quarta-feira, 30 de março de 2022

HISTÓRIA DO OLHAR E DO CINEMA

 Antonio Carlos Egypto


O festival de documentários É TUDO VERDADE 2022 apresenta em suas sessões de abertura, tanto em São Paulo quanto no Rio, duas atrações muito boas, em 31 de março e 1o. de abril, respectivamente, ambas direções de Mark Cousins.





A HISTÓRIA DO OLHAR (The Story of Looking), Reino Unido, 2021.  Direção: Mark Cousins.  90 min.

Partindo do princípio de que, quando algo pode faltar, nos apegamos mais àquilo, damos mais valor, focalizamos mais ardente e insistentemente a questão, fica fácil entender que uma história do olhar se revele às vésperas de uma cirurgia oftalmológica de catarata.  Ainda mais se uma maculopatia está a ela associada.

É quando a beleza do que já se viu, em qualquer canto e lugar, na natureza, na cidade onde se vive, assume uma importância capital.  Mesmo que essa perda esteja muito mais no medo, na imaginação, do que em qualquer outro lugar.

Mark Cousins faz uma exploração visual do olhar que vai nos envolvendo, nos convencendo do que o olhar pode nos dar, dependendo do momento, do ângulo, do impulso, do sentimento, da luz.  Também da nossa capacidade de ver e intuir, do bebê ao adolescente e ao adulto já vivido, individual e coletivamente.  É uma riqueza sem fim.

No entanto, contrariando tudo isso, o filme começa com uma fala de Ray Charles, grande cantor e músico cego, de que se lhe oferecessem naquele momento que ele passaria a enxergar, ver tudo, ele provavelmente não toparia, já que o mundo tem tanto mal, tanta feiura, mazelas e guerras, que é melhor não poder  ver.  E quem tem que ver sofre por isso.  No entanto, acrescenta que, se lhe fosse dado ver só uma vez, aí sim aceitaria, pois poderia ver as pessoas e as coisas de que gosta.  E uma vez bastaria.  (A ideia foi essa, as palavras são minhas).  Temos, assim, um confronto de visões, além da celebração do olhar.

O documentário também nos coloca uma outra situação: enquanto filosofa sobre o olhar e a vida, Mark, o personagem que nos fala, para a câmera, tem preguiça de sair da cama e enfrentar o dia que antecede a sua cirurgia.  A inércia como defesa, valendo-se da memória visual para caminhar por Edimburgo e alcançar a beleza já registrada ao longo da vida.  O medo que pode nos paralisar em algumas situações de nossa existência.  Mas se resultou num filme como esse terá valido a pena.





A HISTÓRIA DO CINEMA: UMA NOVA GERAÇÃO (The Story of Film: A New Generation).  Reino Unido, 2021.  Direção: Mark Cousins.  160 min.

Mark Cousins, diretor e escritor da Irlanda do Norte, nascido em Belfast, morando em Edimburgo, na Escócia, é famoso por ter realizado em 2011 um documentário de 15 horas de duração, "The Story of Film: An Odyssey".  No É TUDO VERDADE 2022 ele está bem mais modesto em relação ao tempo: em 2 horas e 40 minutos ele encara a história do cinema no século XXI, valendo-se dos filmes que são cinematograficamente relevantes, por meio de cenas e sequências marcantes, por vezes relacionando-as às suas inspirações clássicas.

Em pouco mais de 20 anos do século XXI, muito já foi feito em todos os sentidos da criação artística no cinema, na renovação da linguagem, na temática contemporânea que se impõe, no registro das imagens amplamente democratizado, na tecnologia que transforma o modo de ver e fazer cinema.

O registro dessa evolução é mostrado nos diferentes gêneros cinematográficos e essa história já é robusta.  Quanto à tecnologia, então, as mudanças são tão intensas e profundas que o cinema adquiriu novas formas e apelos.  O cinema entrou nas nossas casas, nas nossas vidas, de todas as formas possíveis.  E nós viramos produtores de imagens, estamos imersos nelas.

Ao pesquisar o cinema da atualidade, esmiuçando suas características e desafios, o documentarista problematiza o presente e o futuro, com esperança e otimismo.  E, claro, com muito amor ao cinema como expressão artística.



sexta-feira, 25 de março de 2022

É TUDO VERDADE 2022

 Antonio Carlos Egypto






O Festival Internacional de Documentários É TUDO VERDADE chega a sua 27a. edição.  Um dos mais importantes eventos cinematográficos de São Paulo e do Rio de Janeiro, alcança abrangência nacional, já que ocorre de forma híbrida: presencialmente e on line,, de 31 de março a 10 de abril de 2022.

