segunda-feira, 30 de julho de 2012

O LADRÃO DE LUZ

  Antonio Carlos Egypto



O LADRÃO DE LUZ (Svet-Ake).  Quirguistão, França, 2010.  Direção: Aktan Arym Kubat.  Com Aktan Arym Kubat, Taalaikan Abazova, Askat Sulaimanov.  80 min.


Positivamente, não é a toda hora que a gente tem a oportunidade de ver um filme de um cineasta do Quirguistão, república que fazia parte da ex-União Soviética.  Pois agora temos a chance de ver no cinema “O Ladrão de Luz”, filme dirigido, roteirizado e protagonizado por Aktan Arym Kubat.

Felizmente, graças à Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, também não é a primeira vez que esse cineasta tem filmes exibidos por aqui.  Em 1998, chegou à Mostra “O Filho Adotivo”, sobre a revelação algo traumática para  um adolescente que se descobre nessa condição e entra em crise de identidade.  Sem se preocupar muito em tratar do tema com realismo, Kubat faz um filme poético e de uma estética belíssima, em que predomina o preto e branco.  Assisti ao filme numa sessão da Mostra e voltei a vê-lo quando foi exibido em sessões normais nos cinemas.  Trabalho de grande beleza plástica, que nos convida à contemplação.  É sempre muito gratificante descobrir o talento de um cineasta de um país tão distante de nós, culturalmente, pelo menos.



Um outro filme seu também foi exibido na Mostra, em 2001, “O Chimpanzé”, abordando a iniciação na vida adulta, o chamado ao serviço militar, o primeiro amor, os desencantos, o alcoolismo e a falta de perspectivas nas pequenas comunidades.  É um retrato em parte autobiográfico, mas reflete o destino de todos os jovens por ali.

“O Ladrão de Luz” tem características semelhantes.  É um filme poético também, mas menos subjetivo, eu diria.  Mostra, num pequeno lugarejo das montanhas do Quirguistão, uma figura ímpar: o eletricista do local, o senhor luz, como é chamado.  É ele quem traz a luz elétrica para a casa das pessoas, resolve as oscilações e os curtos-circuitos que acontecem, de forma imediata.  É uma pessoa bondosa e ingênua.  Simples, como todos na comunidade, mas preocupado em ajudar os outros.  Como muitos não podem pagar pela luz que chega ao vilarejo, ele dá um jeito, alterando os relógios ou fazendo gatos.  Sonha, ainda, com uma fonte de luz mais barata, de origem eólica, que ele sabe perfeitamente possível, se o investimento for feito.



Esse homem, que dá luz à comunidade e vive por ela, sabe que essa luz é fonte de vida e solidariedade, um bem-estar indispensável a um povo que tem tão pouco.  Mas terá que se deparar com os interesses econômicos e políticos que chegam a todos os cantos, até mesmo naquele fim de mundo.

Uma característica desse diretor é a de contar suas histórias respeitando a cultura local, enfatizando as crenças, os valores e os rituais sociais que caracterizam seu país, a partir de sua realidade rural e da vida em pequenas comunidades, onde isso está muito presente.  Seu cinema é também humanista e esperançoso, apesar de perspicaz e crítico.



O diretor é o ator que protagoniza a história, no papel de o senhor luz.  Como ator, ele consegue viver um personagem adorável, na sua simplicidade e capacidade de ser solidário, pensando no coletivo.  É absolutamente convincente o seu desempenho, enche a tela de vida e dinamismo.

Como se vê, o cinema pode surgir radiante de onde menos se espera.  E não é preciso muito dinheiro para isso, nem grandes equipes de produção.  Com pouco dinheiro,o senhor luz da história ficcional supriria a comunidade.  Na função de cineasta, ele faz arte a partir de muito poucos recursos materiais e de histórias pequenas e simples, mas muito importantes e significativas.

sábado, 28 de julho de 2012

A ARTE DA CONQUISTA

 Antonio Carlos Egypto


A ARTE DA CONQUISTA (The Art of Getting By).  Estados Unidos, 2011.  Direção e roteiro: Gavin Wiesen.  Com Freddie Highmore, Emma Roberts, Sasha Spielberg, Marcus Carl Franklin.  83 min.


