terça-feira, 24 de junho de 2008

PERFIL DO CRÍTICO RICARDO CALIL

ENTREVISTA COM O CRÍTICO DE CINEMA
RICARDO CALIL

Antonio Carlos Egypto


Ricardo Calil é um jovem crítico de cinema, mas que já conta com uma experiência considerável na área. Aos 35 anos de idade, conseguiu acumular dezessete anos de trabalho jornalístico, quase sempre diretamente ligado ao cinema, sua paixão confessa desde a adolescência. Essa paixão pelo cinema se formou vendo principalmente os filmes clássicos norte-americanos, mas também lendo sobre filmes, nas críticas de Inácio Araújo, por exemplo.

Quando se decidiu por fazer jornalismo, já tinha em mente a crítica de cinema. Na primeira aula do curso, quando indagado por seus interesses na área, já manifestou claramente essa escolha. A ele parecia uma boa idéia viver de assistir a filmes e refletir sobre eles.

Diz um ditado chinês que quando a gente sabe aonde quer ir os outros nos dão passagem. Com Ricardo Calil, o ditado parece confirmar-se. Ainda cursava o primeiro ano de jornalismo, com 18 anos, e já ingressa na Folha de São Paulo, mais precisamente na Agência Folha. Dois anos depois, vai para a Ilustrada, o caderno de cultura do jornal. Ali trava contato com boa parte das pessoas que admirava, como o próprio Inácio Araújo, José Geraldo Couto, Alcino Leite, Sérgio Augusto e Ruy Castro. Foi sua escola, muito mais do que a faculdade de jornalismo. Seus primeiros textos sobre cinema são daquele período: uma crítica de vídeo, um texto ou outro. Vai para o Jornal da Tarde, passa pelo Caderno de Turismo, mas chega aonde queria: o caderno de cultura.

Nessa época, resolve cursar cinema na ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo) para fazer melhor o seu trabalho e realizar outros sonhos, mas não conclui o curso. Estava na agitação da redação e acabou sendo enviado a Nova York, para fazer cursos de extensão universitária em cinema. Fica lá por três anos, onde acontece seu primeiro trabalho pela Internet, editando a área de cultura do portal Starmedia. Torna-se correspondente de cultura do jornal “A Gazeta Mercantil”, que tinha um caderno cultural muito conceituado, na época, editado por Daniel Piza, que saía às sextas-feiras, chamado “Fim de semana” (o caderno segue existindo). Lá teve total liberdade para escrever sobre cinema, até porque sempre acabava vendo os filmes com maior antecedência.

De volta ao Brasil, foi trabalhar na Internet de novo, sendo que após dois anos da volta integra o site “No mínimo”, muito bom, feito por jornalistas cariocas. Lá, durante três anos, foi colunista e depois blogueiro de cinema, DVD e TV. O site terminou há pouco e foi uma experiência que ele valoriza muito.

Trabalhou também por algum tempo na revista Bravo, para a qual ainda colabora. Foi, então, convidado a ser editor de cinema do UOL, onde atua, além de ser colaborador da Folha de São Paulo. Há dois anos escreve no Guia da Folha, um espaço pequeno, mas uma vitrine muito grande, com repercussão significativa.

É uma experiência rica e variada, que vai solidificando uma carreira na crítica de cinema que, a rigor, foi uma extensão natural de sua condição de espectador. Quando falo sobre isso, ele responde modestamente que ainda está formando essa condição de crítico, pois tem lacunas a preencher, como o conhecimento da chanchada brasileira e do cinema clássico japonês.
O seu jeito de abordar as coisas também passa a idéia de alguém não só modesto, como ponderado, equilibrado, cuidadoso e que organiza bem seu tempo. Desde o nosso primeiro contato por e-mails para a entrevista, ele foi pronto, gentil e atencioso. Como para mim não é fácil abordar estranhos, ainda mais pedindo coisas, eu comecei tratando-o formalmente de senhor.

Sua resposta foi afirmativa, me passou telefones para marcarmos a conversa, mas não deixou de mencionar que não se via como um “senhor”. Claro que o senhor era eu, 26 anos mais velho, não ele, que, apesar de bem sucedido, ainda se vê em formação!

Ele mesmo atende ao telefonema, mas só se identifica após a minha identificação. Ele pede que eu lhe faça nova ligação, na semana seguinte, para acertarmos dia, hora e local. Volto a ligar, ele atende, reconheço a voz, mas ele repete o mesmo cuidado anterior, mecanismo que provavelmente o protege de contatos inconvenientes. Acertamos tudo, inclusive o tempo de duração da entrevista: uma hora, disponibilidade que lhe parece adequada.

Na entrevista, uso um gravador de fita que conclui o lado A aos 45 minutos. Ele nota, averigua o tempo percorrido e aponta que não podemos ir além do tempo combinado. Tudo de forma muito gentil, sem nenhum resquício de agressividade e sem demonstrações de ansiedade.
Esse jeito moderado de se comportar se reflete nas suas opiniões: abertas, isentas de qualquer forma de radicalismo e muito ponderadas. São, porém, idéias bem definidas e consistentes.

UMA RESPOSTA PESSOAL

À indagação “O que significa o cinema para você?”, Calil responde assim:

“É uma paixão. Difícil entrar nisso sem entrar em questões pessoais. Me vejo como uma pessoa introvertida. Por essa introversão, usei o cinema como uma espécie de anteparo em relação ao mundo. Para mim, sempre foi muito mais confortável ver o mundo através dessa janela do cinema, o cinema tem essa importância para mim, é, de certa forma, um refúgio. Passa por isso. Pessoalmente, tem esse nível de importância”

O EXERCÍCIO DA CRÍTICA

É muito comum encontrar na crítica o juiz, aquele que diz se o filme é bom ou não. A crítica deve ter um papel formador, fornecer ferramentas para melhor compreensão, dar uma base histórica, cultural, para que a própria pessoa possa decidir sobre o filme. É um serviço, um diálogo; mais do que uma imposição de opiniões, é uma maneira de compartilhar idéias. E, se possível, ampliar a visão do público. É o que Ricardo Calil busca, ao cumprir essa função, mas acha que nem sempre consegue e nem a resposta do público é a que imagina, muitas vezes.

