Antonio Carlos Egypto
MINHAS TARDES COM MARGUERITTE (La Tête en Friche). França, 2010. Direção: Jean Becker. Com Gérard Depardieu, Gisèle Casadesus, Sophie Guillemin, Patrick Bouchitey. 82 min.
“Minhas Tardes com Margueritte” é daqueles filmes que acreditam nos sentimentos, no poder transformador das pessoas, na solidariedade humana e em que é possível encontrar gente boa, que ajude a enriquecer a nossa vida. Para alguns, ideias como essas não passam de otimismo irrealista ou ingenuidade. Estamos tão acostumados a crer que tudo vai tão mal, que só nos resta destilar críticas venenosas e exalar pessimismo. Ou fina ironia. Como se tudo já estivesse irremediavelmente perdido. Mas, definitivamente, isso não é verdade.
Em que pesem todos os condicionantes coletivos, a vida é também uma criação de cada um e podemos torná-la mais alegre ou mais bela, mesmo nas adversidades. Ou torná-la desesperançada, sombria. Isso se deve mais a fatores subjetivos do que aos aspectos objetivos da existência.
Germain (Gérard Depardieu) é um trabalhador braçal, cinquentão e iletrado, que leva sua vida de um jeito rude e concreto. Mas se relaciona com uma bela e jovem mulher, tem amigos que encontra no bar e se diverte. Tem lá seus traumas, já que não conhece o pai e sua mãe jamais lhe deu a atenção e o carinho que se espera de uma mãe. Por esse histórico de vida, e uma escola que piorou a coisa ao invés de ajudá-lo a se superar, ele se vê como uma pessoa ignorante e limitada. Ao longo do filme, ele descobrirá que seus talentos não só existem como podem valer muito para algumas pessoas.
Margueritte (Gisèle Casadesus) é uma senhorinha de 95 anos de idade, apaixonada por livros, pela literatura que nos revela o mundo e enobrece o espírito. É o que a mantém viva, apesar dos problemas de vista que a preocupam no momento. Ela vive numa casa de idosos de muito bom padrão, que sua família não poderá manter por muito tempo, por ser muito cara. É uma figurinha frágil, mas profundamente acolhedora.
Encontros fortuitos num banco de praça, à tarde, a propósito de nada, irão produzir um vínculo de amizade entre Germain e Margueritte, assim com dois t, por erro do escrivão ao registrá-la. Mas ela não se importa, afinal, isso a distingue das outras Marguerites.
O foco do filme é essa amizade e o que acontece com cada um deles, a partir daí. E de que forma um pode contribuir para que a vida do outro se torne melhor. Não é para isso mesmo que servem as amizades? A realidade pode ser menos dura, se se puder contar com um amigo na hora mais difícil ou complicada. Ela pode ser mais rica ou poética, se a literatura abrir novas frestas à nossa percepção e compreensão do mundo. O cinema pode fazer isso também: filmes como “Minhas Tardes com Margueritte” servem justamente a esse propósito. Sensibilidade não lhe falta. O tema é rico e relevante, os atores escolhidos para protagonizar a fita são excepcionalmente bons. A simplicidade é o seu trunfo.
A história contada linearmente, com flashbacks e sem complicações, torna o filme acessível a todos, de comunicação fácil. O que não significa que ele seja simplório ou raso. Algumas cenas das maldades perpetradas pela família e pela escola ao Germain criança podem ser consideradas clichê, aí falta sutileza. As cenas dos amigos de bar, que envolvem imigrantes, parecem um pouco idealizadas para a realidade europeia atual. Mas isso não tira o mérito da obra. É um belo filme sobre carinho e afeto, que emociona genuinamente. E exala um humanismo um tanto fora de moda e, talvez por isso mesmo, cada vez mais necessário.
domingo, 29 de maio de 2011
sexta-feira, 27 de maio de 2011
O Poder e a Lei
Tatiana Babadobulos
O Poder e a Lei (The Lincoln Lawyer). Direção: Brad Furman. Roteiro: John Romano. Estados Unidos, 2011. Com: Matthew McConaughey, Marisa Tomei, Ryan Phillippe.
É sentado no banco de trás de um Lincon preto, que o advogado Mick Haller (Matthew McConaughey, de “Como Perder um Homem em 10 Dias”) vai fazer suas negociações, geralmente com traficantes, motoqueiros e prostitutas. Seu charme, porém, é um caso a parte. Embora não precise seduzir nenhuma mulher para conseguir o que quer, sua sedução é toda direcionada para a plateia. E faz bem feito.
Em “O Poder e a Lei” (“The Lincoln Lawyer”), longa-metragem que estreia nesta sexta-feira, 27, nos cinemas, McConaughey vai ter de provar que pode dobrar a lei com poder (já que negocia com os bandidos e com a polícia), quando recebe o caso do jovem playboy Louis Roulet (Ryan Phillippe, de “Crash – No Limite”), que foi detido por agressão e tentativa de estupro. Em um primeiro momento, o garoto até convence que é inocente, mas quando o advogado pede ajuda ao seu amigo investigador, percebe que o caso não será tão fácil assim.
Baseado no best-seller homônimo de Michael Connelly, a fita é repleta de reviravoltas e, ainda que o espectador não entenda sobre leis e regras, as personagens vão contando o que está acontecendo e cada passo dado dos dois lados. No jogo do vai e vem, o espectador vai com o advogado juntando as peças, embora ele vá induzindo sob o seu ponto de vista.
Para completar o eixo familiar do advogado (afinal de contas, sim, ele vai ser ameaçado a certa altura), está a ex-mulher Maggie, vivida por Marisa Tomei (“O Lutador”). Os dois foram casados e têm uma filha. Eles se respeitam e ela é uma bem sucedida advogada que também o apóia, embora não em todas as suas crenças.
Mick é conhecido por ser um verdadeiro advogado de “porta de cadeia”, mas sabe como ganhar bastante dinheiro, principalmente quando precisa defender criminosos envolvidos com o tráfico de drogas. Ele dá um jeito: livra a cara de seu cliente e, em troca, ganha milhões de dólares.
Com direção de Brad Furman e roteiro de John Romano (de “Noites de Tormenta”), “O Poder e a Lei” é um filme que prende a atenção do espectador do início ao fim, pois o instiga a tentar descobrir se, de fato, o rapaz é culpado ou inocente. Porém, mais do que isso, o espectador vai descobrir como os autores vão costurar o thriller de modo a fazer as reviravoltas necessárias.
Com tantos outros filmes que envolvem depoimentos e acusações, como “O Júri”, ou até mesmo quando Robert de Niro vive o padre que vai depor em favor dos rapazes que passaram pelo reformatório, em “Sleepers – A Vingança Adormecida”, além de tantos outros, incluindo “Filadélfia”, protagonizado por Tom Hanks, “O Poder e a Lei” se difere, pois, embora esteja sentado no banco de trás do Lincon, carro que dá nome original ao filme, o advogado não vive cercado de luxo, com um escritório que ocupa um prédio inteiro. Ao contrário. Seu escritório é o próprio carro e ele ainda conta com uma assistente que é especialista em fazer pesquisas pela internet.
“O Poder e a Lei” é um thriller inteligente e que funciona, além de prender a atenção do espectador do início ao fim com diálogos bem construídos que resumem desde o condenado erroneamente, até o típico “filhinho de papai” que apronta e depois não quer agüentar as conseqüências.
quarta-feira, 25 de maio de 2011
INVERSÃO
Antonio Carlos Egypto
INVERSÃO. Brasil, 2009. Direção: Edu Felistoque. Com Alexandre Barillari, Edu Silva, Francisco Carvalho, Giselle Itié, Marisol Ribeiro, Rubens Caribe, Tadeu di Pietro. 91 min.
Segundo a divulgação do filme “Inversão”, estamos em 12 de maio de 2006, em que cidades inteiras são atacadas por uma organização criminosa, que aterroriza a população e mobiliza tanto a força policial quanto a mídia.
Algumas outras coisas, no entanto, podem acontecer, longe do foco dos meios de comunicação de massa e sem que a polícia possa dar a atenção devida. É o caso do sequestro de um empresário por um grupo de criminosos insuspeitos, já que são do seu convívio e do seu próprio estrato social, gente de classe média.
A quem caberá essa investigação? A uma pequena equipe, liderada por uma delegada recém formada, Juliana (Marisol Ribeiro). Uma mulher jovem, bonita e inexperiente, tentará deslindar o que aconteceu com o poderoso empresário desaparecido. Dá para imaginar que não será nada fácil a situação que se apresenta. São muitos os interesses em jogo, envolvendo figuras com poder de fogo.
Haverá um grande complicador: o sequestro se efetivaria por meio de um voo de um avião pequeno, que não chega a termo e cai na mata, onde sequestradores e sequestrado terão de conviver. Estará essa turma capacitada a sobreviver na mata? Aqui se destaca, entre os sequestradores, uma outra mulher, jovem e bonita, Milla (Giselle Itié), essa, porém, uma vilã forte e decidida em seu comportamento agressivo.
Para desenvolver essa trama, o diretor Edu Felistoque se vale de imagens alternadas em preto e branco, sépia e colorido, procurando dar ritmo às ações paralelas que se sucedem, usando e abusando de primeiros planos de detalhes. O resultado é, no mínimo, curioso.
O filme, que se diz “baseado em fatos que serão reais”, referindo-se à possível criminalização progressiva da classe média, participou da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro e do Brazilian Film Festival of Toronto, onde ganhou prêmio por sua trilha sonora.
INVERSÃO. Brasil, 2009. Direção: Edu Felistoque. Com Alexandre Barillari, Edu Silva, Francisco Carvalho, Giselle Itié, Marisol Ribeiro, Rubens Caribe, Tadeu di Pietro. 91 min.
Segundo a divulgação do filme “Inversão”, estamos em 12 de maio de 2006, em que cidades inteiras são atacadas por uma organização criminosa, que aterroriza a população e mobiliza tanto a força policial quanto a mídia.
Algumas outras coisas, no entanto, podem acontecer, longe do foco dos meios de comunicação de massa e sem que a polícia possa dar a atenção devida. É o caso do sequestro de um empresário por um grupo de criminosos insuspeitos, já que são do seu convívio e do seu próprio estrato social, gente de classe média.