“A Arte da Conquista” é um título banal para um filme dirigido a adolescentes.  Não se trata de um filme de ação, de violência, de efeitos especiais, de heróis de história em quadrinhos, ou chanchada de cunho pornográfico, produtos que Hollywood costuma oferecer a esse público.  Pode ser considerada uma comédia romântica, o que também não seria nenhuma novidade.  Acontece que o filme é inteligente, celebra a diversidade, lida com o inesperado.

Quando se trata de grupos sociais, como os adolescentes, temos uma tendência a uma generalização que enquadre a categoria.  Os adolescentes são desta ou daquela maneira, se comportam assim, gostam disso e daquilo, seus sonhos de consumo são tais e tais.  Tendemos a ignorar todas as diferenças, que são abissais, entre eles.  Jovens de diversas classes sociais – pobres, ricos, de classe média – certamente são muito diferentes uns dos outros.  Os que vivem na grande metrópole, nas pequenas cidades ou no campo, estão longe de se identificarem facilmente entre si, em que pesem a democratização da Internet, o estímulo aos produtos culturais e de consumo, dirigidos a uma juventude mundial, especialmente a música, as danças e os esportes radicais.  Há gosto e desejo para tudo e de todo tipo.  Alguns podem se sentir diferentes, e incomodados, quando escapam às expectativas sociais a respeito deles.  E até terem dificuldade de conviver com seus próprios gostos e desejos, mas, cedo ou tarde, acabarão por ter de reconhecê-los em si mesmos.


“A Arte da Conquista” nos traz um personagem adolescente, que tem uma inegável especificidade.  E é tão adolescente quanto todos os outros.  George (Freddie Highmore) é um jovem solitário, dado a especulações filosóficas, e extrai delas, por um lado, um pessimismo diante da vida, por outro, uma boa desculpa para não se mexer, não se dedicar seriamente, nem ao estudo, nem a um trabalho.  George percebe a vida como algo sem sentido, uma grande ilusão.  Tem medo da vida e uma certa atração pela inevitabilidade da morte.  Crê que nascemos e morremos sozinhos e não há nada a fazer quanto a isso.  Se a vida não tem sentido, por que se dedicar a estudar, trabalhar com afinco, conviver com amigos, se preocupar em namorar?

Ele também se sente despreparado para amar e para lidar com as garotas.  Claro que, quando o amor chega e se materializa em Sally (Emma Roberts), e isso acontece sem que se espere ou se esteja preparado, muita coisa muda.  Uma esperança pode vir a desabrochar, assim como um talento ao qual não se dava a devida importância.


Um adulto aberto e sensível ao contato, um artista como Dustin (Michael Angarano), pode significar um novo alento, especialmente quando valoriza algo que o jovem faz e dá importância ao enamoramento.  Não importa que ele possa vir a decepcionar mais tarde.  Ainda assim, pode ser um estímulo importante.

É dessas questões vividas por um adolescente que se nutre o filme, que dialoga com os jovens de forma clara, simples e honesta.  O que, sem dúvida, tem méritos.  Afinal, faz pensar, traz uma realidade que pode ser a de muitos, apesar de escapar aos estereótipos mais comuns.  Ou pode estar muito perto, sendo vivida por vizinhos, colegas, parentes, amigos.  A história é um convite à compreensão e ao entendimento.  Sem chancelar fantasias ou idealizações.


Um bom filme para ser assistido pelos jovens e pelos que se interessam pelas questões da juventude, principalmente aquelas que estão menos evidentes ou são menos propagandeadas.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Bem Amadas



Tatiana Babadobulos

Bem Amadas (Les Bien Aimés). França, Reino Unido e República Tcheca, 2011. Direção e roteiro: Christophe Honoré. Com: Chiara Mastroianni, Catherine Deneuve, Ludivine Sagnier e Louis Garrel. 139 minutos



Duas mulheres separadas pelo tempo, mas com alguma coisa em comum: os amores. Mãe (Catherine Deneuve) e filha (Chiara Mastroianni) são as protagonistas do novo longa-metragem de Christophe Honoré, “Bem Amadas” (“Les Bien Aimés”), que tem estreia apontada para esta sexta-feira, 20, nos cinemas.