O retorno do público era imediato, quando tinha o blog, chegou a ter 300 retornos em cima de um e-mail. Sempre que escreve pela Internet tem retorno. Já no jornal, muito pouco. Acredita que a relação do jornal com o público é menos democrática, mais autoritária, há um certo trabalho para as pessoas se manifestarem. O feedback no jornal sempre foi menor, mas, quando acontece, é mais profundo, a pessoa se deu ao trabalho de acompanhar o que você escreveu. Na Folha de São Paulo há muito retorno no dia-a-dia, pessoas que o encontram e dizem que estão lendo seus textos, outros que o encontrando na Internet, no Orkut ou pelo Messenger dizem que querem ser amigos, ou se corresponder, porque costumam ler suas críticas.

Ao fazer a crítica, Ricardo pensa no público para quem vai escrever, já que escreve para vários lugares e cada lugar tem seu público. Na Internet, às vezes utiliza algum termo, como travelling, sem explicar, porque supõe um público mais especializado e que conhece o trabalho que ele desenvolve. Mas quando o site está ligado a um portal, com público mais heterogêneo, é preciso levar isso em conta. Na Folha, escreve para um mínimo denominador comum, leitores que têm um conhecimento mínimo de cinema. Então, se cita um cineasta menos conhecido, tem de explicar.

Mas não pensa no público no sentido de agradá-lo. O que tenta é se comunicar da maneira mais transparente com ele.

Reconhece que tanto os critérios da crítica quanto a avaliação do público receptor envolvem aspectos subjetivos, mesmo que se disponha de alguns dados, como idade ou escolaridade média dos leitores. Não muda seu pensamento sobre o filme por causa do público, mas muda um pouco a linguagem.

Aparentemente, a escolha do filme a ser analisado já dá pistas sobre as preferências do crítico, mas há que considerar que muitas vezes o crítico é pautado, como na Folha ou na Bravo, e o editor interpreta o que cabe melhor a que crítico. Mas sempre que tem a possibilidade de escolher o que analisar, Ricardo leva em conta que alguns filmes são obrigatórios de se escrever sobre eles, por serem muito importantes e outros, porque o filme atrai um público vasto. É importante não desprezar os fenômenos culturais nem os fenômenos econômicos do cinema. Exemplifica com “Santiago”, no primeiro caso, e “Homem Aranha 3”, no segundo, filmes que ele julgou necessário analisar.

Ver e apreciar um filme e ter de escrever sobre ele é diferente? Ricardo julga que vai mais desarmado quando não tem que escrever, vai um pouco menos atento, um pouco mais relaxado. Tenta, dentro do possível, deixar que o filme o emocione, toque ou fale com ele num nível mais primário, instintivo ou emocional. Depois tenta racionalizar um pouco essas sensações, quando faz a crítica.

Revê o filme quando sente que ele não está fresco na memória, quando, por exemplo, há o lançamento do DVD. Ou quando o filme que vai estrear foi visto na Mostra do ano anterior. O ideal é mesmo ver o filme, pelo menos, umas duas vezes.

Às vezes acontece de ele sentir que foi injusto com um filme e que pessoas que admira dizem o oposto. Acha que tem de rever esse filme, talvez tenha sido pouco generoso ou condescendente. No jornal, não dá para voltar atrás e revisar o comentário, na Internet isso é possível.

HISTÓRIA DO CINEMA

Para falar dos momentos mais ricos da história do cinema, Ricardo recorre à sua formação e cinefilia. O gosto pelo cinema começa com o cinema norte-americano clássico de Billy Wilder, Alfred Hitchcock, Elia Kazan. A base do cinema, no entanto, está lá no expressionismo alemão. E também em todos os outros movimentos que se contrapuseram a esse cinema clássico narrativo: o neo-realismo italiano, a nouvelle vague francesa, o cinema novo brasileiro, o cinema marginal brasileiro de Júlio Bressane, Rogério Sganzerla e Andrea Tonacci, que admira tanto quanto o cinema novo.

Não dá para fugir desse senso comum, são os momentos fundamentais: o cinema norte-americano estabelecendo o padrão e os outros cinemas apresentando os desvios mais interessantes a esse padrão, incluindo aí o próprio cinema americano dos anos 1960 e 1970: Scorsese, Coppola, o que também já é uma contaminação do classicismo por esse respiro desses cinemas novos mundiais. É importantíssimo conhecer todos esses filmes, sem deixar de estar atento ao que está acontecendo por aí.

Ao pedido de que apontasse uma cena de cinema que particularmente o tocasse, ele disse que a cena que mais recorda em termos afetivos é o final de “Os Incompreendidos”, de Franços Truffaut, a corrida do protagonista em direção ao mar.

PREFERÊNCIAS DO CRÍTICO

Ricardo Calil não tem problemas com nenhum gênero de filme ou país de origem, seus gostos são variáveis. Também não tem problemas com os blockbusters norte-americanos. Sua lista de melhores do ano, que ele tinha acabado de fazer, tinha um pouco de tudo: Hollywood, cinema brasileiro. Curiosamente, não tinha cinema asiático, que havia sido destaque no ano anterior.

Segundo ele, há coisas interessantes e desinteressantes vindas de todos os lugares. Uma das brincadeiras que a crítica faz é tentar identificar certas ondas, tendências do cinema, por gênero ou geografia. No ano passado, era claro que havia algo muito interessante vindo da Ásia: da China, Hong Kong ou Taiwan. Cineastas muito importantes, muito consistentes, de uma região delimitada, se destacaram, como Jia Zhang-Ke, Wong Kar-Wai e Tsai Ming-Liang. Antes disso, houve a onda argentina, com bons cineastas. Agora, fala-se muito na Romênia e não só por “4 meses, 3 semanas e 2 dias”. Teve a fase do cinema iraniano, a fase do dogma dinamarquês. Então, por conta das circunstâncias, algumas cinematografias se destacam.