O diretor fundador do Festival, Amir Labaki, apresentou por meio de uma live a programação do evento, que exibirá 77 filmes, entre longas, médias e curtas metragens de 34 países, além de debates, conferências, master class e outras atividades.  Os filmes vencedores dos prêmios do júri nas competições brasileiras e internacionais são automaticamente classificados para apreciação à disputa do Oscar da categoria, no ano que  vem, como ocorre todos os anos.

O retorno às salas de cinema se dará respeitando todos os protocolos sanitários, como comprovante vacinal, uso de máscaras e lotação limitada.  

Composto por várias mostras, como as competições de longas e curtas nacionais e internacionais, clássicos, retrospectivas de Ana Carolina e Ugo Giorgetti, sessões especiais, o estado das coisas, foco latino-americano.  Tem de tudo para atender às demandas mais diversas e tudo gratuitamente.

Pode-se esperar uma reflexão sobre o conturbado mundo contemporâneo, seus conflitos e necessidades prementes, aspectos comportamentais e culturais das mais diversas realidades, além de revisões de eventos históricos que nos ajudem a entender o que move o mundo na atualidade.  Nas próximas postagens, comentarei alguns filmes do Festival a que já tiver assistido.

Salas de Cinema em São Paulo:

Spcine - Centro Cultural São Paulo, Espaço Itaú de Cinema Augusta, IMS Paulista, Sesc 24 de maio.

Rio de Janeiro:

IMS Rio, Espaço Itaú de Cinema Botafogo.

Plataformas on line:

1. É Tudo Verdade Play -- www.etudoverdadeplay.com.br

2. Sesc Digital -- https://sesc.digital/etudoverdade

3. Itaú Cultural -- www.itauculturalplay.com.br/

E, para conferências, palestras e master class

www.itaucultural.org.br 

www.youtube.com/Sesc24deMaiovideos

www.youtube.com/c/Spcine

www.youtube.com/user.festivaletudoverdade.



terça-feira, 15 de março de 2022

DRIVE MY CAR

Antonio Carlos Egypto

 

 



DRIVE MY CAR (Doraibu mai ka).  Japão, 2022.  Direção: Ryusuke Hamaguchi.  Elenco: Hidetoshi Nishijima, Reika Kirishima, Toko Miura, Sonia Yuan, Masaki Okada.  177 min.

 

Em “Drive My Car”, conforme o título inglês já sugere, o carro tem um papel muito relevante.  Trata-se de um luxuoso Saab 900 vermelho, que o ator e diretor teatral Yusuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) dirige com prazer em longos percursos, enquanto ouve, memoriza e contracena com as falas de espetáculos teatrais, gravadas por sua mulher Oto (Reika Kirishima), roteirista, em especial, “Tio Vânia”, do escritor russo Anton Tchekhov (1860-1904).

 

Dois anos depois de uma tragédia pessoal com Oto, que abalou Kafuku, ele assume dirigir uma encenação em Hiroshima, que apresenta uma exigência que o surpreende.  Ele tem de aceitar que uma motorista dirija seu carro nos deslocamentos, durante esse trabalho, que durará meses.  Aí entra em cena Misaki (Toko Miura), com quem Kafuku desenvolverá uma relação, que mexerá com o passado e o presente de ambos.

 

“Drive My Car” é um drama psicológico denso e profundo, em que os diálogos e a montagem de “Tio Vânia” interagem o tempo todo com os personagens, desafiando-os a encarar tabus, negações, medos, vergonhas, que possibilitarão ou não que suas vidas lhes tragam momentos de felicidade e que a existência tenha valido a pena ser vivida.

 

É um filme longo, tem três horas de duração, o que nos permite refletir sobre a vida, como lidamos com as diversas situações que se nos apresentam e sobre as ilusões e as barreiras que nós mesmos criamos para impedir nossa felicidade.

 

Ao enfrentar a complexidade das reações e sentimentos, a narrativa de Ryusuke Hamaguchi, adaptando um conto de Harumki Murakami, abrange dimensões amplas dos comportamentos humanos.