A quem caberá essa investigação? A uma pequena equipe, liderada por uma delegada recém formada, Juliana (Marisol Ribeiro). Uma mulher jovem, bonita e inexperiente, tentará deslindar o que aconteceu com o poderoso empresário desaparecido. Dá para imaginar que não será nada fácil a situação que se apresenta. São muitos os interesses em jogo, envolvendo figuras com poder de fogo.
Haverá um grande complicador: o sequestro se efetivaria por meio de um voo de um avião pequeno, que não chega a termo e cai na mata, onde sequestradores e sequestrado terão de conviver. Estará essa turma capacitada a sobreviver na mata? Aqui se destaca, entre os sequestradores, uma outra mulher, jovem e bonita, Milla (Giselle Itié), essa, porém, uma vilã forte e decidida em seu comportamento agressivo.
Para desenvolver essa trama, o diretor Edu Felistoque se vale de imagens alternadas em preto e branco, sépia e colorido, procurando dar ritmo às ações paralelas que se sucedem, usando e abusando de primeiros planos de detalhes. O resultado é, no mínimo, curioso.
O filme, que se diz “baseado em fatos que serão reais”, referindo-se à possível criminalização progressiva da classe média, participou da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, do Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro e do Brazilian Film Festival of Toronto, onde ganhou prêmio por sua trilha sonora.
domingo, 22 de maio de 2011
O HOMEM AO LADO
Antonio Carlos Egypto
O HOMEM AO LADO (El Hombre de al Lado). Argentina, 2009. Direção: Mariano Cohn e Gastón Duprat. Com Rafael Spregelburd, Daniel Aráoz, Eugenia Alonso, Inés Budassi, Loren Acuña. 100 min.
Vizinhos podem ser uma surpresa na vida da gente. Nunca se sabe se resultarão em convívio pacífico, amizade, indiferença ou motivo de desentendimentos e conflitos.
Em “O Homem ao Lado”, Leonardo (Rafael Spregelburd) é um designer industrial muito bem sucedido, que vive com sua esposa Anne (Eugenia Alonso), sua filha Lola (Inés Budassi) e a empregada Alba (Loren Acuña), na cidade de La Plata, em Buenos Aires, numa casa dos sonhos. Basta dizer que essa casa foi a única construída pelo famoso arquiteto Le Corbusier, em toda a América. Ela vive sendo fotografada por estudantes de arquitetura, turistas e outros interessados.
Leonardo é um personagem da elite, tanto financeira, quanto intelectual, se dando ao direito de ser, às vezes, muito exigente, sarcástico ou arrogante. Sua mulher não deixa por menos, quer as coisas do seu jeito e pode ser intolerante em algumas situações. A filha, em início de adolescência, vive em seu mundo, exercitando-se, sempre ligada num som que lhe vem pelos auriculares. Não se comunica com os pais se não for obrigada a isso, como acontece em poucas situações.
O vizinho do lado, Vitor (Daniel Aráoz), entra na vida deles quando começa a quebrar uma parede de sua casa para fazer uma janela que dá direto para a casa de Leonardo, perturbando sua intimidade e realizando ato ilegal, segundo creem Leonardo e Anne. A construção ou não da janela, as mudanças na sua proposta e o seu possível fechamento pontuam toda a trama do filme. É pelo litigante da janela que vamos acompanhar os personagens e a relação que se estabelece entre eles.
Ao sofisticado Leonardo se contrapõe o simplório e direto Vitor, uma figura destemida e que, aparentemente, não se constrange em nenhuma situação. O que fazer com ele? Pedir, intimidar, brigar, negociar, aproximar-se dele, tratá-lo como amigo?
É de diferenças de classes sociais que se trata, mas também de experiências diversificadas, de personalidades e de estilos de encarar a vida que se trata, também. Enfim, das diferenças que estão presentes nos contatos sociais. Só que numa situação onde o convívio se faz obrigatório, em função da vizinhança.
Que rumo essa história irá tomar? É aí que o filme tem sua força: não dá para prever. As situações se sucedem, revelando decisões e ações inesperadas, que surpreendem ou que se mostram diferentes do que pareciam ser. É possível compreender as motivações dos dois lados e apreciar ou não a conduta de uma parte e da outra. O desenrolar dos fatos e o final do filme são reveladores e têm algo a afirmar. Mas o fazem de forma sutil, utilizando um elemento surpresa.
O jogo de relacionamento que se estabelece em torno da construção da janela, indispensável para Vitor, indesejável para Leonardo, põe a nu jeitos de ser e encenam uma interessante disputa pelo poder, em situações em que flagrantes disparidades existem.
O confronto entre eles é o confronto de mundos distintos, separados socialmente, mas diferenciados também por fatores individuais. Por outro lado, mostra por pequenas frestas o que há em comum de humanidade nas relações de poder que se estabelecem. E na forma de tentar solucioná-las.
A narrativa é linear, com ênfase nas formas distintas de lidar com a realidade que os dois principais personagens apresentam. O desempenho dos atores que protagonizam a trama dá bem conta desse objetivo. A figura do ator Daniel Aráoz é perfeita para o tipo do personagem Vitor e ele cria uma interpretação que dispensa qualquer exagero e se destaca pela eficácia. A arquitetura sofisticada e os elementos artísticos que são postos em cena caem como uma luva para exprimir a vida de elite de Leonardo e sua família.
O “Homem ao Lado” é mais um bom produto do cinema argentino contemporâneo, cujos filmes o público brasileiro tem sabido apreciar, em que pesem as rivalidades futebolísticas e comerciais que existem entre os dois países, também vizinhos.
O HOMEM AO LADO (El Hombre de al Lado). Argentina, 2009. Direção: Mariano Cohn e Gastón Duprat. Com Rafael Spregelburd, Daniel Aráoz, Eugenia Alonso, Inés Budassi, Loren Acuña. 100 min.
Vizinhos podem ser uma surpresa na vida da gente. Nunca se sabe se resultarão em convívio pacífico, amizade, indiferença ou motivo de desentendimentos e conflitos.
Em “O Homem ao Lado”, Leonardo (Rafael Spregelburd) é um designer industrial muito bem sucedido, que vive com sua esposa Anne (Eugenia Alonso), sua filha Lola (Inés Budassi) e a empregada Alba (Loren Acuña), na cidade de La Plata, em Buenos Aires, numa casa dos sonhos. Basta dizer que essa casa foi a única construída pelo famoso arquiteto Le Corbusier, em toda a América. Ela vive sendo fotografada por estudantes de arquitetura, turistas e outros interessados.
Leonardo é um personagem da elite, tanto financeira, quanto intelectual, se dando ao direito de ser, às vezes, muito exigente, sarcástico ou arrogante. Sua mulher não deixa por menos, quer as coisas do seu jeito e pode ser intolerante em algumas situações. A filha, em início de adolescência, vive em seu mundo, exercitando-se, sempre ligada num som que lhe vem pelos auriculares. Não se comunica com os pais se não for obrigada a isso, como acontece em poucas situações.
O vizinho do lado, Vitor (Daniel Aráoz), entra na vida deles quando começa a quebrar uma parede de sua casa para fazer uma janela que dá direto para a casa de Leonardo, perturbando sua intimidade e realizando ato ilegal, segundo creem Leonardo e Anne. A construção ou não da janela, as mudanças na sua proposta e o seu possível fechamento pontuam toda a trama do filme. É pelo litigante da janela que vamos acompanhar os personagens e a relação que se estabelece entre eles.
Ao sofisticado Leonardo se contrapõe o simplório e direto Vitor, uma figura destemida e que, aparentemente, não se constrange em nenhuma situação. O que fazer com ele? Pedir, intimidar, brigar, negociar, aproximar-se dele, tratá-lo como amigo?
É de diferenças de classes sociais que se trata, mas também de experiências diversificadas, de personalidades e de estilos de encarar a vida que se trata, também. Enfim, das diferenças que estão presentes nos contatos sociais. Só que numa situação onde o convívio se faz obrigatório, em função da vizinhança.
Que rumo essa história irá tomar? É aí que o filme tem sua força: não dá para prever. As situações se sucedem, revelando decisões e ações inesperadas, que surpreendem ou que se mostram diferentes do que pareciam ser. É possível compreender as motivações dos dois lados e apreciar ou não a conduta de uma parte e da outra. O desenrolar dos fatos e o final do filme são reveladores e têm algo a afirmar. Mas o fazem de forma sutil, utilizando um elemento surpresa.
O jogo de relacionamento que se estabelece em torno da construção da janela, indispensável para Vitor, indesejável para Leonardo, põe a nu jeitos de ser e encenam uma interessante disputa pelo poder, em situações em que flagrantes disparidades existem.
O confronto entre eles é o confronto de mundos distintos, separados socialmente, mas diferenciados também por fatores individuais. Por outro lado, mostra por pequenas frestas o que há em comum de humanidade nas relações de poder que se estabelecem. E na forma de tentar solucioná-las.
A narrativa é linear, com ênfase nas formas distintas de lidar com a realidade que os dois principais personagens apresentam. O desempenho dos atores que protagonizam a trama dá bem conta desse objetivo. A figura do ator Daniel Aráoz é perfeita para o tipo do personagem Vitor e ele cria uma interpretação que dispensa qualquer exagero e se destaca pela eficácia. A arquitetura sofisticada e os elementos artísticos que são postos em cena caem como uma luva para exprimir a vida de elite de Leonardo e sua família.
O “Homem ao Lado” é mais um bom produto do cinema argentino contemporâneo, cujos filmes o público brasileiro tem sabido apreciar, em que pesem as rivalidades futebolísticas e comerciais que existem entre os dois países, também vizinhos.
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Crítica,
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sexta-feira, 20 de maio de 2011
Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas
Tatiana Babadobulos
Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas (Pirates of the Caribbean: On Stranger Tides). Direção: Rob Marshall. Roteiro: Ted Elliott. Com: Johnny Depp, Penélope Cruz e Ian McShane. Estados Unidos, 2011. 137 minutos.
Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas (Pirates of the Caribbean: On Stranger Tides). Direção: Rob Marshall. Roteiro: Ted Elliott. Com: Johnny Depp, Penélope Cruz e Ian McShane. Estados Unidos, 2011. 137 minutos.