Honoré, que costuma colocar histórias familiares na tela grande, tal como fez em “Não Minha Filha, Você Não Irá Dançar” e “Em Paris”, repete a fórmula do seu cinema francês, incluindo as canções escritas por Alex Beaupain, responsável pelas músicas de “Canções de Amor” e “Não Minha Filha…”, em parceria com o diretor.

Para contar esta história, o diretor, também autor do roteiro, volta no tempo e, na Paris dos anos 1960, conta, em ordem cronológica, como a mãe francesa se apaixonou por um tcheco. E, na Londres dos anos 2000, a filha se apaixona por um inglês. Tal como em outros filmes de Honoré, o amor é intenso, mas também homossexual, com direito a ménàge à trois, além de ser trágico. As canções de Beaupain vêm para coroar a intensidade do amor, da paixão, ainda que seja por um gay ou por dois homens ao mesmo tempo.



A volta no tempo não é feita com a mudança na cidade, já que Paris parece ser a mesma desde os anos 1960. Para tanto, foram usados o figurino, os carros e a moeda, que passa a ser francos e não euros. Os sapatos são outros personagens na trama e têm destaque especial. São atuais e poderiam ser usados hoje em dia. A personagem de Ludivine Sagnier, que faz o papel de Deneuve mais jovem, aparece usando um par e, em off, a filha (Chiara) explica que ela se tornou prostituta para se salvar da prisão. Tinha um trabalho regular (era vendedora), mas se prostituía pois “amava os scarpins de Dior”. Além dos sapatos, amava dois homens e deixa se enganar pelo pai da sua filha, que a tirou das ruas, mas não a assume e fica anos sem aparecer.

Outra característica de Honoré é a ambientação em Paris e a orientação urbana, mas sem focar em clichês turísticos. E as canções, que vez ou outra aparece no meio de diálogos, não chegam a cansar. São belas composições francesas, embora bem semelhantes umas às outras. As composições, aliás, remetem às de “Canções de Amor”.

Além da pareceria já conhecida com o compositor, e de este ser o terceiro trabalho de Chiara Mastroianni com Christophe Honoré (depois de “Canções de Amor” e “ Não Minha Filha…”), esta é mais uma parceria do diretor com Louis Garrel, que trabalhou em praticamente todos os seus longas anteriores. Ludvine Sagnier atua pela segunda vez em um filme de Honoré (a primeira foi em “Canções de Amor”). A contribuição de Catherine Deneuve engrandece a obra e o mix de gerações enriquece ainda mais o longa-metragem de Honoré.

“Bem Amadas” utiliza canções para focar o lirismo e a paixão das personagens. Um longa-metragem para se apaixonar e apaixonar pelas belíssimas canções.

terça-feira, 17 de julho de 2012

13 ASSASSINOS

 Antonio Carlos Egypto



13 ASSASSINOS (Jûsan-nin no shikatu).  Japão, 2010.  Direção: Takashi Miike.  Com Gorô Inagaki, Kôji Yakusho.  126 min.

Takashi Miike é um cineasta japonês, nascido em Osaka, em 1960, muito atuante e extremamente produtivo em seu país.  Basta dizer que, entre 1991 e 2011, ele realizou mais de 80 filmes como diretor, 18 como ator, entre outras funções no cinema.

É espantoso que nunca nenhum filme dele tenha sido lançado no circuito comercial, no Brasil.  Quem conhece alguns de seus filmes é porque acompanhou uma mostra especial de seus trabalhos ou frequentou um festival internacional.  Até que agora, finalmente, entra em cartaz nos cinemas “13 Assassinos”, um filme dele, de 2010.  


Eu, que nunca tinha visto nada dele, percebi de imediato que se tratava de um cineasta experiente, que sabe o que quer e o que fazer das imagens.  O filme tem belos planos gerais, planos de detalhe muito expressivos, uma câmera ágil, cenas de batalhas impressionantes, cenas de ação muito intensas.  Tudo no seu cinema flui, demonstrando amplo domínio de sua arte.

É fato que ele abusa de sangue e violência.  Em “13 Assassinos”, cria situações exageradas e inverossímeis.  Parece se divertir um pouco à custa do espectador.  Mas ninguém poderá dizer que não viu um belo espetáculo.  E que por trás de toda aquela violência não houvesse um sentido crítico.

