segunda-feira, 27 de junho de 2016

BIG JATO

Antonio Carlos Egypto





BIG JATO. Brasil, 2015.  Direção: Cláudio de Assis.  Com Matheus Nachtergaele, Marcélia Cartaxo, Rafael Nicácio, Jards Macalé.  92 min.



É possível fazer poesia da merda?  As palavras do romance de Xico Sá, com roteiro de Anna Carolina Francisco e Hilton Lacerda, os planos do cineasta Cláudio de Assis, aliada à fotografia de Marcelo Durst, conseguem essa proeza.

“Big Jato”, o filme de Cláudio de Assis baseado no livro de Xico Sá, põe em evidência um limpa-fossas de uma cidade sem saneamento básico, que é o ganha-pão de Francisco (Matheus Nachtergaele), um homem rude, austero, trabalhador, que literalmente vive da merda dos outros.  Xico (Rafael Nicácio), um garoto vivendo a adolescência, acompanha o pai Francisco no caminhão limpa-fossa e se sente identificado com aquele mundo.




Também se sente atraído pelo mundo um tanto delirante do tio Nelson, artista, libertário, anarquista, que evita o trabalho pesado e se dedica a um programa musical em rádio local, papel também de Matheus Nachtergaele.  Seu irmão Francisco considera que ficar numa salinha com ar condicionado não é trabalhar.

A poesia é a verdadeira vocação de Xico, como se pode ver na relação que ele mantém com o Príncipe, papel de Jards Macalé.  O tio Nelson é capaz de ver isso, ajudar e estimular Xico a sair daquele fim de mundo, onde ele próprio se afundou.  Ou se fossilizou, como os peixes que teriam dado origem à cidade, que um dia foi mar.

Se Xico Sá criou um romance de caráter autobiográfico, dando margem a uma ficção maluca, como ele mesmo diz, Cláudio de Assis ampliou o delírio.  O Cariri cearense da década de 1970 virou a cidade fictícia de Peixe de Pedra dos dias atuais, o que permitiu ao diretor criar imagens fantasiosas e etéreas lado a lado com o ambiente hiperrealista do povoado, sua gente, sua labuta.  Coisas que se petrificam, se fossilizam, sonhos delirantes com mulheres exuberantes, fantasiosos  inspiradores dos Beatles e coisas quetais convivem em harmonia com estradas de terra, buracos, sujeira, pobreza e demais carências.  Um amálgama bastante interessante e poético.  A locação na Chapada do Araripe, entre os Estados de Ceará e Pernambuco, traz beleza e poesia adicionais à trama.




As histórias de Xico Sá têm a ver com sua própria experiência, pelo menos como ponto de partida.  São datadas, naturalmente.  Trazê-las para o mundo atual gera alguns anacronismos.  Coisas ficam fora de lugar, apesar do esforço de adaptá-las, como o encanto da máquina portátil de escrever, que seria mais romântica do que o computador.  O smartphone da menina que veio da cidade grande não pega lá, se torna uma máquina fotográfica de luxo, que em nada combina com aquele ambiente.  Uma cidade sem saneamento, sem banheiros, infelizmente, é um anacronismo cruel que ainda faz parte da nossa realidade, a um só tempo de modernidade tecnológica e de atraso dos mais primitivos.  A mescla de elementos de diferentes tempos tem o sentido simbólico de revelar essa mistura estranha, que é um dos nossos espelhos.  Mas também produz um ruído na comunicação de ideias e imagens.




Matheus Nachtergaele, um dos maiores atores da atualidade, carrega o filme e esbanja talento no desempenho duplo, do pai e do tio de Xico, personalidades muito diversas e em conflito, vivendo realidades distintas e distantes, no mesmo espaço geográfico.  Marcélia Cartaxo faz a mãe de Xico, outro grande desempenho que fortalece o filme.  O jovem Rafael Nicácio faz bem o importante papel que lhe coube, mas tem uma dificuldade na dicção, que compromete a compreensão de diversas falas dele nas cenas.  O músico e compositor Jards Macalé faz um papel que lhe cabe como uma luva, pairando sobre a narrativa. “Big Jato” recebeu diversos prêmios no último Festival de Brasília, os de ator, atriz, roteiro adaptado e trilha sonora.


domingo, 26 de junho de 2016

VISITA OU MEMÓRIAS E CONFISSÕES


Antonio Carlos Egypto




VISITA OU MEMÓRIAS E CONFISSÕES.  Portugal, 1982.  Direção: Manoel de Oliveira. Documentário.  68 min.