 



Por sinal, tanto o Bafta britânico quanto o Oscar estadunidense indicaram o filme de Hamaguchi para prêmios de roteiro adaptado.  Ambos os prêmios também o indicaram como melhor diretor.  E “Drive My Car” como melhor filme internacional.  No caso do Oscar, ele também está indicado como melhor filme.  Ou seja, um reconhecimento e tanto para essa produção japonesa, que, de fato, alcança um nível de qualidade altíssimo.

 

O diretor Ryusuke Hamaguchi já se destaca hoje como um grande cineasta.  Aos 43 anos de idade, já nos deu filmes extraordinários, como “A Roda do Destino”, de 2021, que esteve em cartaz recentemente nos nossos cinemas, e “Asako I & II”, de 2018.  Ambos causaram ótima impressão na crítica, combinando simplicidade e eficiência narrativa com atuações admiráveis dos elencos. 

 

Em “Drive My Car”, não é diferente.  Mas aqui ele desenrolou e recheou a história, estendendo o tempo.  Mostrou que é capaz de explorar tanto a síntese narrativa, nos filmes anteriores, como a evolução lenta e cuidadosa dos personagens, em “Drive My Car”.



sábado, 12 de março de 2022

BELFAST

Antonio Carlos Egypto

 



 

BELFAST (Belfast). Reino Unido, 2021.  Direção: Kenneth Branagh.  Elenco: Caltríona Balfe, Jaime Dornan, Judi Dench, Clarán Hinds e o menino Jude Hill.  98 min.

 

 O consagrado ator e diretor “shakespereano” Kenneth Branagh é irlandês, natural de Belfast, que dá nome ao filme que ele dirigiu, baseado em suas vivências infantis, no período imediatamente anterior à mudança de sua família para Londres. Essa mudança se dá por dois fatores: uma oferta de emprego convidativa para uma família endividada e a deterioração das relações na comunidade em que viviam, após a eclosão de conflitos violentos entre protestantes e católicos.

 

O que se verá em “Belfast” é a visão e as experiências do menino, aos 9 anos de idade, tão perplexo como nós, os espectadores, distantes daqueles acontecimentos de 1969, tanto no tempo quanto geograficamente.  Sempre foi, e será, difícil de explicar essa guerra religiosa de intolerância e violência física em pleno século XX em países desenvolvidos, que viveram os horrores das guerras mundiais tão de perto, ou de dentro.  De qualquer modo, não será a abordagem de Kenneth Branagh em “Belfast” que irá nos esclarecer de algo.

 

O filme começa com visões panorâmicas, do alto, de 360 graus, da cidade de Belfast, a capital da Irlanda do Norte, com suas cores, sua beleza, sua pujança.  Passa para uma quase idílica quadra, em que todos andam livres e alegremente pelas ruas, especialmente as crianças.  Aí a nostalgia domina o filme, que se transforma em preto e branco para melhor refletir isso.  Todos convivem em harmonia com as diferenças.  A região é predominantemente protestante, mas comporta uma minoria católica, e isso não é um problema.  É o que se depreende do que as imagens mostram e de como o menino vive lá.

 



Até que, sem nenhum motivo aparente, explode uma guerra no quarteirão.  Bombas, explosões, brigas, quebra-quebra, saque a supermercado, perseguições, atuação policial.  Muita violência. Uma sequência interessante é a que faz a passagem de uma situação a outra.  O escudo que seria para o menino brigar com dragões imaginários serve de defesa para ele e para sua mãe diante das agressões concretas e palpáveis que estavam acontecendo.  Enfim, o mundo do garoto desmoronou.  No entanto, ele seguirá feliz em seu ambiente familiar, com os pais, o irmão mais velho, os avós e a comunidade que o conhece e interage com ele.

 

O confronto entre o mundo idealizado do garoto e as novas dimensões do conflito, inevitavelmente, vão modificar esse microcosmo irlandês.  Com afeto, bom humor e pitadas de amor ao cinema, Kenneth Branagh mergulha nesse drama com leveza e, claro, valoriza o respeito e o convívio entre as pessoas e suas diferenças religiosas.

 

É um filme bonito, fácil de ver, que recebeu 7 indicações ao Oscar: filme, diretor, atriz e ator coadjuvantes, roteiro original, som e canção original (Down to Joy), mas pouco ou nada nos acrescenta na compreensão do fenômeno político que ele aborda.

 

O elenco está muito bem e o menino, que é o protagonista do filme, Jude Hill, aos 10 anos de idade, é simpático, vigoroso, expressivo.  Ajuda a tornar “Belfast” um produto atraente e comunicativo,