Era para ter terminado a série dos filmes em uma trilogia, em 2007, quando foi lançado “Piratas do Caribe: No Fim do Mundo”. O longa-metragem, aliás, havia sido filmado juntamente com o segundo, o “Piratas do Caribe: O Baú da Morte”, de 2006. Mas o início da saga do pirata Jack Sparrow começou em 2003, com “Piratas do Caribe - A Maldição do Pérola Negra”, e mostrou ao mundo que filmes de piratas podem ser bons (ou ao menos podiam...).
Tanto se falou no fim da franquia, mas ela não terminou. Isso porque chega aos cinemas brasileiros nesta sexta-feira, dia 20 de maio, o quarto da série: “Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas” (“Pirates of the Caribbean: On Stranger Tides”). Novamente, tal como nas produções anteriores, o filme é todo de Johnny Depp, embora conte ainda com um elenco que inclui a bela Penelope Cruz no papel de uma pirata, Angelica.
Sob a batuta de Rob Marshall, cujo último filme que dirigiu foi o musical “Nine”, baseado no longa-metragem “8 ½”, de Federico Fellini, a fita está sendo apresentada em 2D, 3D, incluindo a versão Imax, experiência que eu tive, no único cinema deste tipo que existe em São Paulo.
Desta vez, o capitão Jack Sparrow (Depp) terá de ir à Fonte da Juventude, quando uma mulher de seu passado (Penelope) o força a entrar no Vingança da Rainha Ana, barco do pirata Barba Negra (Ian McShane).
O início é em algum lugar da Espanha, quando a corte está tentando pegar o mapa que leva à tal Fonte. Depois, em Londres, Jack se disfarça de juiz (seu olhar, no entanto, é inegável!), mas acaba sendo aprisionado pelo duque, pois querem que ele preste serviços ao rei e consiga chegar antes dos católicos espanhóis, para ter a tão sonhada vida eterna.
Mas quando saem de Londres, Jack Sparrow, a tripulação do rei, Angelica, Barba Negra com sua tripulação de zumbis, seguem em direção a Whitecap. Para chegar à Fonte da Juventude, terão de passar por obstáculos, que inclui belas e encantadoras sereias (do mal) com dentes de vampiro... E a confusão, mais uma vez, está armada.
O toque de humor, os trejeitos e os cacoetes caricatos de Depp estão todos lá. E é exatamente por isso, e por a sua participação no filme, que este vale a pena. Porque não fosse Johnny Depp, nem sairia de casa para ir ao cinema ver um filme escuro, com poucos e rasos diálogos, além de uma música de Hans Zimmer que não cessa um segundo. As lutas de espada também estão lá, e tanto Jack quanto Angelica empunham a arma e saem para lutar. O clima de romance presente nos outros filmes, porém, desapareceu, culpa de Orlando Bloom e Keira Knightley, nos respectivos papéis de Will e Elizabeth, que não estão nesta fita.
Embora a química de Penelope e Johhny funcione, prefiro ela fazendo filmes do diretor espanhol Pedro Almodóvar, como “Abraços Partidos”, ao invés de uma aventura como essa que lá pelas tantas me fez lembrar “Indiana Jones”, principalmente quando vão atrás de um cálice. Só faltou a musiquinha...
Quando mistura religião, um dos tripulantes prega e “Piratas do Caribe” acaba se tornando um filme com aspectos religiosos, por exemplo quando menciona sobre o comportamento de um da tripulação que vive rezando e pregando o bem, além dos espanhóis católicos – ao contrário dos ingleses, que são protestantes. Eles, aliás, tentam destruir o local da Fonte, porque só Deus pode conceder a vida eterna e por isso é preciso acabar com o lugar profano e pagão.
A fita extrapola nos efeitos especiais, o 3D coloca o espectador no filme, o som excelente permite ouvir o canto dos passarinhos, sem falar na maquiagem, no figurino de época, mas se atrapalha nas lutas de espadas.
Mais uma vez, o filme é todo de Johnny Depp que, a exemplo dos anteriores, tem uma brilhante atuação, e ele está bem à vontade na trama, com seus trejeitos e, claro, bom humor. No entanto, o filme cansa, os 128 minutos parecem não terminar, o que é um mau sinal quando se trata de uma superprodução. De qualquer maneira, é esperada uma legião de fãs tomando conta das 141 salas de cinema na capital e na Grande São Paulo: faz parte dessa turma que homenageia um ídolo. Johnny Depp é a única atração em “Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas”, o mais fraco das quatro produções da franquia.
quinta-feira, 19 de maio de 2011
SANTA PACIÊNCIA
Antonio Carlos Egypto
SANTA PACIÊNCIA (The Infidel). Inglaterra, 2010. Direção: Josh Appignanesi. Com Omid Djalili, Richard Schiff, Archie Panjabi, Matt Lucas. 105 min.
Na Inglaterra, muçulmanos e judeus convivem em harmonia, no mesmo espaço, respeitando-se mutuamente. Porém, há rivalidades, incompreensões, alguma estranheza de parte a parte e até rusgas ou intolerância por uma bobagem. Como o lugar certo para estacionar o carro, por exemplo.
“Santa Paciência”, ou O Infiel, no original, é uma comédia que brinca com as diferenças, procurando enfatizar a necessidade de respeitá-las. É engraçada e inteligente.
Mahmud (Omid Djalili), o protagonista, em quem toda a trama está centrada, é muçulmano, embora não praticante. Constitui família e, na medida do possível, segue os preceitos islâmicos, assim como sua mulher e filho. Quando esse filho resolve se apaixonar por uma moça que é filha de um dirigente fundamentalista islâmico, isso já provoca um certo alvoroço e alguma dificuldade. Mas o pior virá depois, quando, circunstancialmente, Mahmud descobre ter sido adotado, já ter tido um outro nome antes e sua origem remontar a uma família tradicional judaica. Agora, sim, é o que o mundo desaba e suas crenças e preconceitos terão de cair por terra.
O desenvolvimento da comédia britânica fará com que ela ouse brincar com hábitos, expressões, jeitos de ser, comidas, roupas e rituais religiosos das duas partes, produzindo um humor de inspiração multiculturalista.
Se o diferente não é o outro, mas eu mesmo, onde está e o que é essa diferença? Aquilo que soava estranho se torna familiar, o interlocutor que era uma espécie de adversário tem de se tornar amigo e cúmplice. De outra parte, olhar criticamente para o seu próprio lado e identificar equívocos, exageros, restrições sem sentido, também ajudam a viver melhor, com mais liberdade e alegria. Ou seja, todo mundo tem a ganhar com isso e não deveria haver mais lugar para fundamentalismos radicais no mundo de hoje. Haja vista que o ciclo Bin Laden acabou e a Al-Qaeda já estava em declínio antes mesmo de seu líder máximo ser apanhado.
A comédia “Santa Paciência” aparece nos cinemas na hora certa. Já é tempo de conviver em paz com a diversidade étnica, cultural, religiosa, social, sexual. A primavera dos países árabes também caminha nessa direção, por mudanças na economia, por melhores condições de vida e por democracia. A decisão do Supremo Tribunal Federal brasileiro, no sentido da total equiparação de direitos dos casais homossexuais aos casais tradicionais heterossexuais, também é um avanço importante nesse mesmo sentido.
Uma comédia que ri dos preconceitos e estereótipos e os combate é sempre bem-vinda e pode ajudar as pessoas a avançar na compreensão da realidade, sem exigir maior esforço. Elas vão ao cinema para se divertir e ganham algo mais, que não são a pipoca e o refrigerante. Esses itens darão lucro para a sala de cinema e aborrecerão os cinéfilos mais atentos ao que o filme tem a dizer.
sábado, 14 de maio de 2011
QUE MAIS POSSO QUERER
Antonio Carlos Egypto
QUE MAIS POSSO QUERER (Cosa Voglio Di Più). Itália, 2010. Direção: Silvio Soldini. Com Alba Rohrwacher, Pierfrancesco Favino, Giuseppe Battiston, Teresa Saponangelo. 126 min.
Ana (Alba Rohrwacher) e Domenico (Pierfrancesco Favino) vão se apaixonar, desejar-se intensa e mutuamente e viver divididos e em conflito neste “Que Mais Posso Querer”, muito bem dirigido por Silvio Soldini.
Ela é casada, vive muito bem com Alessio (Giuseppe Battiston), seu marido bonachão e sempre animado, e estão planejando ter filhos. A combinação é de que ela pare de tomar pílula anticoncepcional, para que isso aconteça. Quanto à situação financeira, eles são de classe média, o dinheiro não está sobrando, mas o essencial está garantido pelo trabalho de ambos.
Ele também é casado, com dois filhos pequenos e alguma dificuldade financeira. Sua mulher Miriam (Teresa Saponangelo) está sempre assoberbada de trabalho em casa, especialmente com as crianças. Mas ele se mostra um pai amoroso e parece se dar bem com a mulher, em que pesem as demandas do dia-a-dia complicarem um pouco as coisas.
Como Domenico e Ana poderão viver essa nova paixão e, ao mesmo tempo, manter seus respectivos casamentos? Fazer dessa paixão só sexo, sem interferir com a vida conjugal, será muito difícil e complicado. Até onde será possível inventar mentiras que “colem” e por quanto tempo? Não é uma trama original, convenhamos. Essa história vive acontecendo com muita gente em todos os lugares.
O interessante do filme de Silvio Soldini é que ele enfatiza o conflito dos dois personagens principais, filmando de um modo muito concreto e realista o que se passa com eles. Juntos, vivendo seu romance, ou separados, tentando segurar suas vidas anteriores. Há inúmeras cenas que mostram essas dificuldades de forma bem realista. Por exemplo, onde concretizar o ato sexual ardentemente desejado, se não pode ser na casa de nenhum dos dois e o dinheiro para o motel é escasso, além de faltar tempo para isso, também? Como Ana tem a chave e acesso ao escritório onde trabalha, por que não ir lá, à noite? Seria perfeito, se não fosse uma colega de trabalho ter a mesma ideia, no mesmo dia e hora, em busca de calma e paz. Em outra cena, um lugar escurinho para uma “rapidinha” resolveria o problema de momento, se não aparecessem trabalhadores, justo na hora H.