CINEMA BRASILEIRO

O público tende a ser injusto com o cinema brasileiro (e a crítica, às vezes, condescendente). Por uma seleção natural, o que a gente vê do resto do mundo é o melhor. Do cinema brasileiro, a gente vê de tudo e chega a achar que é o pior dos cinemas. É tão bom ou tão ruim quanto qualquer outro cinema. Se todos os filmes argentinos chegassem aqui, a gente ia ter uma visão pior do cinema argentino.

O cinema brasileiro vive de algumas exceções, de alguns talentos, mas existe um problema, que é a maneira como ele é produzido. Acabam-se realizando filmes sem riscos artísticos, por causa dos financiamentos. Como essencialmente empresas estatais e privadas escolhem que filmes vão ser feitos, tendem a fazer apostas mais seguras em filmes mais comerciais, que não agridem ninguém, mas também não provocam ninguém. Isso inibe experimentos mais ousados. O cinema brasileiro tem uma longa batalha para reencontrar um público perdido, a gente não encontrou a fórmula para isso ainda, mas Ricardo gostaria que, além dessa tendência majoritária de reencontro com o público, existisse alguma prioridade para filmes que estão tentando fazer a linguagem avançar, de alguma forma, filmes que não tentem reproduzir fórmulas da TV ou de fora.

Afinal, há cineastas muito interessantes de várias gerações, trabalhando no cinema brasileiro.
É a favor do incentivo fiscal para filmes e de que haja mecanismos claros e critérios mais rigorosos para esses incentivos. Um exemplo de sucesso nisso é a Petrobrás. Ela monta uma comissão de julgamento de projetos com pessoas convidadas, de fora da empresa, a cada ano, envolvendo cineastas, críticos e professores. O ideal é que os mecanismos continuem, sejam rigidamente controlados, para que não haja nenhum tipo de falcatrua, e que as decisões estejam nas mãos de pessoas que entendam de cinema, que amem cinema.

As escolas de cinema são fundamentais num país como o Brasil, com uma história de cinema tão acidentada. É um espaço de formação e de reflexão. O lastro de formação que essas universidades podem dar é importante. Se uma pessoa tem só a técnica e a outra tem a técnica e a base teórica, esta última estará mais apta a ser um bom cineasta e, com certeza, um bom pensador do cinema.

Do que ele mais gostou do cinema brasileiro, ultimamente? “Santiago”, de João Moreira Salles, “Jogo de Cena”, de Eduardo Coutinho, “Cão sem Dono”, de Beto Brant, “Mutum”, da Sandra Kogut. No ano anterior, “Céu de Suely” e “Crime Delicado”, são filmes que o interessaram, porque conjuga coisas como o desejo de se comunicar com uma parcela, maior ou menor, do público, mas tentam sair do senso comum, tentam fazer cinema, não teatro, nem literatura.

Quanto a “Tropa de Elite”, de José Padilha, o filme foi muito analisado ideologicamente, pouco analisado cinematograficamente. Ele gosta do filme, no geral, tem restrições ideológicas e cinematográficas, mas trata-se de filme importante, poderoso, a energia é inegável. Falta essa energia a outros filmes brasileiros. É importantíssimo que esse filme tenha se tornado fenômeno de público sem propaganda, no boca-a-boca das pessoas. O que muitos tentam, que é encontrar uma brecha de diálogo com o público, ele conseguiu de uma forma muito incomum, que não é a forma do marketing.

CIRCUITOS DE EXIBIÇÃO

O ingresso de cinema está muito caro, é um problema que precisa ser atacado. É necessário oferecer alternativas mais baratas. É improvável que as grandes redes façam isso, porque lidam com a lógica própria do mercado.

O governo brasileiro investiu nos últimos anos em uma série de fatores, aumentou a produção, hoje a gente faz 50 filmes por ano, na década de 1990 quase não se fazia filme. Só que tem de haver investimento também em salas de cinema e ingresso popular. Se o grande problema do cinema brasileiro é a distribuição do filme, cujo espaço ainda não foi encontrado, ele poderia ser sanado por essas salas com ingresso popular. Isso só pode ser uma iniciativa do Estado, se ele não fizer, ninguém fará. A rede Cinemark pode fazer um dia por ano a R$2,00, não vai fazer 360 dias a R$7,00. Não é que ele seja partidário da intervenção do Estado na vida cultural, mas, já que o Estado financia tanta coisa, por que não investir nessa área?

O FUTURO DO CINEMA

Diante das novas mídias digitais, o cinema está mudando. Ricardo Calil acha que o cinema não morrerá, mas também não sairá ileso. Vai se transformar, vai virar outra coisa. Ele crê que o cinema como espaço físico não deixará de existir, mas a tendência é que perca a importância, gradativamente, essa idéia clássica, tradicional e romântica de você se deslocar e ir até o cinema. O feedback que as pessoas dão atualmente é: está muito caro, está muito complicado, os caras do meu lado são muito chatos, as pessoas fazem barulho, tem fila, tem que pagar estacionamento, a pipoca é cara ...

É diferente, mas as gerações que vêm depois de nós já têm uma relação completamente distinta com a idéia do tamanho da tela. Ele não baixa filmes pela Internet, mas uma série de amigos e críticos um pouco mais jovens (de até 30 anos) fazem isso com uma facilidade, uma freqüência assustadora. É um novo tipo de cinefilia.

Antigamente, a gente ia ao cineclube porque só lá você iria ver aquele filme polonês em preto e branco, da década de 1950. Hoje, você pode baixar no seu computador. Ao mesmo tempo em que a gente nostalgicamente sente falta do cineclube, existe um movimento muito interessante de cinefilia, de amor ao cinema, que é viabilizado por essas novas tecnologias.