A história é simples, e não importa muito, já que o trunfo de Takashi Miike é o seu poder de nos impressionar com suas imagens.  Mas, vamos a ela.  O lorde Naritsugu (Gorô Inagaki) estupra e mata, achando que pode tudo, por ser irmão do Xogum.  Não esperava, porém, por uma missão de vingança organizada com a específica função de matá-lo.  Tal missão, de caráter suicida, será levada a cabo pelos tais 13 assassinos, que, em brutal desvantagem, enfrentarão mais de 200 contendores e precisarão de muita inteligência e astúcia para não ser simplesmente massacrados e ainda levar a termo seu objetivo.  Caberá a um samurai experiente, Shimada (Kôji Yakusho), essa inglória tarefa.


Temos aí um filme de samurai, um épico coberto de sangue e horror, mas um espetáculo competente de cinema.  Muitos, é claro, passarão longe de se interessar por batalhas sangrentas, haraquiri, cabeças cortadas em nome do próprio respeito e da honra. Quem tiver mais sangue frio para observar as cenas com atenção, certamente se interessará pelo trabalho de Takashi Miike e desejará ver outros filmes dele.  É um cineasta que conhece seu ofício, produziu muito, e certamente por aí deve ter apurado sua técnica.  É pena que o público brasileiro o desconheça totalmente.  Quem sabe, a partir de “13 Assassinos”, essa história comece a mudar.
 

domingo, 15 de julho de 2012

O MOINHO E A CRUZ

   Antonio Carlos Egypto


O MOINHO E A CRUZ (The Mill and The Cross).  Polônia, 2011.  Direção: Lech Majewski.  Com Rutger Hauer, Charlotte Rampling, Michael York.  91 min.



O pintor Pieter Bruegel (1525?-1569) nasceu numa localidade que provavelmente se situa hoje na Holanda.  A data de nascimento é também incerta. É fato que morreu em Bruxelas.  Homem do Renascimento, retratou em suas telas toda a vida rural de pequenas aldeias, num mundo marcadamente medieval.  Seus quadros pareciam querer abarcar tudo o que se fazia e se vivia naquele pequeno mundo, inclusive os medos, as fantasias, a insegurança, o terror.  Mas a vida produtiva, as festividades, a comida, os trajes, os rituais religiosos, a vida compartilhada com os animais, as contendas, crueldades e o ser humano dentro da paisagem natural, sendo pequeno frente a ela, são características de sua obra.

É importante situar isso para falar do filme “O Moinho e a Cruz”, porque sua proposta é bem original.  Ela parte de um quadro de Bruegel para recriá-lo no cinema, enfocando tudo o que tem nele e, dessa forma, descrevendo a sociedade rural do século XVI, tal como o artista a via e percebia.  O quadro se move e se subdivide em suas múltiplas partes.  Outras informações pertinentes à época retratada são utilizadas.


A ideia é perfeita, justamente porque o pintor buscava mesmo retratar a vida do povo flamengo nessas pequenas aldeias, com todos os seus elementos constitutivos.  É curioso, porém, que a tela escolhida para o filme seja A ida ao calvário ou A procissão e o calvário, um tema religioso aparentemente deslocado de seu tempo.  Sim, porque todas as características da sociedade que ele descrevia pictoricamente estão lá, assim como nas outras telas dele.  O homem que carrega a cruz no centro do quadro não se destaca, nem se pode afirmar categoricamente que seja Jesus Cristo.  O que está em jogo aí talvez seja mais a banalidade desse tipo de crueldade, assim como a de uma roda altíssima em que é posta uma vítima para ser mutilada pelos corvos ou mulheres enterradas vivas, como o filme acrescenta.  O fato é que, na película, a crucificação desta figura é Cristo, com direito aos dois ladrões, aos clássicos trovões e à proximidade da mãe, a Virgem Maria, papel de Charlotte Rampling.  No quadro, a figura equivalente existe, mas não está próxima da vítima.  Reflete a dor por seu martírio mas não a vê.

Deixando de lado, porém, o tema religioso, a caracterização da aldeia do século XVI é magnifíca.  O visual do filme é tão caprichado e fiel ao que retrata Bruegel que tudo fica muito bonito e remete àquele tempo que podemos conceber a partir das pinturas.