Um desentendimento momentâneo entre os amantes, na rua, pode ser presenciado por quem não devia; um cheiro que denuncia; uma desculpa pouco convincente, tudo isso faz parte do jogo e é difícil de manejar. Quem sabe, gastando um pouco mais de dinheiro, fique tudo mais fácil? Afastar-se um pouco, viajar, ir a motéis, mesmo sabendo que esse dinheiro vai fazer falta. Como se vê, tudo muito concreto e realista.
Outro aspecto importante a ressaltar: a ausência de qualquer tipo de julgamento moral. Não há a ideia de “traição”, em que um é sacaneado pelo outro. Não há bons e maus, vencedores ou perdedores. Há o conflito, o dilema moral que se coloca aos personagens e a indefinição da atitude a tomar diante dos fatos. Sem qualquer verdade pré-estabelecida ou moralismo.
Outra virtude do filme é justamente o suspense que ele consegue gerar com esta forma de narrar o que sucede, com as dúvidas de como agir. Prende o interesse o tempo todo, apesar de aparentemente estar contando uma história banal. A questão é que ela nunca será simples ou banal para quem a vive. E o que fazer em cada momento se torna muito importante, tanto para os personagens quanto para cada um de nós, na plateia.
Ótimo trabalho do cineasta italiano, que já nos deu filmes como “Pão e Tulipas”, em 2002, e “Ágata e a Tempestade”, em 2004, que quem não viu pode conferir em DVD. E vale a pena fazer isso.
QUE MAIS POSSO QUERER (Cosa Voglio Di Più). Itália, 2010. Direção: Silvio Soldini. Com Alba Rohrwacher, Pierfrancesco Favino, Giuseppe Battiston, Teresa Saponangelo. 126 min.
Ana (Alba Rohrwacher) e Domenico (Pierfrancesco Favino) vão se apaixonar, desejar-se intensa e mutuamente e viver divididos e em conflito neste “Que Mais Posso Querer”, muito bem dirigido por Silvio Soldini.
Ela é casada, vive muito bem com Alessio (Giuseppe Battiston), seu marido bonachão e sempre animado, e estão planejando ter filhos. A combinação é de que ela pare de tomar pílula anticoncepcional, para que isso aconteça. Quanto à situação financeira, eles são de classe média, o dinheiro não está sobrando, mas o essencial está garantido pelo trabalho de ambos.
Ele também é casado, com dois filhos pequenos e alguma dificuldade financeira. Sua mulher Miriam (Teresa Saponangelo) está sempre assoberbada de trabalho em casa, especialmente com as crianças. Mas ele se mostra um pai amoroso e parece se dar bem com a mulher, em que pesem as demandas do dia-a-dia complicarem um pouco as coisas.
Como Domenico e Ana poderão viver essa nova paixão e, ao mesmo tempo, manter seus respectivos casamentos? Fazer dessa paixão só sexo, sem interferir com a vida conjugal, será muito difícil e complicado. Até onde será possível inventar mentiras que “colem” e por quanto tempo? Não é uma trama original, convenhamos. Essa história vive acontecendo com muita gente em todos os lugares.
O interessante do filme de Silvio Soldini é que ele enfatiza o conflito dos dois personagens principais, filmando de um modo muito concreto e realista o que se passa com eles. Juntos, vivendo seu romance, ou separados, tentando segurar suas vidas anteriores. Há inúmeras cenas que mostram essas dificuldades de forma bem realista. Por exemplo, onde concretizar o ato sexual ardentemente desejado, se não pode ser na casa de nenhum dos dois e o dinheiro para o motel é escasso, além de faltar tempo para isso, também? Como Ana tem a chave e acesso ao escritório onde trabalha, por que não ir lá, à noite? Seria perfeito, se não fosse uma colega de trabalho ter a mesma ideia, no mesmo dia e hora, em busca de calma e paz. Em outra cena, um lugar escurinho para uma “rapidinha” resolveria o problema de momento, se não aparecessem trabalhadores, justo na hora H.
Um desentendimento momentâneo entre os amantes, na rua, pode ser presenciado por quem não devia; um cheiro que denuncia; uma desculpa pouco convincente, tudo isso faz parte do jogo e é difícil de manejar. Quem sabe, gastando um pouco mais de dinheiro, fique tudo mais fácil? Afastar-se um pouco, viajar, ir a motéis, mesmo sabendo que esse dinheiro vai fazer falta. Como se vê, tudo muito concreto e realista.
Outro aspecto importante a ressaltar: a ausência de qualquer tipo de julgamento moral. Não há a ideia de “traição”, em que um é sacaneado pelo outro. Não há bons e maus, vencedores ou perdedores. Há o conflito, o dilema moral que se coloca aos personagens e a indefinição da atitude a tomar diante dos fatos. Sem qualquer verdade pré-estabelecida ou moralismo.
Outra virtude do filme é justamente o suspense que ele consegue gerar com esta forma de narrar o que sucede, com as dúvidas de como agir. Prende o interesse o tempo todo, apesar de aparentemente estar contando uma história banal. A questão é que ela nunca será simples ou banal para quem a vive. E o que fazer em cada momento se torna muito importante, tanto para os personagens quanto para cada um de nós, na plateia.
Ótimo trabalho do cineasta italiano, que já nos deu filmes como “Pão e Tulipas”, em 2002, e “Ágata e a Tempestade”, em 2004, que quem não viu pode conferir em DVD. E vale a pena fazer isso.
sexta-feira, 13 de maio de 2011
Os Agentes do Destino
Tatiana Babadobulos
Você acredita em destino? E naquela história de que nada é por acaso? O longa-metragem “Os Agentes do Destino” (“The Adjustment Bureau”) fala exatamente sobre isso.
A princípio, estranhei quando, na primeira cena, me deparei com Matt Damon, astro de filmes como “Invictus”, trilogia Bourne, “Além da Vida”, de Clint Eastwood, entre outros, fazendo o papel de um candidato ao senado. Mas a fita é mais do que isso. Além de ser um político, Damon participa de um suspense na história que envolve também a bela Emily Blunt, no papel de Elise, uma bailarina que ele conhece, veja bem, no banheiro masculino. Coisa do destino?
No mesmo dia, os dois se beijam e, pouco tempo depois, se encontram, olha só, no ônibus que ele toma em plena Nova York, já que perdeu a eleição e está em busca de um novo emprego. Trocam telefones, mas não se encontram. Destino?
David começa a ser perseguido, mas até então ele não sabe o motivo, tampouco o espectador. É aí que entram os tais agentes do destino, um grupo formado por homens de chapéus e são responsáveis por fazerem as coisas acontecerem na vida de cada um, conforme o plano do chairman – ou presidente. Com um mapa em mãos que lembra o usado nos filmes de “Harry Potter”, cujo desenho vai se mexendo conforme as personagens se movem, os agentes vão fazer de tudo para que os dois não se encontrem mais.
E há uma explicação para isso, mas sem ser explícito. Um deles, aliás, diz o que acontece desde o Império Romano, passando pelas duas Grandes Guerras, para falar sobre o livre arbítrio e que hoje em dia isso não existe, apenas “uma aparência de livre arbítrio”. Ou seja, a pessoa acha que está fazendo escolhas, mas elas estão sendo induzidas. Na trama, é como se a pessoa não pudesse ter tudo, como família perfeita e carreira brilhante. A partir do ultimato que recebe, David tem de escolher por ele e por ela. Embora os dois formem um belo casal, um dos agentes é enfático: “Não interessa como você se sente. O que importa é o que está escrito (preto no branco)”.
Mas David faz o tipo persistente. Não só pessoal, mas politicamente também. Quando perde a eleição e é o mais jovem candidato ao posto, acha que perdeu porque querem pessoas mais adultas. E daí tenta de novo, mesmo tendo perdido no Brooklin, bairro onde cresceu. De repente, o destino lhe prega uma peça novamente e, três anos depois do último encontro no ônibus, continua procurando Elise todos os dias até que a encontra.
Matt Damon não faz feio, ao contrário. O casal funciona e convence o espectador. Ao fazer o discurso, a empolgação remete ao seu papel em “Invictus”.
Escrito e dirigido por George Nolfi (roteirista de “Doze Homens e Outro Segredo”), baseado em conto de Philip K. Dick (“Minority Report – A Nova Lei”), o filme está sendo lançado como suspense, mas não dá para concordar tendo como referência o mestre do gênero, Alfred Hitchcock, autor de filmes como “Psicose”. “Os Agentes do Destino” tem um mistério, uma busca incessante pelo que se quer, além de ser uma comédia romântica que lembra as protagonizadas por Tom Hanks, por exemplo. O toque de humor acontece sempre com a garota, mas principalmente quando ambos se encontram no ônibus.
Para driblarem o destino, os dois entram e saem de portas, de maneira que aparecem em outros lugares. Talvez uma grande referência ao longa-metragem de animação “Monstros S.A.”? Até que entram em uma porta na Estátua da Liberdade e mudam o destino que havia sido traçado. Simbólico, não?
terça-feira, 10 de maio de 2011
SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA
Antonio Carlos Egypto
SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA. Portugal, 2009. Direção e roteiro: Manoel de Oliveira. Com Ricardo Trêpa, Catarina Wallenstein, Diogo Dória, Júlia Buisel, Leonor Silveira, Felipe Vargas. 63 min.
“Singularidades de uma Rapariga Loura” é uma pequena joia do cinema. Realização do mestre português Manoel de Oliveira, aos 101 anos de idade, com base num conto de Eça de Queiroz, adaptado e atualizado por ele. Atualização que pode ser considerada sui generis, já que mostra trabalho ao computador, carros atuais, preços em euros, mas num ambiente que remete ao passado. As lojas são de rua, com donos conhecidos, não se veem galerias ou shopping centers.
O personagem central, Macário (Ricardo Trêpa), é um contador que trabalha na parte de cima da própria loja de tecidos em que está empregado. As vestimentas e penteados são tradicionais, assim como o interior das casas e os objetos que elas contêm. Fazem-se saraus musicais e literários com harpa tocada ao vivo e declamação de poema de Fernando Pessoa, oportunidade para uma ponta do grande ator Luís Miguel Cintra no filme.