Não temos que temer as mudanças, mas lutar para que o cinema não morra de vez. Ricardo não é pessimista quanto a isso, acredita que o cinema resista, a produção será democratizada com a câmera digital, o jogo vai ser separar o joio do trigo. Mas haverá mais gente fazendo cultura, arte, em proporções maiores.

Ricardo gosta da tela grande, da imersão; quando pára, como no DVD, a fruição do filme fica prejudicada. Além disso, na tela pequena é mais fácil você gostar de um filme em close, que você tenha definição, do que gostar de filmes abertos, mais sofisticados; você valoriza menos isso numa tela menor, esse é um efeito colateral indesejado. Mas sempre haverá espaço para um cinema mais refinado. Pode ser cinema, ou não, mas vai ter espectador para ele, sim.

NOVOS CAMINHOS?

Aproveito o final da entrevista para comentar com ele um filme que ele analisou para o Guia da Folha e deixou dúvidas no ar. “A Lenda de Beowful” trabalha com tudo computadorizado a partir das imagens e interpretações dos atores e foi exibido em 3D, tornando o espetáculo muito sedutor. Ele se interessou por essa tecnologia, assim como eu, mas se perguntou se esse é um dos caminhos desejáveis para o cinema.

Acredita que seja uma porta nova, mas até que ponto queremos entrar por esse caminho? Acha interessante a proposta, não temos que ter medo dela, mas ficaria chateado se o cinema virasse 90% isso. Pode ser entretenimento, mas tem de ser variado. Acha que sempre haverá espaço para o classicismo e para a estrela do cinema. As pessoas não são substituíveis, nem serão.

O que assusta é quando a gente se aproxima da homogeneização. Mas não é o caso. O que mais se aproxima disso é Hollywood, mas mesmo lá sempre aparecem exceções muito interessantes. Vamos ver o que acontece daqui a uns dez anos, porque tudo isso ainda é muito novo.

domingo, 8 de junho de 2008

Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses)

Denise Bacellar

Hollywood, 1950. Este é o cenário de Crepúsculo dos Deuses. Nessa época, os Estados Unidos viviam seus anos dourados. A sua grande característica foi o surto do crescimento econômico dos países industrializados. O que antes era luxo, tornou-se o padrão de conforto desejado e necessitado. No cinema não era diferente.

A partir dos anos 30 a passagem do cinema silencioso para o cinema sonoro inaugurou a era da massificação cinematográfica. Havia um grande potencial comercial a ser explorado. A passagem, porém, foi extremamente traumática para muitos profissionais. Principalmente atores e atrizes que tinham suas vozes reveladas, desmacarando seus mitos, diminuindo seus gestos e expressões exageradas e teatrais.

Mas não havia retorno. O cinema falava em alto e bom som. Saudosistas se referiam ao primeiro cinema como o universal, onde analfabetos e estrangeiros podiam entreter-se sem a necessidade de tradução. Apenas com seus gestos grandiosos estrelas se tornavam verdadeiras divas, objetos de adoração, coroando o Star System introduzido nos estudios de Hollywood.

Billy Wilder, o diretor e roteirista de Sunset Boulevard, nascido em 1906 na Polônia e radicado em Berlim em 1933 percebeu que, com a ascenção de Hitler, seu lugar era em outro país. Em 1934 chegou a Los Angeles onde, décadas mais tarde contribuiria muito para o cinema em Hollywood.

Realizou filmes inestimáveis como Ninotchka(1939), Pacto de Sangue(1944), Sabrina(1954), Quanto mais quente, melhor(1959), Onze Homens e um Segredo(1960), Irma La Douce(1963). Tinha influência em Hollywood e, não fosse pela confiança que inspirava, não teria conseguido realizar Sunset Boulevard, onde alfineta com muita classe, a realidade cruel dos bastidores dos estúdios grandiosos de Hollywood.

Sunset (por do sol) Boulevard é uma rua de Los Angeles na qual se vislumbra o por do sol. Porém sua alusão é dada aos três protagonistas do filme que estão em seus dias de crepúsculo, decadência e finitude: Norma Desmond (Gloria Swanson), Joe Gillis (Willian Holden) e Max von Mayerling (Erich von Strohein).

A primeira cena vislumbra seu tema. Seu título, Sunset Blvd, pintado em uma sargeta. Um plano sequência quebrado apenas pelos letterings dos nomes nos encaminha à vertiginosa chegada de carros e motos de policiais à uma mansão na altura do número 10.000. Um local com aspecto de abandono e tristeza.

O locutor dá inicio à sua história, temendo que a saibamos antes, através da imprensa. Afinal, estamos em Hollywood. E uma notícia que se refere a uma celebridade pode ser recheada de fatos fantasiosos. Billy Wilder, há vinte anos em Hollywood, sabia bem o que a imprensa podia fazer com seus comentários maledicentes.
Um corpo visto de baixo d’água é o objeto da narração. Uma técnica ousada para a época, pois não haviam equipamentos que tornassem a cena factível. Técnicos de cena, então, adaptaram um espelho dentro da piscina para que pudéssemos ter o “ponto de vista de um peixe”.

Numa alusão à Machado de Assis, damos inicio às memórias póstumas de um roteirista a beira da falência. Mesmo Billy Wilder ter afirmado nunca ter tido contato com a obra machadiana, a ironia de um morto contar o seu próprio infortúnio foi uma surpresa.

Curiosamente, a primeira projeção do filme a uma platéia experimental revelou um início tão grotesco que Billy Wilder teve que adaptar sua idéia. No início Willian Holden era um cadáver prostrado em uma mesa num necrotério e começa a falar com o morto ao lado como foi sua trajetória. Um tanto cômico demais. Não funcionou, pois a platéia caiu às gargalhadas. Devo confessar que a segunda filmagem (a visão da piscina) foi a melhor escolha.