Foi um verdadeiro presente o que nos deu a 39ª. Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, quando Renata de Almeida anunciou a exibição de um filme inédito do mestre português do cinema, Manoel de Oliveira. E que agora chega aos cinemas de um pequeno circuito de salas alternativas. Em São Paulo ao Cinesesc.

A história é a seguinte: em 1982, Manoel de Oliveira chegava aos 74 anos de idade e realizou um filme documental sobre uma casa em que ele morou por muitos anos, 40, creio, e sobre a sua própria vida e história.  Talvez imaginando que já era mesmo hora de fazer isso.  Mas deixou o filme guardado na Cinemateca portuguesa, para só ser exibido após a sua morte.  E assim se fez.

Ocorre que ele só veio a falecer em 2015, aos 106 anos de idade, e trabalhou até o fim da vida mesmo.  Seu último trabalho, “O Velho do Restelo”, é um curta-metragem realizado em 2014.  Seu último grande filme, o brilhante longa “O Gebo e a Sombra”, em 2012.  Ou seja, o filme póstumo do diretor, “Visita ou Memórias e Confissões”, ficou guardado por inacreditáveis 33 anos.  E, se ele já havia feito muita coisa até então, a verdade é que a maior parte da sua grande obra é posterior ao filme.  Foi quando ele trabalhou mais, melhor, mais intensamente, e nos legou filmes inesquecíveis.




É preciso ver “Visita ou Memórias e Confissões” sabendo dessas coisas, para se perceber a importância que ele tem como registro de um trabalho in progress, poderíamos dizer, em relação ao conjunto da obra.

Na abertura do filme, Manoel de Oliveira põe a informação de que fez esse trabalho falando de si mesmo e não sabe se deveria tê-lo feito.  Mas, enfim, está feito.  Que bom, Manoel!  Assim pudemos ter registrada a sua fala sobre aspectos importantes da sua vida pessoal, familiar, problemas econômicos que o levaram a vender a casa tão amada, que expõe lindamente no filme, a sua prisão no tempo de Salazar, suas ideias sobre arte, arquitetura e, especialmente, cinema.  Imagens de filmagens familiares são mostradas, em paralelo à linda casa esquadrinhada e objeto de interessantes reflexões.




A origem do cineasta na cidade do Porto, vindo de uma família de industriais, indicava caminhos diversos do que trilhou no cinema.  As dificuldades da expressão artística no longo período ditatorial do regime salazarista foram grande empecilho.  Ele chegou a ser atleta, piloto de corridas e vinicultor, mas era o cinema o que ele tinha na veia.  E foi tardiamente que conseguiu dar vazão completa a seu espírito criativo e inovador.

O filme autobiográfico de Manoel de Oliveira é simples e admirável, um documento inestimável sobre um dos grandes cineastas que o cinema já teve.  Merece não só ser exibido comercialmente, como integrar uma caixa de DVD ou BluRays com os principais filmes do mestre, coisa que está faltando no mercado brasileiro.  Vários deles foram lançados em DVD, outros, exibidos na TV paga, no canal Brasil, mas para uma obra tão vasta e longeva são apenas pílulas.




quinta-feira, 23 de junho de 2016

AS MONTANHAS SE SEPARAM


Antonio Carlos Egypto




AS MONTANHAS SE SEPARAM (Shan He Gu Ren).  China, 2015.  Direção e roteiro: Jia Zhang-Ke.  Com Zhao Tao, Sylvia Chang, Zhang Yi, Jing Dong Liang, Ahn Sanming.  131 min.



