIAGO, ITÁLIA, de Nanni Moretti.  Itália.






sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

O DESPERTAR DAS FORMIGAS

Antonio Carlos Egypto





O DESPERTAR DAS FORMIGAS (El Despertar de las Hormigas).  Costa Rica, 2019.  Direção e roteiro: Antonella Sudassi Furnis.  Com Daniela Valenciano, Leynar Gómez, Isabella Moscoso, Abril Alpizar.  94 min.


Em “O Despertar das Formigas”, filme de Antonella Sudassi Furnis, da Costa Rica, assiste-se ao que se poderia chamar de opressão do cotidiano, que recai sobre a mulher numa estrutura tradicional patriarcal. O que se dá é uma naturalização da existência, em que as relações de gênero e seus respectivos papéis e responsabilidades nunca são postos em dúvida, nem mesmo pelas vítimas mais evidentes do processo.

A opressão não está nas pessoas, que apenas repetem o que aprenderam e viveram, mas no contexto social que produziu e solidificou as regras e os valores em vigor.  O controle social se expressa nas falas, expressões, expectativas, cobranças, piadas, críticas, fofocas e eventualmente na ação das autoridades.

No filme “O Despertar das Formigas” tudo isso está exposto, visível no dia-a-dia de Isabel (Daniela Valenciano), seu marido Alcides (Leynar Gómez) e duas filhas, vivendo em aparente harmonia e equilíbrio familiar, mesmo numa situação de pobreza, no interior da Costa Rica, zona rural.  As cenas em que Isabel leva uma lâmpada de um ponto para outro da casa porque não pode comprar mais uma e o momento em que essa lâmpada se quebra falam por si.  Apesar disso, uma moradia digna e a alimentação estão garantidas. As relações afetivas entre os membros da família são boas.

O que não se percebe nesse contexto é o quanto a carga pesa sobre os ombros da mulher.  Isabel cuida das crianças e da casa, cozinha, faz doces para as festinhas, ajuda na lição das crianças e ainda costura para receber algum dinheiro para pôr na casa.  Um agravante simbólico é o cuidado que precisa ter com os cabelos longos, dela e das duas filhas, um padrão estético apreciado pelos homens e estimulado pelas mulheres.




Isabel leva tudo isso bem, encarando esse peso todo como natural.  O que acaba por produzir um despertar das formigas é uma expectativa reiterada pelo marido e pela sociedade por mais um filho, agora um menino, objeto de desejo até das duas filhas do casal.  Isabel percebe que não dará conta disso também e aí fica claro para ela a insanidade dessa exigência.

A mudança do meio social é muito difícil sem uma ação coordenada de luta feminina por igualdade de direitos, mas o filme mostra que, no terreno das relações pessoais, algo também pode ser feito, desde que com firmeza e assertividade.  Como diz um provérbio chinês, se você mostra que sabe o caminho que quer, os outros lhe dão passagem.

“O Despertar das Formigas”, indicação da Costa Rica, que  concorreu ao Oscar de filme internacional, é uma produção modesta, de baixo orçamento, mas muito bem realizada, com um ótimo elenco encabeçado por Daniela Valenciano e que tem nas duas meninas, Isabella Moscoso e Abril Alpizar, um atrativo à parte.




domingo, 12 de janeiro de 2020

RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS


  Antonio Carlos Egypto




RETRATO DE UMA JOVEM EM CHAMAS (Portrait de la Jeune Fille em Feu).  França, 2019.  Direção: Céline Sciamma.  Com Noémi Merlant, Adèle Haenel, Luána Bajrami, Valeria Golino.  121 min.


“Retrato de Uma Jovem em Chamas” é um filme que vem recomendado pela conquista de melhor roteiro e Palma Queer do Festival de Cannes, indicação ao Globo de Ouro de filme estrangeiro e boa recepção do público nos festivais do Rio e Mix Brasil.  Sua diretora, Céline Sciamma, já nos deu, pelo menos, um filme muito inteligente e sensível: “Tomboy”, em 2011.

Este trabalho, que respira feminilidade por todos os poros, mostra-se de uma sutileza, delicadeza e refinamento, que merece atenção.  Além do talento da diretora, um elenco de mulheres sensacional dá força incomum a uma narrativa que envolve oposição, contraste e aproximação, amor.