Do corpo estirado na piscina vislumbramos um flash back. Seis meses atrás, quando tudo começou. Nosso escritor trabalhando em seu apartamento, tentando ser original em suas histórias, recebe a visita de cobradores. Seu carro está com os pagamentos atrasados há três meses. O perfil de mais um escritor de roteiros de Holywood, em busca de sobrevivência. A selva que nunca perdoa. As cobranças que sempre aparecem, sejam financeiras, sejam profissionais. O espelho da sociedade totalmente industrializada, onde suas engrenagens são as pessoas manipuladas pelo sistema. Ele tenta, nos estúdios da Paramout, uma chance, porém se vê diminuido e posto de lado.

Na fuga de seus algozes cobradores nosso herói encontra uma garagem abandonada. Local melhor para esconder seu conversível, não há. Avistado pelo mordomo, confundido e é levado para dentro de um verdadeiro mausoléu. Uma mansão que abriga uma ex-diva do cinema silencioso: Norma Desmond. Numa cena em que parece uma viúva negra, revela o estar esperando. É obrigado a entrar na casa. Nesta cena, inicia-se o que Wilder chamou de primeiro ato. A curiosidade nos toma também e, como cúmplices, entramos na mansão aberta pelo mordomo Max, vivido pelo então diretor de filmes silenciosos na década de 20, Erich von Stroheim.

A ironia da metalinguagem começa a se revelar. Erich von Stronheim migrou para os Estados Unidos e dirigiu filmes encomendados. Até ganhou certa autonomia. Porém ao filmar “Ouro e Maldição” entrou em uma crise financeira que o afastaria das câmeras. O filme foi contestador. Criticou o American Way of Life, colocando a cultura da cobiça como uma maldição. O filme tinha 9 horas de duração e reduzido para 2h30 perdia todo o sentido e ficou truncado e inteligível.

Erich von Stronheim também dirigiu Gloria Swanson (Norma Desmond) em seu último filme “Minha Rainha”. Filme descontinuado por motivos financeiros. Ambos se afastaram do cinema. Ambos, ironicamente, atuavam como artistas esquecidos dentro de um mausoléu de ilusões. Billy Wilder como roteirista (juntamente com Charles Brackett e D. M. Marshman Jr.) sabia muito bem o que estava fazendo. Tanto que seu roteiro, segundo os atores, era seguido à risca, para que não se perdesse nada do que desejava dizer.

A revelação da grande atriz se dá no momento em que Joe entra em seu quarto e vê seu bicho de estimação morto em uma mesa de massagem. E Norma diz uma de suas mais importantes frases: ela continuara sendo uma grande estrela e os filmes se tornaram menores. Nesse momento a iluminação torna-se obscura, com contornos expressionistas. Gloria está vestida de luto, óculos escuros, uma figura um tanto perturbadora.

Norma Desmond representa o fim de uma era que foi, por muitos, considerada a mais pura expressão do cinema. O silêncio da escura sala de projeção mostrando apenas gestos longos e exagerados, teatrais, entrecortados por frases ditas e não ouvidas. Ela era assim. Exagerada em seus gestos, emoções, sempre preocupada com sua aparência que deveria combinar com seu momento. Ao deparar-se com um roteirista profissional, resolve contratá-lo na esperança de ter seu sonho - um roteiro para filmar Salomé - tornar-se realidade, filmado por Cecil B. De Mille, seu antigo diretor. Joe Gillis pensa a estar enganando exigindo um pagamento alto e aceitando suas condições. Porém Norma estava muito a frente dele. Ao aceitar ficar no quarto acima da garagem, imagina, no dia seguinte ir para sua casa desdenhando o mal-escrito roteiro de Norma.

Para sua surpresa, a teia está se fechando. Seus pertences agora eram propriedades da casa. Sem aceitar muito, acaba virando um gigolô. Reflexo de uma pessoa que não vê muito futuro em si mesma. Que não se dá muita importância. Inicio do segundo ato.

Aos poucos a redoma de mentiras vai envolvendo Joe que se vê cada vez mais humilhado por sua “chefe” que muitas vezes faz questão de esquecer essa condição. Aos poucos o envolve e o torna seu amante. Sim, já vimos muito isso em novelas. Mas não podemos esquecer a época em que estamos. 1950, numa sociedade em que a família era muito valorizada, os conceitos morais eram fortes e mostrar uma realidade dessas não era para qualquer diretor que não tivesse a confiança necessária (de Hollywood) para isso.

O filme é Noir. A relação com questões sociais norte americanas era de crise do homem que serviu na segunda guerra e retornou a um país transformado. Joe com seus 31 anos, provavelmente lutou no front e retornou a um ambiente diferente, onde as mulheres eram mais competitivas. Neste cenário entra a figura de Betty Saeffer, vivida por Nancy Olson. Uma leitora de roteiro que foi criada no ambiente cinematográfico e que deseja ser uma roteirista. Uma possível concorrente para Joe.

Estabelece-se uma dualidade de interpretações: de um lado a mulher que se deixou ficar parada no tempo, exalando um melodrama barroco (como é a decoração de sua casa - um prolongamento de si mesma), de outro lado um típico americano dos anos 50 pronto para, a qualquer custo, conseguir um lugar ao sol.

Joe Gillis segue sua vidinha comprada. Narra seu dia-a-dia. Mais uma ironia referencia figuras do passado jogando cartas com Norma. Buster Keaton, H. B. Warner e Hedda Hopper a quem Joe chama de “bonecos de cera”, eram figuras esquecidas do cinema silencioso. Em momentos de tédio, Norma retoma sua capacidade de atuação e parodia Carlitos com uma naturalidade sensacional (uma referência do diretor a Chaplin que foi decididamente contra a sonorização do cinema). Glória é tão ou melhor do que Norma Desmond. Veio do cinema silencioso mas não enlouqueceu com sua transformação. Teve seu ocaso. Porém continuou com trabalhos no rádio. Ao cinema retornou em Sunset Boulevard e sua atuação foi absolutamente convincente e realista. Norma Desmond dificilmente seria tão bem interpretada por outra atriz.