Em “As Montanhas Se Separam“, tudo começa com um triângulo amoroso.  A professora Tao (Zhao Tao, esposa do diretor), tem como pretendentes dois amigos de infância: Zhang (Zhang Yi), dono de um posto de gasolina, e Liangzi (Jing Dong Liang) que trabalha numa mina de carvão.  Zhang, com espírito empreendedor capitalista, vai se tornar dono da mina em que Liangzi trabalha e, assim, o confronto amoroso se espelha e se reflete no confronto da China moderna, entre trabalho e capital, que põe em xeque a própria identidade do país.  E deixa ao desamparo os trabalhadores.

Estamos em 1999, sob uma China em mutação, em que o dinheiro ocupa lugar de destaque.  A escolha do mais abonado para casar parece óbvia e natural, mas é uma opção que traz muitas consequências e deixa inevitáveis sequelas.  Casamento, filho que nasce e concepções de mundo que se chocam. 




Coisas que poderiam ser triviais na vida de um casal, mas que acabam por produzir separações e distâncias tão grandes que nem o filho em comum pode aproximar.  As montanhas se separam, as distâncias se alargam.  A meca encontrada pode estar bem longe para um, a Austrália, ou bem aqui mesmo, para outra, o que resta da China transformada, em 2014.

Uma séria questão de identidade vai permear a vida desse menino que, de Zhang Daole, seu nome original, passará a ser conhecido como Dollar, onde vive, na Austrália.  O dinheiro se intromete de forma decisiva na sua própria existência, na forma como se reconhece. 




O que estará acontecendo com essas pessoas, em 2025?  Que será da China, então?   Os chineses que crescerem fora do país sequer terão conhecimento de seu próprio idioma.  Como sobreviverão aqueles trabalhadores representados por Liangzi? 

Jia Zhang-Ke fala de amores, distâncias, esperanças, rompimentos na vida pessoal, para falar da identidade chinesa, preocupado não apenas com as tradições culturais, mas principalmente com a vida do povo mais simples, menos preparado para sofrer as consequências da globalização e dos novos rumos que o país persegue há algum tempo e que, pelo jeito, só se acentuarão nos próximos anos.




Para isso, o diretor vai às suas origens, à região onde nasceu e se desenvolveu, à sua Fenyang, mostrada por Walter Salles no documentário que dedicou ao cineasta chinês.  “As Montanhas Se Separam” é um filme coerente com a obra anterior de Jia Zhang-Ke, que vê os dramas pessoais ecoando na coletividade e as questões sociais penetrando no âmago da vida dos seus personagens.  A História é referência permanente de um mundo que vive em transformação.  De forma vertiginosa, no caso chinês.


sábado, 18 de junho de 2016

O QUE HÁ PARA VER NOS CINEMAS


Antonio Carlos Egypto


Os dias têm estado frios, o que pode desestimular uma ida ao cinema.  Com efeito, as bilheterias caem na mesma proporção em que a temperatura baixa.  Mas não será por falta de opção.  Em São Paulo, há várias mostras em cartaz, bons filmes já comentados aqui no cinema com recheio e salas confortáveis em muitos lugares.  Vamos dar uma passada rápida em algumas dessas opções.

Festival Varilux de Cinema Francês 2016
Em exibição até 22 de junho, no Cinearte, no Cinesala, Itaú Augusta, Frei Caneca e Pompeia, Kinoplex Itaim, CEU Tiradentes, Cinemark Villa Lobos e Caixa Belas Artes. 
São pre-estreias do cinema francês contemporâneo, além de algumas mostras específicas e debates com a participação de diretores, atores e atrizes dos filmes apresentados.
“Lolo, o Filho da Minha Namorada”, “Chocolate, Um Amor à Altura”, “Marguerite” e “Flórida” foram objeto de crítica no cinema com recheio, neste mês de junho.  Confira.