O ritmo do filme é aquele em que supostamente viviam as pessoas, há muito pouca fala e a tela do cinema fica povoada de personagens grande parte do tempo, como se vê nos quadros de Bruegel.  A recriação da paisagem é muito fiel.

Uma característica da tela em questão é muito bem explorada no filme: o moinho.  Ele está a uma altura desproporcional à paisagem.  Bem no alto, no ponto mais alto possível.  O pintor, que é personagem do filme, construindo sua tela, diz que o moinho precisa estar no alto, porque ele concebeu o moleiro como representação de Deus, aquele que vê tudo de cima.  Esse ponto de vista é explorado pela câmera, além de que o filme concebe o interior de tal moinho, sua enorme escadaria interna, suas engrenagens, as pás que o movem, dando uma dimensão que transcende a realidade concreta.


Bruegel, vivido pelo veterano ator Rutger Hauer, desenhando e concebendo o quadro, vivendo e observando tudo o que acontece, é também um ótimo recurso.  “O Moinho e a Cruz” é, inegavelmente, um belo filme, sofisticado na sua concepção, plasticamente irretocável.  É um filme dirigido a um público pequeno, mas que certamente saberá apreciar a sua estética.


quinta-feira, 12 de julho de 2012

NA ESTRADA

  Antonio Carlos Egypto


NA ESTRADA (On The Road).  Estados Unidos, 2011.  Direção: Walter Salles.  Com Sam Riley, Garrett Hedlund, Kristen Dunst, Kristen Stewart, Viggo Mortensen, Alice Braga.  140 min.

O livro de Jack Kerouac “On The Road” é a obra literária mais marcante da chamada geração beat, dos anos 1950 do pós-guerra.  É também uma das principais fontes de inspiração do movimento hippie dos anos 1960.  É obra de ruptura da linguagem conservadora e convencional, da narrativa literária clássica, das histórias com começo, meio e fim, dos personagens psicologicamente bem estruturados e explicados e coisas desse gênero.

O livro de Kerouac é, na verdade, a descrição de experiências de aventura e autoconhecimento que se tem “metendo o pé na estrada”, desbravando territórios humanos e culturais inexplorados à vivência rotineira do cotidiano.  Mais do que isso: é um relato de paisagens geográficas e humanas que incluem  pensamentos, sentimentos, sensações, fantasias, sonhos, delírios, imaginação.  Abordam pessoas e relacionamentos mais fortes e duradouros, mas também muitos que se dão ao acaso no circular das estradas, no caso, dos Estados Unidos da América e também do México.


O livro é um relato em primeira pessoa do escritor Sal Paradise, personagem de ficção inspirado intensamente na própria experiência de vida e de estrada do próprio Jack Kerouac.  É um relato que se nutre de personagens libertários, loucos mesmo, que são mostrados sem moralismo ou explicações para que possamos entendê-los.

O principal personagem depois de Sal é Dean Moriaty, um cara louco pela vida, pelo sexo, pelo álcool e por todo o tipo de drogas psicoativas, pelo jazz, pela estrada, pela velocidade, por uma existência sem amarras ou compromissos de nenhuma espécie.  O livro é também povoado pelas mulheres de Dean, por descrições dos personagens dos mais diversos, entre eles, as mulheres que se relacionam com os demais jovens, que fazem parte das viagens, encontros, amores e amizades que se estabelecem e se desfazem.

É ainda um relato umbilicalmente vinculado ao mapa dos Estados Unidos, às rotas de leste a oeste, de Nova York a São Francisco, às muitas e frequentes paradas no centro do país, em Denver, à descrição de suas paisagens, de caminhos reais ou fictícios, e do tipo de vida de cada lugar por onde passam os inveterados viajantes beats.


Já há algum tempo, projetos de levar o livro às telas ficaram engavetados ou adiados, até que coube ao cineasta brasileiro Walter Salles a tarefa de realizá-lo, a partir de produção de Francis Ford Coppola.  Um desafio incrível para qualquer diretor, mas ainda maior para um não norte-americano.