Numa cena em que Wilder mostra a Paramount por dentro, Norma Desmond está convencida de que fará o próximo filme de De Mille. Atores, profissionais técnicos, porteiros antigos, todos, enfim reconhecem Norma. É uma cena em que um microfone encosta em seu chapéu e é empurrado pela atriz, num gesto de desdém pelo som. Ao ser notada, Norma acredita em sua vida de mentira e passa um misto de vergonha e pena ao espectador. O clima filmado nos leva a entender o quão importante era a figura do diretor: após passar por vários assistentes chegamos a Cecil B. DeMille que a trata com carinho e cuidado. Fica sabendo que o estúdio estava interessado em seu carro antigo e não nela. Norma é o tipo de pessoa que gosta e pede para ser enganada o tempo todo. Mal dá a chance de ouvir o que os outros têm a dizer. Sai do estúdio convencida de que terá seu roteiro filmado por DeMille.

O tempo vai passando e a possibilidade de Joe conseguir se desvencilhar de um emprego repugnante se abre com o plano de reescrever um roteiro seu com Betty Shaeffer. Seria a chance de recomeçar de verdade. Fazer valer sua profissão. Respirar novos ares.

Seria uma alusão do diretor a possível redenção de um cenário competitivo e cruel. O outro lado da vida de Joe parece mais claro, mais realista e verdadeiro. Mas não esqueça que ele está atado a uma teia de loucuras e contradições. Quando decide que não aguenta mais, a viúva negra, num ato covarde (atirando-le pelas costas) prova que não existe vida do lado de fora do mausoléu.

Sentimos um misto de raiva e pena de Norma. Quando a verdade se revela, ela enlouquece. Sua loucura a protege. Ela realmente não sabe onde está e comete seu assassinato como se fosse a cena derradeira de sua vida. O corpo de Joe cai na piscina e retornamos à primeira cena, onde tudo começou. Agora com um Joe mais conformado com sua morte. Citando com ironia que seu corpo fora delicadamente retirado da água e que só os mortos recebem essa atenção especial.

A cena antológica do cinema se dá ao final da história, na qual os protagonistas vão de encontro aos seus desejos: Joe, consegue sua piscina, Norma, sua grande cena e Max, a dirige em sua última atuação. A televisão e a imprensa, ganharam um assunto quente para ser explorado.
Aliás a televisão aparece com suas câmeras para o grand finale e concretiza a sua importância sendo os “olhos e os ouvidos da américa”.

A ironia de Wilder parece estar mais viva do que nunca. Sua linguagem excepcional e contundente amarram o espectador do começo ao fim. Mesmo os menos entusiasmados com o cinema clássico acabam se encantando com o filme. Wilder era um diretor a frente do seu tempo. Consegiu reger uma orquestra com a perfeição de um Bernstein. E fez uma das mais inesquecíveis obras do cinema norte-americano.

Foi o 63º filme de Gloria Swanson, o 7º de Billy Wilder, e no papel de Max von Mayerling, Erich von Stroheim faz as pazes com Hollywood com essa oportunidade legítima do grande ator. William Holden que fizera vários filmes onde era considerado o bom moço desde o seu sucesso em Golden Boy (Conflito de Duas Almas), merece o elogio de uma excelente performance.

Apesar de sua fama, Crepúsculo dos Deuses não levou o Oscar, que naquele ano, foi para A Malvada, que desvenda a podridão dos bastidores do teatro com a mesma ênfase que Wilder focalizou o cinema.

O REALISMO ALEMÃO E A “CAIXA DE PANDORA”

Ed Anderson Mascarenhas

O expressionismo foi um movimento de vanguarda do final do século XIX que estava mais interessado na interiorização da obra artística do que na sua exteriorização, projetando na obra de arte uma reflexão individual e subjetiva. Anti-natural, anti-realista, onde não há subjetivismo, sendo caracterizado como extremamente pessimista e deformador de objetos ou detalhes destacando-os do conjunto. Ele existiu no cinema depois de atuar em todas as outras áreas, mas foi nesta onde ele melhor se instalou. Luiz Nazário em seu livro As Sombras Móveis destaca que “O termo expressionismo fora usado pelo crítico de arte Herwarth Walden para caracterizar toda arte oposta ao impressionismo. Mais tarde passou a definir toda a arte na qual a forma não nasce diretamente da realidade observada, mas de reações subjetivas à realidade”.
Convidado a dirigir o primeiro manifesto do expressionismo cinematográfico, Fritz Lang aceitou inicialmente o convite, desaprovando, porém a apresentação original de uma visão inteiramente expressionista do mundo, sugerindo modificar o desfecho. Lang acabou não dirigindo o filme, função assumida por Robert Wiene, mas sua sugestão foi mantida. O Gabinete do Doutor Caligari (1919) tornou-se um manifesto cinematográfico de tremendo impacto, graças a uma conjunção de elementos. O cinema expressionista alemão foi caracterizado com a presença destacada na decoração, iluminação e jogo de atores, tendo uma próspera produção iniciada com O Gabinete..., indo até 1926 com o seu declínio, apesar de alguns historiadores estenderem este período considerando o pré-guerra até a tomada de poder por Hitler em 1933.

Os filmes expressionistas apesar de terem vários gêneros e estilos tinham muitos elementos em comum ao expressar um sentimento de opressão e revolta em relação ao mundo com ênfase em elementos visuais trabalhados de forma a atingir o efeito de “choque”. Estes poderiam ser um personagem, uma interpretação, um tema , um cenário ou até mesmo todos eles, como em Caligari. O aspecto de “deformação” é deveras predominante.

Todos os elementos de cena são carregados de um sentido maior pertencente ao drama, tornando-se mais densos. As olheiras são marcantes neste cinema revelando um simbolismo (melancolia, estado da alma) bem como a utilização de máscaras brancas. A natureza é abolida e em seu lugar são utilizados cenários representativos. O herói expressionista enfrenta desarmado elementos obscuros (perigos invisíveis,ameaças impalpáveis).