5ª. Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental
Até 29 de junho, no Reserva Cultural, Belas Artes, Cinemateca Brasileira, Centro Cultural São Paulo, cine Olido, Biblioteca Mário de Andrade e no recém-lançado Circuito SpCine, que atinge muitos pontos periféricos da cidade, por meio de CEUs e Fábricas de Cultura.
São cerca de 100 filmes de mais de 20 países, todos tratando das questões ambientais, ecologia e condições de existência no planeta terra, incluindo alguns filmes históricos, que já vinham abordando a temática várias décadas atrás.

6º. Panorama de Cinema Suíço
Até o dia 22 de junho, o Cinesesc traz, como ocorre anualmente, uma programação do cinema suíço atual, com filmes de 2014, 2015 e 2016, também com a participação de realizadores.  O Centro Cultural do Banco do Brasil SP segue até dia 26 e o do Rio de Janeiro, até o dia 27.

Entretodos Festival de Curtas de Direitos Humanos – 9ª. edição
Até o dia 22, o Circuito SpCine também promove a exibição de 25 curtas, 19 nacionais e 6 internacionais, que tratam das questões de direitos humanos, de gênero, da condição feminina e do combate à violência.  Há uma mostra infanto-juvenil, que inclui questões como racismo, bullying e empoderamento feminino.


Filme Lituano

Filme da Lituânia
Ainda dá tempo de ver “Paz Para Nós em Nossos Sonhos”, filme lituano de Shanuras Bartas, que faz um interessante trabalho envolvendo desencantos, frustrações, rotinas extenuantes, brigas familiares insuportáveis, fome e transgressões, em relacionamentos amorosos que se desintegram.  A fotografia pálida, em cores, dá a dimensão do drama existencial dos personagens.
Também está em cartaz, com crítica postada aqui, “Na Ventania”, da Estônia, que é uma obra de arte.  Bons exemplos da diversidade cultural que, felizmente, estão chegando até nós.


Trago Comigo


TRAGO COMIGO, filme nacional
E, para concluir, vale a pena ver “Trago Comigo”, de Tata Amaral.  Por meio do personagem Telmo (Carlos Alberto Riccelli, em grande desempenho), um ex-diretor de teatro, que se afastou desse trabalho para exercer funções burocráticas, volta à cena e tem de encarar uma parte importante, esquecida, negada, que foi o período em que atuou na luta armada contra a ditadura militar.  O drama do personagem, incluindo o confronto com os atores que representam as novas gerações incapazes de captar aquele grave momento da vida nacional, é o drama do país, que ainda não encarou e enfrentou plenamente um passado cheio de consequências que continuam nos assombrando.



sexta-feira, 17 de junho de 2016

Flórida

Tatiana Babadobulos





Flórida (Floride) França, 2015. Direção: Philippe Le Guay. Com: Jean Rochefort, Sandrine Kiberlain e Laurent Lucas. 110 min.

O longa-metragem “Flórida” (“Floride”), de Philippe Le Guay (“Pedalando com Molière”), fala sobre o envelhecer e os percalços que a vida vai trazendo à medida que os anos vão avançando.

O tema foi abordado recentemente em “Amor”, de Michael Haneke. O filme de Le Guay, é verdade, é menos denso e tenso que o de Haneke. Mas não menos triste quando cada um se coloca em perspectiva, seja no lugar de um ou de outro personagem.


Na trama, Claude Lherminier (Jean Rochefort), aos 80 anos, tenta manter a pose de galanteador, embora seus esquecimentos o peguem de assalto. Pobre da filha, Carole (Sandrine Kiberlain), que precisa se desdobrar para assistir o pai, garantir uma cuidadora que consiga dobrar as exigências dele e ainda dar conta de sua própria vida, com marido e filho.

As imagens misturam o presente e o passado em um vaivém constante. No início, vemos Claude dentro do avião em direção à Miami, na Flórida (EUA), para onde segue sozinho para visitar a filha mais nova.

Essa viagem, aliás, vai durar o filme todo, pois o trajeto é intercalado por outros acontecimentos que vão prendendo o espectador até chegar à conclusão do que se trata a viagem e as idas e vindas no tempo.