Os comportamentos não estão propriamente atualizados. O casamento é levado muito a sério. O homem deve se preparar financeiramente para arcar com as responsabilidades familiares e sustentar esposa e filhos que vierem. Há os pedidos formais aos pais ou aos que ocupam o lugar deles – o tio, no caso de Macário, o que dá origem a um dos principais conflitos da trama, que leva à pobreza o protagonista. A mulher é passiva, espera pelo homem, a quem cabe a iniciativa, e assim por diante. É evidente que tudo isso remete ao século XIX, de Eça de Queiroz, mas poderia ter sofrido uma atualização maior.
O que Manoel de Oliveira parece querer dizer é que, a despeito do Portugal moderno e progressista que hoje existe, impulsionado pela União Europeia (no momento, vivendo uma crise), a tradição pesa e está fortemente presente, para o bem e para o mal. Aí está embutida a lembrança penosa do salazarismo e cita-se o próprio Salazar, que tanto mal causou a Portugal e ao próprio diretor. Por outro lado, faz reverência à grande literatura e homenageia o autor da trama, ao mostrar, numa das cenas, um instituto ou centro cultural dedicado à memória e à obra de Eça de Queiroz, tradição que orgulha o país. Além disso, o autor é incorporado à sua própria criação.
O filme trata de uma paixão que se dá a partir da sacada de um escritório e da janela de uma casa. Macário terá sua vida transformada completamente, envolvido na paixão pela linda loura (Catarina Wallenstein), que se posta à janela em frente à sua sacada, portando seu maravilhoso leque. Esse leque, do qual muito se falará, representa a loura, o desejo, o enamoramento, a atração, dos quais não se pode fugir. Por essa paixão, pode-se perder tudo, uma posição já consolidada no trabalho, o status e o dinheiro. Por ela, vale ir viver um tempo em Cabo Verde , para juntar dinheiro para poder se casar. Ela passa a ser o motor da vida.
No mesmo plano, mas separados pela rua, os futuros namorados se conhecem. Com a câmera postada de cima para baixo, ele procura controlar os passos dela, para ir ao seu encontro. Com a câmera na posição inversa, ela o chama para descer ao seu encontro. Tempos depois, ele olha desejoso para ela, agora desde a rua, já que perdeu sua sacada. Altos e baixos que se sucederão ao longo da narrativa, até que as singularidades da tal rapariga se façam presentes. O encanto se perde. Isso posto, não há mais nada e o filme termina. Abruptamente. Perfeita solução cinematográfica do diretor: o corte definitivo. Entram os créditos finais.
Essa mise-en-scène, contando essa história de amor tão marcante, se dá a partir do relato do protagonista a uma desconhecida (Leonor Silveira), numa viagem de trem, onde Macário já está mudado, decepcionado e sem barba. Manoel de Oliveira só precisou de pouco mais de uma hora para tudo isso. E não esticou o filme para caber numa sessão comercial de cinema, convencionada para algo em torno de duas horas. Ele usou o tempo de que precisava, no seu ritmo habitual, sem correrias. Concebeu e dirigiu um pequeno grande filme.
É uma notícia alvissareira o seu lançamento no circuito comercial de cinema, pelo menos na cidade de São Paulo. Espero que alcance, além do Rio, muitas outras cidades brasileiras. E que saia em DVD, para que muito mais gente possa ter acesso a essa joia cinematográfica.
domingo, 8 de maio de 2011
AVES DE VERÃO
Antonio Carlos Egypto
AVES DE VERÃO (Sommervögel). Suíça, 2010. Direção: Paul Riniker. Com Sabine Timoteo, Roeland Wiesnekker, Anna Thalbach, Dorothée Müggler. 96 min.
Uma moça de 33 anos de idade, com problemas mentais, vive protegida pelos pais. Seu comportamento e a análise que faz dos fatos que vivencia são ingênuos, infantis. Mas ela procura viver sua vida e encontrar o afeto, o prazer e a felicidade, além de alcançar alguma autonomia, dentro de suas limitadas condições. Ela é Greta, vivida pela atriz Sabine Timoteo, uma criação muito convincente.
Ele é Res (Roeland Wiesnekker), ex-presidiário, em busca de sobrevivência – um emprego com que possa se sustentar – e recuperação do erro que cometeu. É motociclista e um cara habilidoso com máquinas e equipamentos.
Os dois personagens irão se encontrar num acampamento onde vivem pessoas que buscam uma vida tranquila e onde Res conseguirá uma ocupação, graças a uma antiga amiga. Greta também tentará ser útil em algum serviço por lá e como auxiliar eventual de sua irmã, dentista.
Uma trama centrada em dois personagens marginalizados que tentam se inserir socialmente, enquanto enfrentam toda sorte de empecilhos e dificuldades, ao mesmo tempo em que recebem solidariedade de algumas pessoas. E vão conviver um com o outro. O que pode resultar daí? Afeto, amizade, desejo, amor, conflito, crime?
Esse é o mote do filme “Aves de Verão”, premiado no principal evento de cinema da Suíça, na cidade de Solothurn. É o primeiro longa de ficção do diretor Paul Riniker, após trinta anos trabalhando como documentarista. Por sinal, o documentário é o gênero mais explorado por lá.
O cinema suíço ainda é muito pouco conhecido entre nós, daí a importância da oportunidade que se apresenta agora no 2º Panorama do Cinema Suíço Contemporâneo, promovido pelo Consulado Geral da Suíça em São Paulo, o SESC e o Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. De 13 a 22 de maio, serão apresentadas 13 produções inéditas do cinema helvético: 7 filmes de ficção e 6 documentários.
O filme de abertura no Cinesesc será esse “Aves de Verão”, que é um filme sensível sobre uma temática importante, como a inclusão de pessoas com problemas mentais, além de discutir o problema da recuperação e reinserção de ex-presidiários. Vale a pena conferir esse e outros títulos do cinema suíço atual. Afinal, apesar do comentário ferino de Orson Welles, nem só de chocolate e relógio cuco vive a Suíça, não é mesmo?
AVES DE VERÃO (Sommervögel). Suíça, 2010. Direção: Paul Riniker. Com Sabine Timoteo, Roeland Wiesnekker, Anna Thalbach, Dorothée Müggler. 96 min.
Uma moça de 33 anos de idade, com problemas mentais, vive protegida pelos pais. Seu comportamento e a análise que faz dos fatos que vivencia são ingênuos, infantis. Mas ela procura viver sua vida e encontrar o afeto, o prazer e a felicidade, além de alcançar alguma autonomia, dentro de suas limitadas condições. Ela é Greta, vivida pela atriz Sabine Timoteo, uma criação muito convincente.
Ele é Res (Roeland Wiesnekker), ex-presidiário, em busca de sobrevivência – um emprego com que possa se sustentar – e recuperação do erro que cometeu. É motociclista e um cara habilidoso com máquinas e equipamentos.
Os dois personagens irão se encontrar num acampamento onde vivem pessoas que buscam uma vida tranquila e onde Res conseguirá uma ocupação, graças a uma antiga amiga. Greta também tentará ser útil em algum serviço por lá e como auxiliar eventual de sua irmã, dentista.
Uma trama centrada em dois personagens marginalizados que tentam se inserir socialmente, enquanto enfrentam toda sorte de empecilhos e dificuldades, ao mesmo tempo em que recebem solidariedade de algumas pessoas. E vão conviver um com o outro. O que pode resultar daí? Afeto, amizade, desejo, amor, conflito, crime?
Esse é o mote do filme “Aves de Verão”, premiado no principal evento de cinema da Suíça, na cidade de Solothurn. É o primeiro longa de ficção do diretor Paul Riniker, após trinta anos trabalhando como documentarista. Por sinal, o documentário é o gênero mais explorado por lá.
O cinema suíço ainda é muito pouco conhecido entre nós, daí a importância da oportunidade que se apresenta agora no 2º Panorama do Cinema Suíço Contemporâneo, promovido pelo Consulado Geral da Suíça em São Paulo, o SESC e o Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo. De 13 a 22 de maio, serão apresentadas 13 produções inéditas do cinema helvético: 7 filmes de ficção e 6 documentários.
O filme de abertura no Cinesesc será esse “Aves de Verão”, que é um filme sensível sobre uma temática importante, como a inclusão de pessoas com problemas mentais, além de discutir o problema da recuperação e reinserção de ex-presidiários. Vale a pena conferir esse e outros títulos do cinema suíço atual. Afinal, apesar do comentário ferino de Orson Welles, nem só de chocolate e relógio cuco vive a Suíça, não é mesmo?
sexta-feira, 6 de maio de 2011
Como Arrasar um Coração
Tatiana Babadobulos
Como Arrasar um Coração (L'Arnacoeur). França e Mônaco, 2010. Direção: Pascal Chaumeil. Roteiro:Laurent Zeitoun, Jeremy Doner. Com: Romain Duris, Vanessa Paradis e Julie Ferrier. 105 minutos
Quem disse que todo filme francês tem final estranho, aliás, muitas vezes nem final tem? “Como Arrasar um Coração” (“L’Arnacoeur”) é uma comédia romântica dirigida por Pascal Chaumeil, em sua estreia no cinema, já que ele tem mais experiência em séries de televisão. Como primeira produção, aliás, ele não faz feio, até recebeu indicação ao César, o Oscar francês, na categoria de Melhor Filme de Estreia e outras quatro: Melhor Filme, Ator, Ator Coadjuvante, Atriz Coadjuvante – mas não ganhou nenhum.
Assisti ao filme no ano passado, durante um voo entre Paris e São Paulo. Agora, estreia nos cinemas brasileiros. A narrativa, baseada em história real da roteirista e produtora Laurent Zeitoun (que escreveu ao lado de Jeremy Doner e Yohan Gromb), conta a história vivida por Romain Duris. O protagonista, aliás, é um dos atores mais disputados na França e trabalhou em produções como “Em Paris” (de Christophe Honoré, ao lado de Louis Garrel), “As Aventuras de Molière” (de Laurent Tirard), “Paris” (de Cédric Klapisch), entre outros.