Adèle Haenel, no papel de Héloise, uma mulher da segunda metade do século XVIII, que sai do convento para um casamento arranjado, sem conhecer o pretendente nem saber nada da vida afetiva, amorosa ou de obrigações matrimoniais.  Um retrato dela deve ser pintado para ser enviado a seu futuro marido, mas uma tentativa com um pintor fracassou. É aí que entra em cena Noémi Merlant, no papel de Marianne, uma pintora firme, decidida e livre, tanto quanto isso era possível na época para as mulheres.

Do contraste entre uma mulher que luta para conquistar um espaço próprio na vida e a que está oprimida nos limites determinados ao feminino na época, estabelece-se um clima, uma tensão sutil.




Do insucesso do pintor anterior deriva a situação de que Marianne deve pintar Héloise sem que ela saiba que é essa sua verdadeira função e sem que ela pose, obviamente.  Essa situação acaba fazendo com que Marianne se valha de olhares furtivos e observações cuidadosas do rosto, das mãos, do corpo e dos movimentos de sua retratada.  Daí para um flerte, uma aproximação afetiva maior e a eclosão do amor é um caminho que Céline Sciamma explora em clima suave e delicado, quase silencioso.  O filme trata muito de arte, mas praticamente não usa música.

A caracterização de época se vale não só das vestimentas múltiplas, pesadas e enfeitadas, sem exageros, mas do ambiente de uma ilha isolada, aonde só se chega de barco, e de um castelo preservado, que nunca chegou a ser habitado, nem restaurado, segundo a diretora.  Essa locação bela e isolada contribui muito para o clima da história.

A questão artística da pintura, que era o meio de produzir retratos, põe em relevo o que se pode captar da figura humana, como reproduzi-la fielmente e o que seria isso.  Ver não é compreender, não é possível enxergar sem interagir, sem captar o que vai pelo psiquismo, por melhor que seja a técnica empregada.  É na relação que se constrói a verdade de cada uma e se dissolvem as diferenças do modo de estar no mundo.  Da troca resulta sempre algo novo, possível ou não de se desenvolver e de subsistir.  A natureza está também em transformação, como as pessoas.  Da terra que sustenta, do ar que dá a respiração para viver.  Do mar, que leva e traz ondas vivas, para onde se pode correr ou morrer e do fogo que queima em desejo.




segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

A MELHOR JUVENTUDE

Antonio Carlos Egypto


Será exibido nos cinemas em duas partes o grande filme de Marco Tullio Giordana, de 2003, A MELHOR JUVENTUDE  (La Meglio Giuventú).  Uma família em que dois irmãos vivem juntos e separados em momentos da história recente da Itália, dos anos 1960 aos 2000.  Vão a Roma, passam pelas origens em Ravena, estudam em Bolonha, se encontram em Florença em plena cheia que castigou a cidade, em eventos de radicalismo político e repressão em Turim, nos julgamentos de Milão, na máfia siciliana, em Palermo, onde também se dá o assassinato do juiz Giovanni Falcone e outros, no tempo da Brigada Vermelha, e por todos os cantos, ao longo desse período contemporâneo italiano. Uma jovem com problemas mentais compõe o trio de protagonistas, o que permite discutir o descalabro dos hospitais psiquiátricos e a revolução promovida por Basaglia no mundo, a partir da Itália.




A costura dos fatos e personagens é muito bem feita, a filmagem exala humanidade, afeto e compreensão, em meio aos inevitáveis conflitos da vida, desencontros amorosos e familiares.  Recheada por ótimos atores de um elenco jovem e música da mais alta qualidade, e não só italiana.  Vai de Dinah Washington a Cesária Évora.  Todos perseguem seus sonhos, se iludem, se magoam e seguem em frente, na busca incessante por uma vida que possa ser melhor.

É um dos grandes filmes do cinema italiano de todos os tempos.  Grande na qualidade, mas também no tamanho.  São 6 horas de duração, por isso as sessões são divididas em dois dias, de 3 horas cada um.  Talvez você diga: nem pensar!  E não tente.  Se você disser: vou ver só a primeira parte para conferir como é, eu lhe garanto, você não vai querer perder a segunda parte, por nada desse mundo.  E se chegar ao final da saga vai sentir um gosto de que ainda queria mais.