O ator francês Jean Rochefort não é conhecido do público brasileiro, mas ele já recebeu diversos prêmios César, por exemplo. Sua interpretação é singular. Consegue transitar entre o imponente ex-empresário/galanteador ao mesmo tempo em que sofre de esquecimentos repentinos, principalmente por se recusar a acreditar em uma verdade. Na sua idade, é mais seguro acreditar naquilo que quer, afinal, quem vai contrariá-lo?

Sandrine Kiberlain, que interpreta a filha dele, é mais conhecida por aqui. As produções francesas que protagoniza costumam ser exibidas no país, como “Mademoiselle Chambon”, o infantil “O Pequeno Nicolau” e a comédia “Uma Juíza sem Juízo”.



Para se ter uma ideia, além de “Flórida”, ela protagoniza o longa “Um Doce Refúgio” (“Comme un Avion”), que também faz parte do mesmo Festival Varilux de Cinema Francês, que exibe filmes francófonos até o dia 22 de junho, em mais de 50 cidades brasileiras.
Le Guay, também autor do roteiro, usa o bom humor para tratar da velhice sem o peso negativo. Faz bem. Rir continua sendo, como diz o dito popular, “o melhor remédio”. Ainda que nem sempre seja o suficiente.

Depois do Festival, o longa de Le Guay estreia em 11 de agosto nos cinemas brasileiros. Não se assuste, porém, com o nome da obra. É que depois do Varilux, o mesmo filme terá outro nome em português. Ele vai se chamar “A Viagem de meu Pai”.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

NA VENTANIA

 Antonio Carlos Egypto




NA VENTANIA (Risttuules).  Estônia, 2014.  Direção e roteiro: Martti Helde.  Com Laura Peterson, Mirt Preegel, Tarmo Song, Ingrid Isotamm, Einar Hillep.  87 min.


Não é todo dia que se vê, no círculo comercial dos nossos cinemas, um filme da Estônia.  Aliás, nem sei se já houve outro... 

Em “Na Ventania”, é abordada uma história gravíssima, ocorrida durante a Segunda Guerra Mundial.  Em 14 de junho de 1941, Stalin deflagrou uma operação secreta de limpeza étnica dos povos nativos, nos países bálticos: Estônia, Letônia e Lituânia.




Famílias inteiras foram deportadas de seus territórios locais e enviadas a prisões, ou gulags, e campos de trabalho forçado, na Sibéria, separando homens e mulheres.  Uma dessas mulheres da Estônia, Erna Tamn, separada de seu marido, Heldur, escreve a ele cartas da Sibéria, em busca de reencontrá-lo algum dia, enquanto procurava sobreviver com apenas um pedaço de pão diário. São essas cartas, que conheceremos em off pela voz da atriz Laura Peterson, que servirão de narrativa ao filme, cobrindo um período de muitos anos, que passa pela morte de Stalin e chega às mudanças políticas que se sucederam.

O trabalho do diretor Martti Helde é bastante original, ao optar, na maior parte do tempo do longa, por compor tableaux vivants com os atores e atrizes.  A câmera se move, explora a cena, altera os enquadramentos, se aproxima com o zoom, mas os atores não se movem.  Somente um piscar de olhos ou a presença do vento se nota.  Em outros momentos, há movimentos, compondo uma atuação minimalista.  Não há diálogos, só os textos das cartas.  A exceção é uma notícia que se ouve por meio do rádio.




A fotografia, em preto e branco, é belíssima.  Os ambientes naturais, muito bem escolhidos, favorecendo a exploração da luz e dos espaços pela filmagem.  As encenações, com os atores e atrizes compostos como estátuas, são extremamente detalhadas, produzindo enquadramentos magníficos, que se transformam com o movimento da câmera, mantendo a condição de belos quadros o tempo todo.




Essa técnica acaba tendo o efeito de potencializar o sentido da opressão.  Não há o golpe, a agressão, o sangue não corre, mas o próprio fato de as figuras não se mexerem sugere, por si só, a impossibilidade de reagir ou resistir.  A tragédia surda dos sem vez ou voz soa mais intensa e forte.