Ninguém, em parte alguma do mundo cinematográfico, pode duvidar das possibilidades de Walter Salles, depois de realizar filmes notáveis, como “Central do Brasil”, de 1998, “Terra Estrangeira”, de 1996, “Abril Despedaçado”, de 2001, e um road-movie como “Diários de Motocicleta”, de 2004, com base nas experiências de viagens pela América do Sul, que ajudaram a moldar as crenças políticas de Che Guevara.  Ainda assim, é complicado, até para um cineasta com o talento que ele tem, realizar uma produção internacional desse porte, baseada justamente nessa obra literária tão desafiadora.


Walter Salles se valeu de jovens atores e atrizes do cinema norte-americano, com Sam Riley para o papel de Sal Paradise, Garrett Hedlund no de Dean Moriaty, as duas Kristen, a Stewart (da saga Crepúsculo) e a Dunst para viver os papéis femininos de mais destaque, mulheres de Dean.  E há ainda nomes de peso da atuação cinematográfica, como Viggo Mortensen como Old Bull Lee, além da brasileira Alice Braga.  O elenco dá conta do recado.

A caracterização da época das viagens: 1947, 1949 e 1950, está também muito boa.  E não há dúvida: o filme é bastante fiel ao livro.  Fidelidade à obra literária nem sempre é o melhor caminho.  Pode inibir a concepção cinematográfica, ou tolher sua criatividade e inovação.  Não é o caso aqui.  Walter Salles consegue equilibrar o respeito que tem ao livro, que foi muito inspirador também para a vida dele, segundo suas declarações em entrevista, procurando transmitir a essência do sentido libertário que é a marca de uma geração.  Nesse sentido, o filme dialoga com a juventude atual, apresentando um modelo de conduta que, historicamente, é datado, cujos questionamentos, no entanto, permanecem atuais.


As respostas ou a loucura podem não ser as mesmas.  Aquilo que se coloca para o hemisfério norte é diferente daquilo que se apresenta para o hemisfério sul.  Haja vista a viagem do Che, em comparação com esta.  Com o Che, a autodescoberta acaba ofuscada pela questão social.  Aqui, o autoconhecimento e a diversidade podem ocupar o primeiro plano.  Walter Salles soube mostrar muito bem essa diferença, é só comparar os dois trabalhos.  Se a riqueza do relato de Jack Kerouac não está toda no filme, o trabalho cinematográfico tem sua riqueza própria e merece ser conhecido.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

A GUERRA DOS BOTÕES

 Antonio Carlos Egypto


A GUERRA DOS BOTÕES (La Guerre des Boutons).  França, 2011.  Direção: Yann Samuel.  Com Eric Elmosnino, Mathilde Seigner, Fred Testot, Alain Chabat, Vincent Bres, Salom Lemire.  105 min.


“A Guerra dos Botões” é um grande clássico infantil, tanto na literatura quanto no cinema.  O livro de Louis Pergaud foi lançado na França em 1913, às vésperas da Primeira Guerra Mundial.  A ação remete, portanto, ao início do século XX.  Quem tiver interesse no livro pode encontrar em catálogo uma edição da Ática de 1995.

O primeiro filme que adaptou a história da guerra dos botões é de 1936, dirigido por Jacques Daroy.  Há uma versão inglesa: “War of the Buttons”, de John Roberts, de 1994.  Mas a mais famosa, que se tornou tão clássica quanto o próprio livro, é a película dirigida por Yves Robert, em 1962, em preto e branco.  Além de “A Guerra dos Botões”, o diretor, roteirista e ator Yves Robert realizou uma obra significativa no cinema.  Eu destacaria dele dois outros filmes admiráveis, ternos e inteligentes, de narrativa clássica: “A Glória de Meu Pai” e “O Castelo de Minha Mãe”, ambos de 1990, adaptando obras literárias de Marcel Pagnol.  Podem ser encontrados em DVD.


“A Guerra dos Botões” fatalmente teria de merecer novas adaptações cinematográficas, já que a história é ótima e agrada tanto às crianças quanto aos adultos.  A atual versão, com certeza, não será a última.  Outras devem vir.

O filme francês de 2011, de Yann Samuel, traz a ação para o ano de 1960, em que os botões já não eram a única forma de fechar as roupas.  Já havia zíper.  Mas nem por isso os botões deixaram de ser importantes, o são até hoje.