Aqui, ele é Alex Lippi, um sedutor que conquistou e encantou uma tropa de mulheres. No entanto, tal como ele diz no início da fita, este é o seu trabalho, ou seja, ele é contratado para seduzir mulheres novas ou menos novas, francesas ou estrangeiras. E, geralmente, o desafio aumenta ainda mais, pois elas são comprometidas. Para executar o tal “servicinho”, ele conta com a ajuda da irmã (Julie Ferrier) e do cunhado (François Damiens que, aliás, rouba a cena em diversos momentos).
No entanto, o maior de todos os desafios e que é contado com ênfase no filme de Chaumeil, é que ele terá 10 dias para conquistar a socialite Juliette Van Der Becq (Vanessa Paradis), já que ela está de casamento marcado como inglês Jonathan Alcott (Andrew Lincoln). Para tanto, vai valer tudo. E é exatamente aí que está a graça do longa-metragem que tem 105 minutos de duração.
O filme, que fez um grande sucesso na Europa e já teve seus direitos vendidos para ser refilmado nos Estados Unidos, é ambientado em locações que incluem hotéis de luxo, escritórios, lojas etc. Destaque principalmente para o cenário estonteante quando ao fundo temos Monte Carlo, em Mônaco.
“Como Arrasar um Coração” não tem diálogos bem construídos, como é a característica principal desses filmes feitos do lado de lá do Atlântico, mas o bom humor está presente em toda a fita. De quebra, o que poderíamos chamar de um revival interessante, é a interpretação do casal da dança principal de um dos clássicos dos anos 1980: “Dirty Dancing”, estrelado por Patrick Swayze e Jennifer Grey.
Ainda assim, há algumas cenas que parecem artificiais, afinal de contas, como é possível organizar tramoias tão perfeitas e em tão pouco tempo como essa trupe consegue?
“Como Arrasar um Coração” é mais que uma sessão da tarde e um ótimo motivo para rir sem compromisso no cinema. E, de repente, suspirar ao final...
quinta-feira, 5 de maio de 2011
Como Você Sabe
Tatiana Babadobulos
Como Você Sabe (How do you Know). Estados Unidos, 2010. Direção e roteiro: James L. Brooks. Com: Reese Witherspoon, Owen Wilson, Jack Nicholson, Paul Rudd, Kathryn Hahn. 121 minutos
Em "Como Você Sabe" ("How do you Know"), a pequena Lisa (mais tarde vivida por Reese Witherspoon, de "Johnny & June") joga beisebol e, quando cresce, vira jogadora profissional do esporte. Porém, devido a algumas mudanças no time, ela é cortada.
Mas sua vida não se resume ao esporte. Ela também quer conhecer alguém que possa lhe fazer feliz. A princípio, porém, quer algo sem compromisso, e isso é garantido quando conhece Matty (Owen Wilson, de "Passe Livre"), que também é jogador de beisebol, mas daqueles bem sucedidos, que vive em um grande apartamento em Nova York, tem muitas mulheres no seu pé e sensibilidade zero.
Para completar o trio amoroso, entra em cena George (Paul Rudd, de "Ligeiramente Grávidos"). O modo como os dois se conhecem é, no mínimo, estranho. Mas a fita vai se desenvolvendo aos poucos e cativando o espectador, que tenta descobrir, afinal de contas, com quem a mocinha vai ficar...
Mas este não é o único "suspense" da comédia, por assim dizer. Isso porque esta típica sessão da tarde tem o toque refinado, principalmente por conta do papel interpretado por Jack Nicholson, que, aqui, é um empresário envolvido em falcatruas financeiras, que tenta convencer o filho, George, em ir para a prisão no seu lugar.
Nicholson é coadjuvante, mas, claro, rouba a cena. Novamente trabalhando com James L. Brooks ("Melhor é Impossível"), diretor e autor do roteiro, mostra que está bastante à vontade no papel de um malvado...
Entre os altos e baixos da carreira, as personagens vão dividindo essas aflições com o público, já que Lisa está em busca de um novo emprego, enquanto Matty está em plena forma e fazendo sucesso, e George, bem, ele tem de decidir se manda o pai ou vai em seu lugar para a prisão.
Para finalizar o núcleo cômico, está Annie (Kathryn Hahn, de "Foi Apenas um Sonho"), a secretária de George, que está grávida e o apoia dizendo que sabe de coisas que poderiam ajudá-lo. E é justamente quando tenta contar esses segredos, mas de alguma maneira que não seja diretamente (já que assinou um termo que a proibe de contar), que ela protagoniza cenas engraçadas.
"Como Você Sabe" é daquelas comédias cheias de piadas prontas, mas que não faz mal nenhum ao espectador. É razoável, na medida que faz rir, ainda que não tenha sacadas geniais e seja bastante previsível.
quarta-feira, 4 de maio de 2011
REENCONTRANDO A FELICIDADE
Antonio Carlos Egypto
REENCONTRANDO A FELICIDADE (Rabbit Hole). Estados Unidos, 2010. Direção: John Cameron Mitchell. Com Nicole Kidman, Aaron Eckart, Dianne West, Miles Teller, Sandra Oh. 91 min.
“Reencontrando a felicidade” é um dos piores títulos em português que poderiam ser pensados para “Rabbit Hole”. Provavelmente, o buraco do coelho ou a toca do coelho deve ter soado infantil para os distribuidores do filme no Brasil. Ocorre que eles remetem a Alice, de Lewis Carroll, e à entrada num universo desconhecido, onde nunca se fica à vontade ou em paz, tudo parece incomodar, o tempo é um problema e o personagem não se reconhece naquele labirinto em que se enfiou. É disso mesmo que trata o filme. Ele também poderia ter sido batizado de universos paralelos, em alusão a um livro que a personagem principal lê, e a uma história em quadrinhos, que é produzida por outro personagem, um adolescente diretamente envolvido na trama. Eles remetem igualmente a esses universos desconhecidos e desconfortáveis. Universos de perplexidade e dor, em que a questão da felicidade nem se coloca. Trata-se, isso sim, da perda, do luto.
Faz parte do roteiro da vida que os pais morram antes dos filhos. Quando isso não acontece, a dor da perda é muito grande. Tratando-se de um filho pequeno, morto num acidente em que não se pode atribuir culpa a ninguém, a perplexidade e a dor se instalam.
Como viver depois disso? Como conseguir elaborar uma perda assim tão forte e decisiva? O chão se abre e a vida passa a ser um buraco negro, em que a própria identidade vai se desfazendo. Parece não haver reparação possível.
O apelo mais comum é à crença religiosa. Mas Becca (Nicole Kidman), a mãe em luto, é crítica demais para se colocar na condição de uma pessoa ingenuamente conformada com os desígnios de Deus, claramente incompreensíveis nesse caso. Grupos de autoajuda costumam ir por aí. O compartilhar da dor pode ser muito importante, mas nem sempre traz conforto de fato. Quem sabe compartilhar uns cigarros de maconha com alguém na mesma situação possa ajudar? Bem, pelo menos é o que acaba fazendo o pai, Howie (Aaron Eckart).
Ele procura elaborar a sua perda, apegando-se a imagens e objetos do filho morto. Ela, ao contrário, procura apagar tudo isso para sofrer menos. E desencontros como esses irão produzir um distanciamento entre os dois. O sexo, que se liga à reprodução e, eventualmente, poderia substituir o filho perdido, sai de cena, se torna uma impossibilidade. Tudo vai se tornando difícil, cada vez mais complicado.
É da dolorida elaboração do luto que torna a vida inóspita, tensa, ríspida, estranha em todos os sentidos, que trata o filme, baseado num texto denso e forte, oriundo de uma peça teatral. As imagens do filme, com cores frias, e o clima que se instala, mostram com clareza todo esse sentimento e a luta interior que se estabelece, contando com o desempenho notável tanto de Aaron Eckart quanto de Nicole Kidman. Eles dão consistência interpretativa a toda essa dor e aos conflitos intensos de seus personagens.
O diretor não faz do drama uma coisa pesada e insuportável, até dá alguns respiros, mas consegue pôr em imagens a dor e a perplexidade que estão no centro da narrativa e pontuam o confronto do casal enlutado.
John Cameron Mitchell surpreende, num registro bem diferente de seus longas anteriores: “Hedwig, Rock, Amor e Traição” (2001) e “Shortbus” (2006), esse último lançado há pouco tempo no circuito cinematográfico no Brasil. “Hedwig” remetia a uma cantora de rock, de Berlim Oriental, que nasceu homem e teve problemas na operação de mudança de sexo. O papel vivido pelo próprio diretor, também roteirista, é ousado, colorido, com muita música e humor, apesar de amargo. “Shortbus” é um filme sobre sexo, amor, hedonismo – a busca do prazer e a sua perspectiva libertadora. Contém cenas de sexo explícito, num direcionamento pansexual, que, no entanto, se revela insatisfatório para seus próprios personagens. É outro filme ousado, mas que, com tudo isso, consegue ser sutil e questionador. E não descamba para o mau gosto. Mérito inegável do diretor.
Esses dois filmes são produções independentes, de baixo orçamento, diferentes de “Rabbit Hole”, cujo projeto é mais ambicioso e foi oferecido a Cameron Mitchell. Não era originalmente projeto seu. A sensibilidade que ele demonstrou na realização desse filme, porém, foi tão grande que parece criação sua, em todos os sentidos. Talvez porque sua vida pessoal e familiar tenham sido marcadas por essas elaborações de luto, o que pode ter produzido toda essa empatia com a trama filmada. E, é claro, demonstra o talento e a versatilidade do realizador.
REENCONTRANDO A FELICIDADE (Rabbit Hole). Estados Unidos, 2010. Direção: John Cameron Mitchell. Com Nicole Kidman, Aaron Eckart, Dianne West, Miles Teller, Sandra Oh. 91 min.
“Reencontrando a felicidade” é um dos piores títulos em português que poderiam ser pensados para “Rabbit Hole”. Provavelmente, o buraco do coelho ou a toca do coelho deve ter soado infantil para os distribuidores do filme no Brasil. Ocorre que eles remetem a Alice, de Lewis Carroll, e à entrada num universo desconhecido, onde nunca se fica à vontade ou em paz, tudo parece incomodar, o tempo é um problema e o personagem não se reconhece naquele labirinto em que se enfiou. É disso mesmo que trata o filme. Ele também poderia ter sido batizado de universos paralelos, em alusão a um livro que a personagem principal lê, e a uma história em quadrinhos, que é produzida por outro personagem, um adolescente diretamente envolvido na trama. Eles remetem igualmente a esses universos desconhecidos e desconfortáveis. Universos de perplexidade e dor, em que a questão da felicidade nem se coloca. Trata-se, isso sim, da perda, do luto.