O encontro humano depende da poesia, do vento oeste que se cruza com o vento leste e realiza, simbolicamente, o que foi negado às pessoas. 




quarta-feira, 15 de junho de 2016

FLORENCE/MARGUERITE


Antonio Carlos Egypto

FLORENCE: QUEM É ESSA MULHER? (Florence Foster Jenkins).  Inglaterra, 2015.  Direção: Stephen Frears.  Com Meryl Streep, Hugh Grant, Simon Helberg, Rebecca Ferguson, John Kavanagh.  110 min.

MARGUERITE (Marguerite).  França, 2015.  Direção e roteiro: Xavier Giannoli.  Com Catherine Frot, Andre Marcon, Michel Fau, Christa Théret, Sylvain Dieuaide.  120 min.


Florence Foster Jenkins (1868-1944), cantora estado-unidense, nascida na Pensilvânia, viúva rica dedicada às artes, financiando clubes e eventos musicais, promovia concertos de canto lírico, destinados a amigos e convidados.  Pretendia ser uma diva da ópera e seu dinheiro ajudava nessas pretensões, tanto que chegou a gravar dois discos.  Mas cantava aos gritos e desafinava loucamente.  O que não a impediu de se apresentar em público para grande plateia, no Carnegie Hall, em 1944, e ser vista por ninguém menos do que Cole Porter e Noel Coward.  Faleceu em Nova York, um mês depois dessa apresentação desastrosa, artisticamente falando.  Que, no entanto, foi um sucesso de público.

 É uma história fantástica, é forçoso reconhecer.  O curioso é que, nos próximos dias, estreiam nos cinemas brasileiros dois filmes baseados ou inspirados na mesma fonte: a da “Pior cantora de ópera do mundo” ou “A diva do grito”, como ela chegou a ser alcunhada.  Um deles é o filme inglês “Florence: Quem É Essa Mulher?”, de Stephen Frears e o outro é o francês “Marguerite”.  Ambos bons trabalhos, mas bem diferentes um do outro.


Florence

Em “Florence: Quem É Essa Mulher?”, Frears faz sua narrativa acompanhando de perto os fatos conhecidos a respeito da tal cantora, respeitando os locais e datas históricos e os personagens envolvidos.  Muito adequadamente, adota a linha da farsa, que me parece a mais apropriada para tratar desse caso estranho.  E o seu filme ganha força com os protagonistas escolhidos: Meryl Streep, no papel de Florence, e Hugh Grant, no papel do ator St. Clair Bayfield, marido de Florence.  Simon Helberg faz muito bem o pianista Cosme Mc Moon, que acompanhou a cantora em todas as apresentações, até o fim, sorrindo por dentro, mas embolsando salário polpudo para isso.


Florence

O filme de Stephen Frears é irônico, engraçado, produz estranheza ao explorar visualmente o universo cafona da diva e seu figurino extravagante, de supostas montagens operísticas.  Navega no surreal da situação, com boa caracterização de época e brilha ao trabalhar o que está por trás de toda a mentira, mantida e orquestrada por St. Clair, enquanto vivia suas aventuras fora do casamento.  Mas, mesmo assim, sendo fiel e dedicado a Florence todo o tempo.


Florence

Uma frase da personagem protagonista resume o espírito do filme de Frears: “Podem dizer que não sei cantar, mas não podem dizer que não cantei”.  Algo como “no peito dos desafinados também bate um coração”, da música de Tom Jobim e Newton Mendonça, eternizada na interpretação de João Gilberto (só que esse jamais desafinou).


Marguerite

O filme francês do diretor e roteirista Xavier Giannoli se baseia na mesma história, mas cria uma ficção com outros componentes e elementos, investindo tanto no dramático quanto no humorístico da situação.  Para começar, altera o nome da personagem para Marguerite Dumont, a transporta para a França dos anos 1920 e a coloca na Ópera de Paris, sendo vista por Charles Chaplin, que estaria por lá, na época.  O disco gravado recebe uma conotação completamente diferente e se dá crédito à ideia de que ela não percebia como soava sua voz. A caracterização de época é mais detalhada e convincente do que a do filme inglês.  As fotos onde se destacam os figurinos extravagantes das “óperas” são uma ótima solução visual para mostrar o engodo da história.


