quinta-feira, 10 de agosto de 2023

UMA NOITE EM HAIFA

Antonio Carlos Egypto

 

 



UMA NOITE EM HAIFA (Laila in Haifa).  Israel, 2020.  Direção: Amos Gitai.  Elenco: Maria Zreik, Khawia Ibraheem, Bahira Ablassi, Naama Preis, Hana Laslo, Tsahi Halevi.  100 min.

 

“Uma Noite em Haifa”, o mais recente trabalho do grande diretor israelense Amos Gitai, mergulha uma vez mais na questão dos relacionamentos entre israelenses e palestinos.  Desta vez, destacando as questões existenciais vividas pelos personagens, especialmente Laila (Maria Zreik, ótima), e mais quatro mulheres que interagem entre si e com os homens.  Há outros personagens importantes, como o fotógrafo israelense que registra ações palestinas artisticamente, mas elas estão em primeiro plano.

 

Os encontros se dão numa boate real da cidade de Haifa, em Israel, que por sinal é a cidade natal do diretor.  Essa boate é frequentada tanto por israelenses quanto por palestinos, que vivem momentos de relacionamento, troca e diálogo, apesar do ambiente de ódio e violência crônicos que os rodeia.

 

Esse espaço da realidade inspirou o diretor, e também roteirista, ao lado de Marie-Jose Sanselme, a criar momentos, situações, geralmente de diálogo entre duas pessoas, em que se discute tudo o que aparece.  Reflexões sobre a vida, o amor, a arte, as angústias, questões filosóficas, políticas, manifestações diversas dos desejos.


 



O filme apresenta essas cenas, de dois a dois, fugindo do naturalismo.  As falas acontecem sem preâmbulos ou preparações, de forma direta e surpreendente.  Algo profundo pode dar início a uma conversa entre duas pessoas que mal se conheceram ou nem se conhecem.  Colocações sinceras e duras podem expressar algo que pessoas amigas, amantes, casadas, resolveram falar agora, de repente.  O que fica, portanto, é a essência da ideia, do desejo, do sentimento, da atitude.

 

A forma do filme é o mosaico, em que as coisas se encaixam, ou não, fazem sentido, se complementam ou se opõem, mas têm significado distinto.  Cada sequência vale, independentemente do seu conjunto.  Mas a totalidade dessas coisas diferentes compõe um coletivo que reflete a realidade do Oriente Médio em conflito em cada pessoa e, claro, nas suas relações.  Algumas sequências se relacionam a outras, engrenando uma pequena história, mas não de forma direta ou linear.  Enfim, é preciso estar atento a tudo, para encontrar ao final um sentido, que também está aberto ao que cada um percebe desse universo que se alimenta do conflito.

 

O destaque às mulheres vai por conta de que possa estar nelas, muito mais do que nos homens, a possibilidade de construir algo mais decisivo, pacífico e harmonioso, em tempos tão turbulentos.

 

VIAGEM DE FÉRIAS

Nas próximas semanas deixarei de escrever e postar as críticas cinematográficas habituais.  Em meados de setembro, estarei de volta. Espero que revigorado.


quinta-feira, 3 de agosto de 2023

BLUE JEAN

        Antonio Carlos Egypto

 


 

BLUE JEAN (Blue Jean).  Reino Unido, 2022.  Direção e roteiro: Georgia Oakley.  Elenco: Rosy Mc Ewen, Kerrie Hayes, Lucy Halliday, Lydia Page.  100 min.

 

“Blue Jean”, filme dirigido por Georgia Oakley, remete à questão da homossexualidade no Reino Unido, durante o período da primeira ministra conservadora Margaret Thatcher, que promovia uma ampla campanha contra a população LGBT+, a pretexto de impedir o que chamava de promoção da homossexualidade.  O filme faz referência a uma tal “cláusula 28”, que estigmatizava e difamava as lésbicas, por exemplo, considerando-as como subversivas e problemáticas.

 

A trama de “Blue Jean” focaliza a professora de educação física Jean (Rose Mc Ewen) tentando viver sua vida e sua profissão, mas se sentindo pressionada por todos os lados.  Tenta proteger seu emprego, do que depende para viver, as relações com os colegas de trabalho, com os alunos e na vida familiar, ao mesmo tempo em que vive uma experiência amorosa com Viv (Kerrie Hayes), uma mulher mais desinibida e ativa politicamente, o que oferece um contraponto eloquente à sua postura reprimida, cuidadosa.

 

As coisas se complicam quando uma aluna dela passa a frequentar uma casa noturna lésbica, que, a rigor, não teria idade para frequentar, ao mesmo tempo em que é hostilizada na escola.  E isso exige uma tomada de posição por parte de Jean, que lhe será muito custosa.

 

Por aí o filme caminha, mostrando as dificuldades que se apresentam para quem, além de enfrentar os preconceitos habituais, tem de encarar a hostilidade pública que um governo constituído lhe faz, em pleno século XX.  A ação se passa em 1988.

 


A ótima atriz Rosy Mc Ewen compõe uma personagem sempre tensa, tentando parecer calma ou controlada, por meio do rosto contraído, do olhar medroso, dos gestos contidos, dos sorrisos sem espontaneidade. Tudo isso mostrado com bastante sutileza.  Com isso consegue nos passar todo o sofrimento interno da personagem.

 

Vencedor do prêmio do púbico no Festival de Veneza, “Blue Jean” de fato se comunica bem com o público, trata do tema com clareza e sensibilidade, centrado no caráter humano que envolve o amor e a luta pelo direito ao reconhecimento e à aceitação de se poder ser o que se é.  Do mesmo modo, denuncia o absurdo dos controles do Estado sobre a vida das pessoas, seja amorosa, sexual, familiar, religiosa ou qualquer outra.  É assim um filme que cultiva a diversidade e a universalidade dos direitos humanos.

 

É incrível que a Inglaterra, o Reino Unido, que criminalizou a homossexualidade por tanto tempo, vide o caso Oscar Wilde, tenha retomado uma posição de hostilidade oficial, em plenos anos 1980, por conta da ascensão de um governo de direita ultraconservador.  E pior, que essas tendências políticas continuem tendo força e apoio, não só lá como em muitas outras partes do mundo.