Faz parte do roteiro da vida que os pais morram antes dos filhos. Quando isso não acontece, a dor da perda é muito grande. Tratando-se de um filho pequeno, morto num acidente em que não se pode atribuir culpa a ninguém, a perplexidade e a dor se instalam.
Como viver depois disso? Como conseguir elaborar uma perda assim tão forte e decisiva? O chão se abre e a vida passa a ser um buraco negro, em que a própria identidade vai se desfazendo. Parece não haver reparação possível.
O apelo mais comum é à crença religiosa. Mas Becca (Nicole Kidman), a mãe em luto, é crítica demais para se colocar na condição de uma pessoa ingenuamente conformada com os desígnios de Deus, claramente incompreensíveis nesse caso. Grupos de autoajuda costumam ir por aí. O compartilhar da dor pode ser muito importante, mas nem sempre traz conforto de fato. Quem sabe compartilhar uns cigarros de maconha com alguém na mesma situação possa ajudar? Bem, pelo menos é o que acaba fazendo o pai, Howie (Aaron Eckart).
Ele procura elaborar a sua perda, apegando-se a imagens e objetos do filho morto. Ela, ao contrário, procura apagar tudo isso para sofrer menos. E desencontros como esses irão produzir um distanciamento entre os dois. O sexo, que se liga à reprodução e, eventualmente, poderia substituir o filho perdido, sai de cena, se torna uma impossibilidade. Tudo vai se tornando difícil, cada vez mais complicado.
É da dolorida elaboração do luto que torna a vida inóspita, tensa, ríspida, estranha em todos os sentidos, que trata o filme, baseado num texto denso e forte, oriundo de uma peça teatral. As imagens do filme, com cores frias, e o clima que se instala, mostram com clareza todo esse sentimento e a luta interior que se estabelece, contando com o desempenho notável tanto de Aaron Eckart quanto de Nicole Kidman. Eles dão consistência interpretativa a toda essa dor e aos conflitos intensos de seus personagens.
O diretor não faz do drama uma coisa pesada e insuportável, até dá alguns respiros, mas consegue pôr em imagens a dor e a perplexidade que estão no centro da narrativa e pontuam o confronto do casal enlutado.
John Cameron Mitchell surpreende, num registro bem diferente de seus longas anteriores: “Hedwig, Rock, Amor e Traição” (2001) e “Shortbus” (2006), esse último lançado há pouco tempo no circuito cinematográfico no Brasil. “Hedwig” remetia a uma cantora de rock, de Berlim Oriental, que nasceu homem e teve problemas na operação de mudança de sexo. O papel vivido pelo próprio diretor, também roteirista, é ousado, colorido, com muita música e humor, apesar de amargo. “Shortbus” é um filme sobre sexo, amor, hedonismo – a busca do prazer e a sua perspectiva libertadora. Contém cenas de sexo explícito, num direcionamento pansexual, que, no entanto, se revela insatisfatório para seus próprios personagens. É outro filme ousado, mas que, com tudo isso, consegue ser sutil e questionador. E não descamba para o mau gosto. Mérito inegável do diretor.
Esses dois filmes são produções independentes, de baixo orçamento, diferentes de “Rabbit Hole”, cujo projeto é mais ambicioso e foi oferecido a Cameron Mitchell. Não era originalmente projeto seu. A sensibilidade que ele demonstrou na realização desse filme, porém, foi tão grande que parece criação sua, em todos os sentidos. Talvez porque sua vida pessoal e familiar tenham sido marcadas por essas elaborações de luto, o que pode ter produzido toda essa empatia com a trama filmada. E, é claro, demonstra o talento e a versatilidade do realizador.
segunda-feira, 2 de maio de 2011
Thor
Tatiana Babadobulos
Thor. Estados Unidos, 2011. Direção: Kenneth Branagh. Roteiro: Ashley Miller. Com: Chris Hemsworth, Anthony Hopkins, René Russo e Natalie Portman. 114 minutos
Deus do trovão, “Thor” é a nova aposta da Marvel, responsável pelas HQs de personagens até mesmo mais conhecidas, como “Homem-Aranha”, “X-Men”, “Hulk”, “Homem de Ferro”, entre outros. O mais esperado talvez seja “Capitão América – O Primeiro Vingador”, cujo lançamento nos cinemas está prometido para dia 22 de julho, nos Estados Unidos.
Thor. Estados Unidos, 2011. Direção: Kenneth Branagh. Roteiro: Ashley Miller. Com: Chris Hemsworth, Anthony Hopkins, René Russo e Natalie Portman. 114 minutos
Deus do trovão, “Thor” é a nova aposta da Marvel, responsável pelas HQs de personagens até mesmo mais conhecidas, como “Homem-Aranha”, “X-Men”, “Hulk”, “Homem de Ferro”, entre outros. O mais esperado talvez seja “Capitão América – O Primeiro Vingador”, cujo lançamento nos cinemas está prometido para dia 22 de julho, nos Estados Unidos.
A aventura épica, ambientada na mitologia escandinava, começa contando sobre os tempos de paz entre os reinos Asgard e Jotunheim. Thor, guerreiro viking, se apressa em assumir o trono. Porém, assim que Asgard é atacada por Laufay, Thor (Chris Hemsworth, de “Jornada nas Estrelas”), declara guerra ao Gigante de Gelo, atitude que é reprovada por seu pai (Anthony Hopkins).
Neste momento, há discussões que levam em conta a psicologia, quando o monstro diz que ele “não passa de um menino querendo se autoafirmar”. Ele retruca: “Esse menino cansou de sua zombaria”. Thor não aceita as provocações , mas o Gigante afirma: “Ele vai ter o que procura: guerra e morte”. Pronto, está armada uma das batalhas.
Com a reprovação da atitude do rapaz, o rei decide exilar seu filho, mandando-o para Midgard, onde poderá aprender a sabedoria e a humildade. Momento da jornada do herói, e depois vem a catarse, pois lá, terá de conviver com o fato de seu irmão (Tom Hiddleston), malévolo e ciumento, dizer que ele não deve voltar nunca mais.
A fita tem direção do inglês Kenneth Branagh, que pôde ser visto como ator no filme “Harry Potter e a Câmara Secreta”, por exemplo, e, atrás das câmaras, em “Hamlet”, de 1996, com Judi Dench no elenco. Aqui, porém, Branagh explora demais a técnica tridimensional, em detrimento da interpretação dos atores.
Pode-se dizer que o personagem título também deixa a desejar. Não se pode exigir muito, é claro, do ator que vai bancar o super-herói. Os atributos de Chris são bastante, digamos, convincentes, principalmente no que diz respeito ao físico, à força (Thor tem uma força incrível nos desenhos animados e nos quadrinhos) etc. Mas, ao mesmo tempo, quando para a produção é escalada atriz do porte de Natalie Portman, vencedora do último Oscar na categoria de Melhor Atriz, por “Cisne Negro”, espera-se mais e aqui ela praticamente passa despercebida como a pesquisadora. Em versão dublada, então, nem se fala... Simplesmente não dá!
Além de Natalie Portman e Anthony Hopkins, no papel do rei, a produção conta ainda com atores como a doce rainha, vivida por René Russo.
Thor é mais corpo que mente, se movimenta mais rápido do que pensa, e o filme mostra muito isso, ou seja, mais batalhas que expressões verbais. Embora o diretor sempre tenha apreciado as histórias épicas, as batalhas sangrentas e os heróis, “Thor” é também um drama de conflitos familiares, como as personagens criadas por Shakespeare, em “Henrique V” e “Hamlet”. Thor é humanizado e, lá pelas tantas, terá o amor entre ele e uma humana... Essa é a parte do longa-metragem que funciona, prende o espectador, tem uma história que interessa, com algumas pitadas de humor. Quando fala sobre o reino, porém, não instiga.
Apesar da história confusa, o universo criado por Branagh é fascinante. Com exceção de umas duas sequências artificiais, como a péssima multiplicação das pessoas por computador, e de problemas de proporção com o tamanho das pessoas, a fita até convence. Quando Thor chega à Terra, o local escolhido para se passarem as cenas é o Novo México, nos Estados Unidos.
Aqui, embora tudo seja atualizado, como a troca de e-mails entre os pesquisadores, o laptop, iPod que a assistente de Jane adora ouvir e baixar músicas, e até mesmo a foto que ela tira a partir de seu celular para postar no Facebook, tudo é atual. A não ser, é claro, que ninguém parece se surpreender com a presença de extraterrestres na Terra...
A produção de “Thor” é grandiosa, inclusive com exibições em três dimensões. O problema, porém, é justamente a banalização do 3D, de modo que exista uma desculpa para público ir ao cinema: a eterna discussão entre forma versus conteúdo. Sobre o 3D, há explicações, haja vista que a pirataria tem sido responsável pelo êxodo das pessoas nos cinemas, já que a aventura pode ser tranquilamente baixada pela internet. A experiência da tela grande com as imagens em três dimensões, porém, têm exclusividade nas salas de cinema.
Não resta dúvida que, tal como os outros filmes da Marvel, “Thor” terá uma incrível renda na bilheteria. E nem precisa ter lido a HQ para entender a história, ainda que esta personagem criada por Stan Lee seja menos conhecida que as demais. Por falar em Lee, preste atenção no motorista do carro que tenta guinchar o martelo de Thor...
Comprada pela Disney em 2009, a Marvel vai continuar lançando os filmes que saíram dos quadrinhos. Portanto, vá assistir ao “Thor” sabendo o que está vendo, de preferência acompanhado com um grande balde de pipocas. E nada mais.
Em tempo: como nos outros filmes da Marvel, não saia antes de ver as cenas após os créditos!