Marguerite

A atriz Catherine Frot está excelente na caracterização de Marguerite/Florence.  Já o papel do marido dela é fosco, não passa uma ideia clara da relação ambígua que devia se estabelecer entre eles.  A brincadeira com o carro que quebra e o coloca sempre de fora das situações é boa, mas o exclui da vida dela com mais frequência do que seria de se esperar.  A rejeição se destaca e põe em dúvida o amor dela por ele e o sentido de proteção que ali existia.  Colocar o mordomo como seu acompanhante ao piano também é uma solução frágil, que não se sustenta muito bem.  Nessa versão, é o mordomo que dá suporte a Marguerite, eclipsando o papel do marido.  Bem diferente da versão inglesa, que permite o destaque de Hugh Grant.  André Marcon, como o marido Georges, é uma figura, simbolicamente, bem menos importante nessa trama.


Marguerite

Na inevitável comparação entre os dois filmes, que estreiam praticamente juntos, fico com a farsa de Stephen Frears mais do que com o drama/comédia de Xavier Giannoli.  Ambos os trabalhos, porém, são boas realizações cinematográficas.

Veio à minha lembrança o lançamento, também simultâneo na época, em 1988, dos filmes “Cinema Paradiso”, de Giuseppe Tornatore, e “Splendor”, de Ettore Scola.  Dois belos filmes italianos, sobre a mesma história. Apesar de “Splendor” ter como protagonista o fabuloso ator Marcello Mastroianni e o grande diretor Scola, foi engolido pela emoção genuína de “Cinema Paradiso”, que permanece como um clássico.


            

terça-feira, 14 de junho de 2016

Um Amor à Altura


Tatiana Babadobulos




UM AMOR À ALTURA (Un Homme à la Hauter). França, 2016. Direção: Laurent Tirard. Com Jean Dujardin, Virginie Efira e Cédric Kahn. 98 min.


Há quem duvide que filme francês pode ser leve. Existe um estereótipo (errado) de que, se o filme é francês, é “cabeça”, “possui muitos diálogos”, “não tem final”.


Claro que estereótipos não aparecem à toa. Mas, sob essa perspectiva, está aí “Um Amor à Altura” (“Un Homme à la Hauter”) para desmentir qualquer padrão.

Escrito e dirigido por Laurent Tirard, o longa-metragem tem estreia prevista para o dia 4 de agosto nos cinemas brasileiros, mas já pode ser visto durante a edição de 2016 do Festival Varilux de Cinema Francês.

A comédia romântica é um remake do argentino “Coração de Leão – O Amor não tem Tamanho” (2013), de Marcos Carnevale. Como o longa sul-americano não foi exibido comercialmente na França, o diretor foi convidado pela produtora a assistir ao filme.

E, então, lhe foi lançado o desafio. “Tirar clichês melodramáticos sul-americanos e acrescentar um ‘caldo’ mais europeu”, conta Tirard, no material distribuído para a imprensa.



Na trama, Diane (a bela atriz belga Virginie Efira) é uma advogada recém-divorciada, que se dá bem com o ex-marido –ambos dividem o escritório de advocacia. Até que um dia recebe um telefone em casa. A ligação vem de alguém que encontrou o seu celular perdido em um restaurante e quer muito devolvê-lo pessoalmente.

Do outro lado da linha está Alexandre (Jean Dujardin). Arquiteto de sucesso, convenceu a moça a ir encontrá-lo durante um café, já que ela recusou o almoço e o jantar com um estranho.

Jean Dujardin ficou mundialmente conhecido por seu papel no filme “O Artista”. Por sua atuação e pela ousadia do longa silencioso, em preto e branco, em pleno século 21, o longa ganhou cinco Oscars.