Para quem ainda não conhece a história, vamos apenas situá-la.  Meninos entre 7 e 14 anos, de duas aldeias vizinhas, cultivam uma rivalidade histórica, que seus avós, pais e irmãos mais velhos também cultivaram.  E promovem verdadeiras batalhas, opondo os Velrans e os Longevernes.  Estilingues, paus e pedras, além de frutas que emporcalham os corpos e suas roupas, são ingredientes habituais dessas guerras.


Um dia, uma tática acaba se revelando muito efetiva.  Ao capturar um adversário, cortar-lhe todos os botões da roupa, deixando-o desengonçado, com a roupa caindo e, pior, com castigo seguro dos pais.  Daí é que vêm as guerras de botões, que incluirão muitos ingredientes curiosos e divertidos.  No caso do filme atual, com direito à participação de uma menina, em papel de destaque.  Afinal, se estamos em 1960, as conquistas femininas já estão acontecendo.  Uma história baseada só nos meninos, como a original, soaria anacrônica.


Outro aspecto destacado agora é o do papel indutor dos adultos nessas guerras infantis, acentuando o ridículo dessas rivalidades.  E, no entanto, elas parecem ser eternas, como os diamantes.

Crianças e adultos podem se divertir muito bem com mais essa produção francesa, feita com base na história antiga, mas sempre pertinente, da guerra de botões.  Por meio dela, adentramos no universo infantil das crianças que conviviam de forma intensa entre elas e com a natureza, em brincadeiras que alimentarão para sempre a criatividade delas.  A agressividade tinha meios de se expressar e encontrava limites.  A busca por autonomia, representada pelo personagem do menino Lebrac (Vincent Bres), vincula-se ao desafio de crescer administrando a própria liberdade.  Fazendo escolhas.


 O retrato mais comum da infância, hoje, remete às grandes cidades, com sua violência urbana, às realidades virtuais e a limites mais estreitos na liberdade de ir e vir dos pequenos.  E, portanto, postergando a conquista da autonomia.  Talvez, por isso mesmo, o retrato que nos traz “A Guerra dos Botões” seja ainda tão sedutor e atraente.  Como sempre foi, desde o começo do século passado.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Para Roma com Amor




Tatiana Babadobulos

Para Roma com Amor (To Rome With Love). Estados Unidos, Itália e Espanha, 2012. Direção e roteiro: Woody Allen. Com: Woody Allen, Penelope Cruz, Jesse Eisenberg, Alec Baldwin. 102 minutos



"Para Roma com Amor" ("To Rome With Love") confirma a vocação do diretor e roteirista de fazer comédia misturando origens e procedências de seus personagens.

A trama tem a capital italiana como pano de fundo, mas também como personagem. Diferentemente de longas realizados em Londres, Paris e Barcelona, aqui ele explora os clichês turísticos da cidade. Apresenta pontos turísticos óbvios, enfatiza marcas italianas, como mala Fendi, avião Alitália, café Illy na tradicional cafeteira italiana.


Para começar, uma turista norte-americana, Hayley (Alison Pill, de “Meia Noite em Paris”), está perdida e pergunta, com um mapa na mão, onde fica a Fontana di Trevi. Pouco depois, ela e o nativo, Michelangelo (Flavio Parenti), resolvem se casar. Os pais da moça, o diretor de ópera aposentado, Jerry (Woody Allen), e sua esposa, Phyllis (Judy Davis, de “Maria Antonieta”), voam para Roma a fim de conhecer o noivo italiano da filha.



"Para Roma com Amor" ainda traz outras histórias paralelas, como a do famoso arquiteto americano, John (Alec Baldwin, de “Simplesmente Complicado”), que relembra o tempo de sua juventude, quando morou na cidade durante as férias. No meio de um passeio solitário, ele é reconhecido por Jack (Jesse Eisenberg, de “A Rede Social”), um estudante de arquitetura. Na ocasião, ele é apresentado à sua namorada, Sally (Greta Gerwig, de “Sexo sem Compromisso”), e vê como a visita da amiga dela, Monica (Ellen Page, de “A Origem”), pode atrapalhar tudo.