Luiz Nazário em seu livro De Caligari a Lili Marlene: cinema alemão, descreve: “Paralelamente ao expressionismo, que nesta época já tem a sua linguagem plenamente desenvolvida, afirma-se a partir de 1924, com A Última Gargalhada, o chamado realismo alemão, com a técnica do `teatro de câmera`(kammerspiel), misturando conquistas expressionistas com formas consagradas do naturalismo, cuja temática centra-se na decadência do homem e da sociedade. (...) As paisagens imaginárias, os fenômenos paranormais, as olheiras filosóficas, os fenômenos sobrenaturais e delirantes do expressionismo são substituídos pelas locações exteriores, pela realidade nua e crua, pela análise científica da mente, pelo ‘socialismo branco’ e pela terapia eficiente: em Segredos de uma Alma(1926) de Pabst, o psicótico marido é curado pelo sábio psicanalista que o conduz a uma apoteose de normalidade`na última seqüência em que vemos o ex-impotente segurando um filho diante de um panorama de montanhas, ao lado da esposa querida.”.

Ainda em seu livro As Sombras Móveis, Nazário escreve “Aderindo à ideologia da Neue Sachlichkeitt (“Nova Subjetividade”) os artistas alemães passaram a ‘despertar” do pesadelo expressionista para espiar ‘a vida como ela é’. O austríaco G. W. Pabst realizou alguns dos filmes mais exemplares deste novo ‘realismo social’, pintando sere humanos como criaturas movidas por instintos primários, desde seu primeiro filme, Der Schatz (1923) sobre a cobiça humana pelo ouro”.

De fato, um dos maiores nomes desta fase responde pelo nome de George Wilhelm Pabst (1885-1967) que começou com ator em 1905 na Suíça e no Cinema em 1920 com produções de alta categoria nos cenários e atores. Pabst possuía uma direção política, não social. E tido como o lançador de Freud no cinema num filme científico que foi fracasso de público e crítica Tragédia de uma Alma. Mas, realizou obras-primas como O Tesouro (1923), A Rua das Lágrimas (1925), O Amor de Jeanne Ney (1927) e A Caixa de Pandora(1928). Esta última baseada em duas obras de Frank Wedekind e estrelada por Louise Brooks (1906-1985), que caracterizou uma interpretação espontânea em contraste com a artificialidade da época, é a obra tida como a sua consagração.

Em seu livro A Tela Demoníaca, Lotte H. Eisner afirma: “O caso de Pabst é extremamente curioso: trata-se de um diretor ao mesmo tempo espantoso e decepcionante. É de se perguntar como o autor de A Caixa de Pandora ou de A Ópera dos Três Vinténs pode fazer um filme tão sofrível quanto O Processo. (...) Pabst apresenta muitas contradições , alguns louvam a sua intuição, perspicácia,seu conhecimento perfeito dos fatores psicológicos e do subconsciente, que fazem com que se sirva da câmera como de um aparelho de raios-X. Há quem o considere um escrutador apaixonado da alma humana, que se deixa conduzir por suas descobertas; outros, como Pasinetti, vêm nele um observador guiado por cálculos frios”.

O fascínio de A Caixa de Pandora muito deve a Brooks que valorizou ao máximo a personagem diante da câmera eternizando a sua imagem erotizada desde o corte incomum de cabelo ao magnetismo da interpretação. No filme é denunciada a imagem da mulher como fonte de desagregação social acarretando a decadência masculina. Nele vê-se o prazer associado à morte.. Uma prostituta de luxo que se envolve com o filho de seu ex-gigolô e uma condessa lésbica numa sociedade alemã do final dos anos 20 .

Segundo Eisner em A Tela Demoníaca : “A Caixa de Pandora e Diário de uma Pecadora não nos mostram antes o milagre de Louise Brooks, cuja profunda capacidade de intuição é meramente passiva aos olhos do espectador ingênuo, mas que soube estimular ao extremo o talento de um diretor ademais desigual? A notável evolução de Pabst se verá reduzida, nestes filmes,ao encontro de uma atriz que bastava deixar se desnvolver na tela, sem que fosse necessário dirigí-la, e que realizava com sua simples presença a essência da obra de arte. Louise Brooks existe com uma insistência desconcertante, ela atravessa estes dois filmes sempre enigmadamente impassível. Sabemos hoje que Brooks é uma atriz espantosa, dotada de uma inteligência fora de série, e não somente uma criatura deslumbrante”..

Com o seu enfoque social e cunho freudiano Pabst rendeu-se ao realismo intimista precursor dos melodramas do cinema americano, condensa as duas peças de Wedekind protagonizadas por Lulu, precursoras do expressionismo no teatro. No filme é mantida a ambigüidade no comportamento de Lulu e a maleabilidade das figuras masculinas, que se colocam como vítimas dos poderes e caprichos da protagonista. Lulu é comparada ao mito grego de Pandora, a "insensata mulher" que abriu a caixa com todos os males do mundo. Revelando a ambigüidade de anjo e demônio.

Numa leitura conservadora o enredo de Pandora pode ser considerado politicamente incorreto, mas um fator a ser considerado a favor do maestream é a sutileza na linguagem cinematográfica. O erotismo acentuado da personagem título passa longe do lugar comum. Louise Brooks defende um olhar inocente e ao mesmo tempo lascivo nas cenas que provocam plena magnetização nos espectadores mais resistentes.. Enaltecendo a ambigüidade que compõe uma ambientação complexa .

A utilização de fumaça nos momentos de clímax e elementos figurativos para ilustrar determinada morte são características que conferem o charme e perenidade artística à obra. È interessante observar em uma das cenas a presença da sombra substituída pela silhueta de Jack, o estripador, diante do cartaz que enumera seus crimes. Os planos do filme são longos, com a reação psíquica dos personagens externadas e enquadramentos aproximados e entrecortados. Segundo Eisner, “Para resumir os componentes da técnica de Pabst: ele procura “ângulos psicológicos ou dramáticos” que revelem, ao primeiro olhar, o caráter, as relações psíquicas das personagens, uma situação, a tensão de uma atmosfera, o momento trágico. Quase sempre prefere este tipo de tomada à técnica de Mornau, que se delicia em acompanhar longamente uma cena, com o auxílio de uma câmera que se move por deslizamento. Para Pabst, pois, é finalmente a montagem que constrói a ação”.