Os cartazes de divulgação, o trailer e até mesmo o longa no qual fora inspirado entregam que o amor que vai surgir entre os dois não é comum. A moça vai ter de quebrar a barreira do preconceito para se entregar a um anão me mede menos de um metro e meio de altura. A questão do espectador, porém, é: Dujardin, o charmoso protagonista de “O Artista” não pode estar fazendo este papel, afinal, ele é alto.



Além de efeitos especiais pós-produção, foram utilizados recursos no set de filmagem, de forma mais artesanal. “Foram usados truques simples, como colocar Jean de joelhos e filmá-lo apenas dos ombros para cima ou forçar perspectivas colocando-o mais distante, de forma que ele parecesse menor”, explica o diretor no material de divulgação para a imprensa.

O romance dos dois tira proveito do bom humor, de um casal que ri de si mesmo, embora demore para chegar a esse ponto. De qualquer maneira, o espectador vai se divertir com os apelidos clichês que o rapaz vai receber e, embora possa parecer preconceituoso, é bastante espirituoso e carismático.

Um Homem à Altura” prova que o amor pode ser algo maior que o espelho pode dizer e que, pequeno mesmo, é o coração de quem não enxerga isso, tal como uma personagem nos abre os olhos.


segunda-feira, 13 de junho de 2016

Chocolate



Tatiana Babadobulos





CHOCOLATE (Chocolat). França, 2015.  Direção: Roschdy Zem.  Com Omar Sy, James Thiérrée.  110 min.


Foi a partir do lançamento de “Intocáveis” que o ator Omar Sy ficou conhecido fora da França. Aliás, não foi apenas depois da estreia do filme, mas, principalmente, após o sucesso naquele país e a repercussão que gerou curiosidade para conhecer a atuação dele na tela grande.

O longa-metragem, sobre o tetraplégico que precisa de um cuidador durante 24 horas, é de 2011, embora tenha estreado no Brasil apenas no ano seguinte. A pré-estreia, porém, foi durante o Festival Varilux de Cinema Francês de 2012.

A edição deste ano do mesmo festival traz aos cinéfilos um outro filme estrelado por Omar Sy. “Chocolate” (“Chocolat”) trata sobre o primeiro artista circense negro na França.

O longa é ambientado no final do século 19, no interior. Rafael Padilha (Sy) chegou ao país depois de ser vendido quando era criança. Nascido em Cuba, em 1868, ele consegue fugir e é encontrado por um palhaço.

Primeiro, ele faz participações nas apresentações do circo como um canibal. E não se importa do papel, pois, mesmo que seja preconceituoso, ele tem uma vida melhor do que a que tinha como escravo.

Mas, depois que conhece o palhaço Footit (James Thiérrée), sua vida começa a mudar. Compondo uma dupla, os palhaços se mudam para Paris e veem tanto o sucesso quanto o preconceito aumentarem.


Omar Sy dá vida ao personagem, mostra seu talento e como se movimenta no picadeiro e no teatro, quando vai interpretar um personagem de Shakespeare. Ainda que a veia cômica seja o seu forte, há cenas dramáticas no longa dirigido por Roschdy Zem que são bem interpretadas, sem ser caricatural.

Em outro filme, “Samba”, este de 2015, Sy vive um imigrante e traz o bom humor que conhecemos de modo simples.
Contar histórias do circo não é novidade, basta lembrar de Charles Chaplin. “O Circo”, por exemplo, é de 1928, quando o cinema ainda não tinha som. O brasileiro Selton Mello lançou, em 2011, “O Palhaço”, uma história sensível sobre o relacionamento do pai e do filho palhaços.

No México, a estrela do circo atendia pelo nome de Cantinflas, no final dos anos 1920. A homenagem sobre a sua história, “Cantinflas – A Magia da Comédia”, foi lançada nos cinemas em 2014. Isso só pra falar de três exemplos.

Chocolate” conta a história de Rafael, mas também toca na ferida do preconceito que existia no final do século 19. E, sem precisar se esforçar demais, é possível ver que muitos narizes torcidos permanecem até hoje.

Depois do Festival Varilux, o Chocolate” deve estrear nos cinemas dia 21 de julho.