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Thor - Deus do trovão, filho de Odin
Odin - Rei de Asgard
Laufey - Rei de Jotunheim, inimigo de Odin
Loki - irmão de Thor
Jane - Jovem mortal, vive na Terra
Midgard - Terra
Bifrost - Ponte que permite a passagem de um reino a outro ou ser mandado para a Terra
Heimdall - Gardião de Bifrost
Mjolnir - martelo mágico de Thor que lhe atribui uma força sobrenatural
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domingo, 1 de maio de 2011
O ANJO EXTERMINADOR -- DE BUÑUEL
Antonio Carlos Egypto
O ANJO EXTERMINADOR (El Ángel Exterminador). México, 1962. Direção: Luís Buñuel. Com Silvia Pinal, Enrique Rabal, Jacqueline Andere, José Baviera, Luís Beristain. 95 min.
Um sofisticado jantar da alta burguesia num suntuoso casarão é o ponto de partida de que o cineasta Luis Buñuel se utiliza para nos revelar o lado sórdido desse mesmo encontro. Sórdido porque, para além das convenções sociais, está uma classe social escorada no seu narcisismo, no seu ócio e no seu luxo, insensível ao outro e ao mundo que a cerca.
Luís Buñuel
Trata-se de irracionalidade, sim, pois aqui estamos no terreno do inconsciente, dos impulsos e pulsões que escapam ao controle. Nas situações corriqueiras da existência, o super ego consegue manter sob controle os impulsos do id, tendo o ego como mediador. O inconsciente se revela em atos falhos, na produção onírica, intelectual ou artística do sujeito, mas a vida segue seu fluxo e é de bom tom não perceber ou ignorar certas coisas, nos ambientes formais. As frustrações podem ser camufladas por meio de representações e mecanismos de defesa, como a negação ou a racionalização. Mas quando a frustração é muito grande, como nessa situação-limite, os desejos já não conseguem realização nem parcial ou por meio da fantasia, embora os sonhos persistam na febre dos enfermos.
O ANJO EXTERMINADOR (El Ángel Exterminador). México, 1962. Direção: Luís Buñuel. Com Silvia Pinal, Enrique Rabal, Jacqueline Andere, José Baviera, Luís Beristain. 95 min.
Um sofisticado jantar da alta burguesia num suntuoso casarão é o ponto de partida de que o cineasta Luis Buñuel se utiliza para nos revelar o lado sórdido desse mesmo encontro. Sórdido porque, para além das convenções sociais, está uma classe social escorada no seu narcisismo, no seu ócio e no seu luxo, insensível ao outro e ao mundo que a cerca.
O filme, brilhantemente, encurrala as pessoas num salão no interior do casarão, de onde não podem sair por uma barreira invisível, já que tudo está escancarado, e são obrigadas a conviver numa situação-limite, em que a falta é a regra.
Estranhezas são mostradas já na fase anterior ao convívio forçado que será o centro da narrativa. Uma gentil saudação é tentada por um dos convivas por duas vezes e ninguém lhe dá atenção. Trata-se de alguém que não deveria estar nesse lugar ou merecer a atenção dos demais, como se verá depois, ou, ainda, que as pessoas estão muito ocupadas consigo mesmas, com a comida e as conversas para se preocupar em cumprir os rituais dessas ocasiões.
Uma das convidadas é paciente do médico, outro dos convidados, e o chama para dançar. Em seguida, lhe dá um beijo inesperado. Ele pergunta se é transferência, referindo-se ao mecanismo de identificação que o paciente costuma ter com o seu médico. Ela acaba confirmando a idéia, pois diz que faz tempo que queria satisfazer esse desejo. Efetivamente, os desejos são contidos por papéis sociais ou por relações socialmente estabelecidas, como a que envolve médico e paciente. O mecanismo dessa transferência, analisado por Freud, serve ao próprio terapeuta para que ele possa lidar com essas emoções que o paciente lhe dirige, que estão deslocadas e não são, efetivamente, dirigidas à pessoa do terapeuta (ou do médico, no caso). A compreensão e o equilíbrio desse médico servirão de contraponto ao descontrole que tomará conta do grupo de pessoas envolvido naquele jantar, logo a seguir.
Detalhes exóticos também aparecem: pés de galinha e penas vistos numa bolsa farão parte de um ritual esotérico que tentará resolver sem sucesso a situação, mais tarde. O apelo ao pensamento mágico é revelador tanto de insegurança quanto de imaturidade, já que remete a estruturas de funcionamento primitivas.
As pessoas se sentem cansadas, têm compromissos no dia seguinte, querem partir, uma delas com urgência, mas, estranhamente, vão ficando. Desfazem-se das gravatas e de outros incômodos dos trajes sociais, vão se pondo à vontade, deitam-se nos sofás. Um homem passa mal e mesmo assim ninguém sai. E já que ninguém consegue sair, todos terão de dormir ali, no chão, em cadeiras ou sofás disponíveis. Improvisa-se um café da manhã. Alguns ficam perplexos: “Todos quiseram ficar”. “Não acho isso natural”. Com efeito, é a quebra absoluta das regras dos contatos sociais. Só imaginável numa proposta surrealista como a do filme, que se utiliza dela para revelar o que está por trás da “farsa” social dos poderosos.
Acaba a comida, a água, não há banho para tomar, roupa para trocar ou remédio para os enfermos, embora haja o médico entre os presentes. O ambiente se deteriora, o homem que passava mal acaba morrendo e tem de ser guardado num armário, que será vedado para minimizar o cheiro.
Ninguém pode ouvi-los ou socorrê-los, porque também não é possível entrar. Nem mesmo as crianças conseguirão. Mas por ali circulam carneiros e um urso, os animais estão à solta, representando o livre curso dos instintos, enquanto os impulsos estão represados pelo comportamento civilizatório dos humanos. Isso enquanto as carências aguentarem, porque, conforme diz um provérbio mexicano, “depois de 24 horas, cadáveres e convidados começam a feder”.
As convenções sociais, inclusive a etiqueta, têm a função de manter convenientemente as aparências, evitando o desconforto da expressão de emoções, como a raiva, o ciúme, a inveja. Pode até haver ironia ou sarcasmo, mas a agressividade costuma ficar contida, as brigas, evitadas, os interesses mútuos, preservados. O ódio se traveste de amor, o outro lado da sua moeda. A cordialidade e os elogios fazem parte da máscara e da imagem que pretendemos ter sob controle, na relação com os demais. As situações de encontro social, como bem o sabia Buñuel, são aquelas que mais se prestam a uma teatralidade fingida, a um jogo de cena, que chega a ter requintes de crueldade, mesmo nas situações que estão sob o controle das regras civilizatórias de conduta. Que dirá na situação-limite proposta por O Anjo Exterminador?
Os anfitriões, que devem ser sempre educados e gentis, se tornam escancaradamente grosseiros. A infidelidade que se escondia num “segredo”, que mais valia a pena fingir ignorar, chega ao limite da briga, da agressão física e verbal e do desejo de matar, além da atribuição de culpa pelo sucedido ao “responsável” pela situação. Irracionalidade pura, como assegura o médico, aquele que procura manter sua dignidade até o fim.
Trata-se de irracionalidade, sim, pois aqui estamos no terreno do inconsciente, dos impulsos e pulsões que escapam ao controle. Nas situações corriqueiras da existência, o super ego consegue manter sob controle os impulsos do id, tendo o ego como mediador. O inconsciente se revela em atos falhos, na produção onírica, intelectual ou artística do sujeito, mas a vida segue seu fluxo e é de bom tom não perceber ou ignorar certas coisas, nos ambientes formais. As frustrações podem ser camufladas por meio de representações e mecanismos de defesa, como a negação ou a racionalização. Mas quando a frustração é muito grande, como nessa situação-limite, os desejos já não conseguem realização nem parcial ou por meio da fantasia, embora os sonhos persistam na febre dos enfermos.
A sede leva não só a arrebentar o encanamento da sala como à disputa selvagem pela água, desrespeitando as mais elementares regras de convívio, segundo as quais, por exemplo, deve-se dar prioridade às mulheres e aos doentes. Se alguém ainda se lembra disso, é quase por milagre, já que aqui a mera sobrevivência se faz de forma instintiva, sem consideração para com a alteridade. Gestos heróicos e magnânimos em situações-limite são objeto de outro tipo de cinema, hegemônico e comercial, não da obra crítica e demolidora do mestre Buñuel.
Desejos sexuais e amorosos, fortes e intensos, podem buscar satisfação. Num salão cheio de armários sobra um para os amantes se esconderem da horda grupal, mas a consequência será a morte por falta de ar. O desejo não consegue se sobrepor à morte, é subjugado por ela, nesse caso. Também porque não pode haver saídas individuais em momentos de descontrole coletivo ou politicamente obscuros. A referência ao período da ditadura sanguinária de Francisco Franco, na Espanha, e ao papel repressor da igreja é muito evidente nas cenas da polícia baleando o povo na rua, os carneiros entrando na igreja, onde a mesma barreira invisível prenderá padre, auxiliares e fiéis, tal como ocorrera no salão burguês.
As pessoas simples, os serviçais da casa, escapam dessa opressão. Intuem que algo vai acontecer e saem da casa antes que os fatos se dêem, mesmo sem saber por que e com a consciência de que estão fazendo algo errado, ao deixar o mordomo sozinho numa noite de jantar para 20 pessoas. O mordomo é o único que fica, pois está mais identificado com o mundo burguês, comunga dos mesmos valores. Ele ainda consegue manter um comportamento algo controlado e continua a serviço dos demais, de alguma forma. Até quando come papel e oferece a uma convidada, mantém a postura. Os demais serviçais estarão de volta, também intempestivamente, no momento em que a situação estiver a ponto de se resolver dentro da casa, tempos depois. O tempo corrói a experiência do convívio forçado até níveis degradantes antes que esse momento aconteça.
Hostilidades, desprezo, cinismo, grosseria, violência e sujeira fazem parte da experiência dos convidados ao banquete e de seus anfitriões. Como que a revelar as fragilidades humanas, impulsos destrutivos podem apossar-se das pessoas em situações-limite. Isso, enquanto generalização, porque Buñuel situa os fatos historicamente, embora sem precisá-los, e dentro de uma classe social determinada. Ainda assim é possível pensar numa dinâmica humana mais geral, uma essência vulnerável do ser que, de alguma forma, está sempre presente pelo menos em potencial.
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