Pabst adotará em suas últimas produções as análises psicológicas bastantes contrárias aos conceitos expressionistas, com teor naturalista. Para ele o rosto de um ator torna-se uma paisagem que a câmera explora minuciosamente. O cineasta segue em 1932 para a França e em 1934 para Hollywood, iniciando sua carreira internacional, embora sem o brilho alcançado no período pré-guerra alemão. Este diretor alemão deixou para a história do cinema mundial uma obra ímpar no quesito de simbologia visual, sedução e sutileza. Eis alguns segredos memoráveis da sua “Caixa”.


Assisti, há quase 20 anos, a uma montagem do texto A Caixa de Pandora, dirigida por Márcio Meireles, no Instituto Goethe da Bahia e fiquei magnetizado, na minha inocência de adolescente iniciando-se no mundo das Artes Cênicas, pela sedução do texto e interpretação dos atores, mas precisamente da atriz que fazia a Lulu, Maria Eugenia Millet. Lembro que, ao chegar em casa, voltei a ler o programa do espetáculo, mirei as fotos dos atores e fui dormir intrigado com o universo que havia visitado. O espetáculo havia me vencido e tornou-se algo que me marcou. Anos mais tarde, já adulto, formado como bacharel em Artes Cênicas, assisti ao filme de Pabst e adquiri nova cumplicidade com a imagem de Louise Brooks e as artimanhas do diretor, com seus aspectos dramáticos e psicológicos e precisas noções de sombreamentos, evocando possibilidades únicas de sensações em sua película.

Hoje, ao iniciar o curso de Critica de Cinema da FAAP, com as aulas do professor Máximo, abordamos o expressionismo. Então, eu não poderia escolher outro fato a discorrer do que o cinema alemão e a fase em que se encontra guardada a “Caixa de Pandora”. O conteúdo do filme muito me seduziu, talvez pela minha formação teatral, talvez pela minha memória que relembra aquela noite de vinte anos atrás em que eu, jovem, muito jovem, tive o privilégio de obter contato com a obra de Wedekind. Só uma coisa me causa remorso – não ter evitado, que Lulu fosse assassinada por Jack, o estripador. Ela poderia estar, ainda hoje, ensinando-me estratégias de sedução, em algum café de São Paulo, onde me encontro em certas noites de insônia, e cuidaríamos com sucesso da sua preciosa caixa.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

PRA QUE TANTA VINGANÇA?

Antonio Carlos Egypto

Vamos falar um pouco do filme “Lady Vingança”, que poderia se chamar “A Senhora Vingança” ou “A Dama Vingança”, se as propostas de combate ao estrangeirismo do deputado federal Aldo Rebelo já tivessem conquistado corações e mentes. Mas não é o caso. Se até Roberto Carlos compôs uma canção chamando sua mãe de “Lady Laura”, por que o filme não pode se chamar “Lady Vingança”?

Trata-se de uma produção da Coréia do Sul, dirigida por Park Chan-Wook, em 2005, que completa a trilogia iniciada em 2002 por “Mr. Vingança” e continuada em 2003, por “Oldboy” (olha aí o estrangeirismo outra vez!).

O filme é esteticamente bonito, o diretor busca posições de câmera e ângulos que criam um clima que tende a prender o espectador diante da história. Vistas isoladamente, todas as cenas são atraentes, mesmo as mais violentas e as que enchem a tela de sangue. O filme é bastante violento, embora não cheguem a ser cenas de violência explícita, o que é um mérito, se comparado a muitos produtos hollywoodianos da atualidade. Já a gratuidade da violência aparece de forma muito evidente. O trabalho com a luz, as cores e a bela fotografia tornam o filme sedutor.

A história, porém, é banal, apesar do esforço que se faz para complicá-la e parecer mais profunda ou importante do que de fato é. É aquela manjada trama na qual uma mulher confessa um crime que não cometeu e, ao se perceber traída, arquiteta, durante os treze anos da prisão, uma vingança exemplar e definitiva para o verdadeiro criminoso. Tem também uma filha que teve de ser entregue para adoção, por causa da pena de prisão a ser cumprida pela mãe. E o anjo vira bruxa na prisão, ao encarar a maldade em estado bruto, enfrentando-a com mais maldade ainda. E por aí vai. Sempre na base do “olho por olho, dente por dente”.

Dá para ver o filme como entretenimento requintado? Até dá, se você achar que a violência das telas é mero espetáculo inócuo e que todos sabem que aquilo não existe: equivale a um videogame. O problema é a ideologia desse tal entretenimento, que não só justifica como valoriza a vingança pelas próprias mãos, recusa a lei e pretende ser tão cruel quanto o assassino, glamourizando até mesmo a tortura. É válido matar e torturar criminosos – maldosos assassinos de criancinhas – se seus pais forem os executores das ações? Pense nisso. Será que estaremos construindo algo quando a violência aparece como resposta para a própria violência, ou estaremos aprofundando a barbárie, cada vez mais?

E por que uma trilogia de filmes para esquadrinhar os diversos aspectos da vingança? Com que objetivo? Este “Lady Vingança” pretende discutir a redenção e a expiação da culpa, mas não contextualiza nada, como se a maldade fosse algo natural, sem nenhuma relação com a história da humanidade ou com a evolução do ser humano em sociedade. Pode?

O DVD de “Lady Vingança” informa, nos extras, que o diretor resolveu seguir a carreira de cineasta depois de ver “Um Corpo Que Cai”, de Hitchcock, mas sua inspiração está mais para Quentin Tarantino, que, por sinal, elogia muito Park-Chan Wook. Tem quem goste.

(Crítica Radiofônica do filme Lady Vingança)