Antonio Carlos Egypto
Nesta quinta-feira, 10 de dezembro, começa
a programação virtual e gratuita do 1º FESTIVAL DE CINEMA RUSSO, produzido pela ROSKINO –
organização promotora de conteúdos russos em todo o mundo - com apoio do
Ministério da Cultura Russa. Com oito filmes de gêneros diversos, a mostra
acontece na plataforma de streaming Spcine Play até 30 de
dezembro. Além do Brasil, a série de festivais acontece de forma online na
Austrália, México e Espanha.
ARRITMIA. Rússia, 2017.
Direção de Boris Khlebnikov. Com
Irina Gorbacheva, Alexander Yatsenko.
116 min.
“Arritmia” nos põe em
contato com a realidade diuturna dos profissionais de saúde que atuam em
serviços de emergência em hospitais e no atendimento domiciliar. São, lá como
cá, pessoas extremamente dedicadas a seus trabalhos, que colocam o atendimento
aos pacientes até à frente da própria vida pessoal. É o que acontece com Oleg e
Katia, os personagens desse drama ficcional, que enfrentam muitas dificuldades
no relacionamento de casal, principalmente, por conta da grande demanda que
provém do trabalho. Mas não só. Se Katia consegue se equilibrar e manter seu
eixo, Oleg é mais desregulado, descontrolado no seu dia-a-dia, além de abusar
do álcool. É muito dedicado ao que faz,
a ponto de jogar para o alto certas regras de ação, pensando em salvar vidas,
ou em dar um atendimento adequado ao momento.
Com isso, cria problemas. Ou
melhor, esbarra nas estruturas burocráticas do trabalho na saúde, que, muitas
vezes, são absurdas, por exemplo, querendo controlar tempo e destinação a uma
outra equipe, deixando sem atendimento, por momentos, uma pessoa que está à
morte. Por outro lado, se outro
atendimento não acontece, também pode produzir a morte de alguém.
O que fica claro é que a
estrutura do serviço não dá conta de toda a demanda e que as decisões
burocráticas e centralizadas, sem ouvir adequadamente os profissionais que
estão na linha de frente, não só não resolvem o problema como complicam a
situação.
Como se pode ver, essa
ficção tem muito de caráter documental, já que desvela um setor fundamental da
vida e o papel do Estado nele: o sistema de saúde, que atende à população. A
Rússia não fica muito bem nessa fita, não.
O casal que vive o seu
drama, se separando, se aproximando, se entendendo, se perdoando ou não e,
sobretudo, se amando, mesmo em meio ao caos, traz um profundo sentido de
humanidade e até romantismo a um mundo profissional tão complicado e
desafiador. Esse paralelo relacional nos
permite respirar um pouco, rir um pouco das situações, mesmo sabendo que aquilo
tudo que eles vivem é muito sério, não pode se reduzir a comportamentos
inadequados de um ou de outra. Seus problemas imbricam-se com o mundo em que
estão, num amálgama.
“Arritmia” é um bom filme,
bem conduzido e interpretado, numa chave realista, que contempla também
elementos absurdos, ou até surreais, como o colchão aerado que, por falta de
espaço, tem de ser colocado na cozinha para separar o casal nos momentos de
crise.
O HOMEM QUE SURPREENDEU A
TODOS. Rússia, 2018. Direção de Natasha Merkulova e Aleksey
Chupov. Com Evgeniy Tsyganov, Natalya
Kudryashova. 104 min.
Na tentativa de enganar a
morte, você corre o risco de ser morto a pauladas. Esta frase me parece, sintetiza o sentido do
filme “O Homem que Surpreendeu a Todos”, que pode ser visto como uma fábula
sombria, passada numa aldeia siberiana.
Envolve incompreensão, preconceito e intolerância quanto à questão de
gênero, mesmo diante da fragilidade humana frente à morte e mesmo partindo
daqueles com quem se vive uma relação familiar de respeito e amor.
A questão de que a mudança
choca, e parece impossível de entender, jamais poderia justificar a agressão
pura e simples, sem motivo. Se fôssemos
destruir tudo o que não somos capazes de entender e aceitar, acabaríamos com a
própria ideia de humanidade.
Se o filme me trouxe essas
questões importantes, é porque ele foi competente, na forma, para mostrar essas
coisas. A narrativa se desenvolve num
sentido, muito claro e compreensível, para mudar de rumo, nos surpreendendo,
tanto quanto as decisões do personagem Egor.
O que passa a importar agora é outra coisa e logo será outra mais, já
que nada se sucede como poderíamos esperar, realisticamente falando.
Quando tudo parecia
selado, volta a nos surpreender, restabelecendo algo que havia sido
perdido. É um belo trabalho esse,
conduzido pelo casal de diretores e roteiristas Natasha Merkulova e Aleksey
Chupov. O fato é que eles conduzem
muitíssimo bem a trama, surpreendem e inovam no tratamento da narrativa. A motivação, digamos, fantástica, fabular, se
encaixa com facilidade no contexto realista, produzindo um híbrido para lá de
interessante.
Cinema russo de caráter
autoral e muito boa qualidade, também no desempenho do elenco. Por sinal, o casal de atores protagonistas é
brilhante, ao passar sensações e sentimentos com um mínimo de recursos e
dispensando a necessidade de palavras, a maior parte do tempo. Para Evgeniy Tsyganov, o desafio é maior,
porque é ele que tem de segurar a mudança e a surpresa na figura de um
personagem que, afinal, tem duas vidas e contextos de relacionamento
completamente distintos.
“O Homem que Surpreendeu a
Todos” é um pequeno grande filme.
Excepcional na sua simplicidade de recursos que, partindo de algo
trivial, chega a uma dimensão reflexiva notável.