Outra história é sobre Antonio (Alessandro Tiberi), que chega do interior da Itália e, quando se instala em um hotel em Roma, na esperança de impressionar seus parentes quando vai apresentar a esposa, acaba sendo surpreendido. Isso porque a esposa, Milly (Alessandra Mastronardi), vai ao cabeleireiro, mas se perde. No meio tempo, uma garota de programa (Penélope Cruz, de “Vicky Cristina Barcelona”) bate a sua porta (por engano) e diz que já está pago o dia. Claro, em se tratando de comédia, que a família aparece bem durante o problema. Enquanto isso, a esposa, perdida, encontra o astro do cinema Luca Salta (Antonio Albanese).

Para finalizar, a história de outro italiano. Desta vez Leopoldo Pisanello (Roberto Benigni, de “A Vida é Bela”), um cara sem graça e que acorda, em uma bela manhã, se achando o mais famoso homem da Itália, já que precisa responder a um monte de questões e ainda é perseguido pelos paparazzi e vê o quanto custa ter fama. Aqui, o diálogo é sobre a bobagem da vida das celebridades, que enaltece a pessoa comum, debocha das entrevistas e faz perguntas sobre o café da manhã.



Desde “Scoop – O Grande Furo”, Woody Allen não atuava em um filme seu. Aqui, faz o tipo trapalhão, com frases feitas e de efeito, como todos os outros personagens que faz, tem medo do avião e faz questão de conhecer o seu futuro genro. Por outro lado, se torna chato de tão insistente ao tentar convencer o sogro da filha a cantar ópera (mesmo que seja debaixo do chuveiro).


Em homenagem à Itália, Allen faz a abertura de seu filme com a canção “Volare”, além de repeti-la no final. A apresentação dos personagens é feita em off pelo guarda de trânsito, que avisa: “Não falo muito bem inglês”. Ao contrário do filme “A Primeira Coisa Bela”, Roma de Woody Allen é movimentada, com carros e lambretas por todos os lados. Tal como na vida real.

O diretor vai na contramão quando faz seus atores falarem o idioma nativo. Isso porque muitos diretores preferem que, mesmo na França, por exemplo, os franceses falem inglês com sotaque francês. Woody Allen faz questão que seus personagens estrangeiros falem a sua própria língua. No entanto, é comum observar que, mesmo filmando em outros países, ele leva boa parte do elenco de sua terra Natal.

Tal como em “A Rede Social”, filme que lhe rendeu indicação ao Oscar, Jesse Eisenberg atua de maneira ansiosa, agitada. Aqui ele também parece bastante inquieto, como se esta característica fosse do ator, não de seu personagem. Isso pode ser observado também no próprio Woody Allen. Ele é ele mesmo em todas as suas produções. Não se dá nem ao trabalho nem de mudar o figurino.

Sobre o trecho que conta a história do casal que chega do interior, remete ao primeiro longa-metragem de Federico Fellini, “Abismo de um Sonho”, filmado em 1952. Na trama, os recém-casados viajam a Roma. Enquanto o rapaz vai conhecer a cidade com alguns parentes, a esposa vai atrás do ator por quem é apaixonada, estrela das fumetti, as fotos novelas muito populares na Itália. Qualquer semelhança, aliás, não terá sido mera coincidência.




Europa
Conhecido por sempre filmar em Nova York (por morar na cidade, prefere não viajar para trabalhar, além de todos benefícios da cidade norte-americana), Woody Allen mudou seu cenário para a Europa, em 2005, quando filmou “Ponto Final – Match Point”, na Inglaterra. No ano seguinte, continuou naquele país para fazer “Scoop – O Grande Furo” e, na sequência, “O Sonho de Cassandra”. Vendo que seus filmes estavam recebendo incentivos para serem rodados no Velho Continente, Allen escolheu a Espanha para filmar “Vicky Cristina Barcelona”.

Em 2009, porém, resolveu voltar para casa e fazer “Tudo Pode Dar Certo”, em Nova Yok. No ano seguinte conheceu o fracasso com “Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos”. A reviravolta veio em 2011, com “Meia Noite em Paris”, filme que o levou de volta para a Europa. A França lhe deu tanto sucesso, que rendeu indicações em Hollywood para o Oscar. E ganhou, mas como Melhor Roteiro Original. Allen, para confirmar sua fama de ser avesso à badalação, não compareceu à festa.