segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

UM BRINDE


Antonio Carlos Egypto



 

 

É hora de desejar boas festas a todos.  Mas haverá festas?  E o que há para festejar?  O fato de estarmos vivos, por certo.  Talvez não haja muito mais coisas a brindar por agora.  A esperança de uma vacina, que está bem mais próxima, e pode ser o começo de algo melhor para o momento.  De qualquer modo, é só o começo.

 

Certamente, desejo que 2021 possa ser muito melhor para todos nós do que 2020.  No entanto, como poderia ser pior?  Não sou nem capaz de imaginar.  De modo que esse desejo é de uma tal obviedade, que é dispensável.  Acontecerá. 

 

Enfim, final de ano, natal, ano novo, são rituais de marcação de tempo, que se tornam estranhos quando o tempo para.  Porque para grande parte da população 2020 não existiu, de fato.  Quem ficou sem trabalho e sem sair de casa vai se lembrar desse ano como?  E quem trabalhou de casa, no tal home office, o que achou da experiência?  Humanamente enriquecedora não creio que tenha sido.  Uma vida sem relações presenciais é um problema, não uma solução.  Quem estudou em casa, se entupiu de cursos on line e de lives, também já deve ter esgotado sua quota.

 

Vamos torcer para que 2021 sirva para nos revermos, nos encontrarmos e buscar novas saídas, que talvez ainda nem conseguimos conceber.  E possamos brindar com entusiasmo: Saúde! 

 

 

 

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

MAIS FILMES RUSSOS

Antonio Carlos Egypto


 Mais dois filmes russos atuais do 1º. Festival do Cinema Russo, que está ocorrendo on line até 30 de dezembro, com 8 filmes, na plataforma de streaming  Spcine play.  Todos podem ser assistidos gratuitamente.  Entre eles, “O Texto” e “Bolshoi”.

 

 



O TEXTO.  Rússia, 2019.  Direção de Klim Shipenko.  Com Alexander Petrov, Kristina Asmus, Ivan Yankovsky.  132 min.

 

“O Texto” é um filme de suspense muito bem produzido, com ótimo elenco e os elementos fundamentais para alcançar o público que gosta do gênero.  Tem uma narrativa complexa, cheia de elementos que se desdobram, para dar conta de uma situação tensa, que parece delirante e sem saída.

 

De fato, a trama pode ser chamada de delirante porque, para encaixar os fatos, cria situações inverossímeis, improváveis, impossíveis, tão enlouquecidas quanto as ações do personagem central Ilya, ao sair da prisão, onde viveu por 7 anos, mesmo sendo inocente.  A vingança contra quem armou para ele é um clichê que se combinará com eventos cheios de tragédia e de coincidências difíceis de aceitar do modo como são mostrados.  Tudo bem.  Cinema também é fantasia e aqui se explora ao máximo o smartphone como fonte de acesso de toda uma vida num momento decisivo de sua existência.  A ponto de possibilitar que se realize, por esse meio, assumir a identidade do outro.

 

O que acontece a partir daí também é fantasioso demais e abusa do domínio das possibilidades por um personagem sem os recursos pessoais e de controle necessários para tanto.  Enfim, é preciso embarcar na história, sem muita crítica, para poder se divertir, viver plenamente o suspense.  O clima do filme de Klim Shipenko é muito bom nesse sentido.  Consegue um envolvimento permanente do espectador, não no sentido da identificação com a figura do protagonista, mas da aflição pela situação que ele vive, em que ele mesmo se coloca o tempo todo.  Percebe-se que não pode dar certo, mas angustia ter de viver com ele tudo aquilo.  Essa aflição se prolonga e cada novo ato acrescenta elementos mais preocupantes ainda.  No que isso tudo pode dar?  É o que nos segura, nessa abordagem de suspense moderno, que termina por colocar o personagem num interessantíssimo dilema moral, que redime o espetáculo ao seu final.

 

“O Texto” é um filme que segue as indicações atuais do gênero suspense com competência, mas com muito exagero também. Tem boas possibilidades comerciais.  É o cinema russo atual disputando mercado com os cinemas norte-americano e europeu, seguindo os moldes propostos por eles.


 


 

BOLSHOI.  Rússia, 2016.  Direção e roteiro de Valery Todorovsky.  Com Margarita Simonova, Anna Isaeva, Alisa Fleindilich.  132 min.

 

O título já indica que este drama vai explorar um dos grandes ícones da cultura russa: o balé Bolshoi.  Por meio de uma bela produção, o filme nos põe em contato com esse mundo mágico da dança clássica, potencializado por essa referência mundial.

 

Yulia, a dançarina, é descoberta por um ex-bailarino do Bolshoi, que percebe o seu grande potencial.  E aí começa o já esperado trabalho de lapidação do talento.  Esse processo acaba se mostrando mais complicado e difícil do que se poderia esperar.  Com resultados realmente duvidosos.

 

O temperamento da bailarina, que busca sua autoafirmação, pode ser um complicador.  A senilidade da sua protetora, com alguns esquecimentos fatais, pode pôr tudo fora de controle.  Além do mais, a competição evidentemente entra no jogo, como seria de se esperar.

 

A narrativa explora a complexidade desse mundo, sem apelar para a habitual fantasia da bailarina triunfante.  Se há triunfo, ele passa, não só pelo trabalho dedicado, que às vezes pode ser mesmo excessivo e indesejável, mas também pelos interesses envolvidos, pelas relações pessoais e de poder que podem surpreender, entre outras coisas.  O glamour existe, mas cobra um preço alto que nem todos se dispõem a pagar.  Portanto, no caminho talentos se perdem.  A arte não pode ser uma missão que se coloque acima de tudo, por mais importante que seja.

 

Esse enfoque do filme é bastante interessante, porque, ao mesmo tempo em que oferece espetáculo, induz à reflexão.  A qualidade da produção não deixa margem a dúvidas quanto ao interesse em construir e solidificar uma indústria cinematográfica de peso, na Rússia.

 

Os grandes talentos da história do cinema russo e soviético têm de dar lugar a novos realizadores, como o competente Valery Todorovsky, e a produções esmeradas.  Não é possível viver só do passado, por mais brilhante que tenha sido.  E, claro, Serguei Eisenstein, Andrei Tarkóvsky, Alecksandr Sokurov e Dziga Vertov, são gênios, exceções, não aparecem a toda hora.




quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

2 RUSSOS DO FESTIVAL

Antonio Carlos Egypto

 

Nesta quinta-feira, 10 de dezembro, começa a programação virtual e  gratuita do 1º FESTIVAL DE CINEMA RUSSO, produzido pela ROSKINO – organização promotora de conteúdos russos em todo o mundo - com apoio do Ministério da Cultura Russa. Com oito filmes de gêneros diversos, a mostra acontece na plataforma de streaming Spcine Play até 30 de dezembro. Além do Brasil, a série de festivais acontece de forma online na Austrália, México e Espanha. 

 

 



ARRITMIA.  Rússia, 2017.  Direção de Boris Khlebnikov.  Com Irina Gorbacheva, Alexander Yatsenko.  116 min.

 

“Arritmia” nos põe em contato com a realidade diuturna dos profissionais de saúde que atuam em serviços de emergência em hospitais e no atendimento domiciliar. São, lá como cá, pessoas extremamente dedicadas a seus trabalhos, que colocam o atendimento aos pacientes até à frente da própria vida pessoal. É o que acontece com Oleg e Katia, os personagens desse drama ficcional, que enfrentam muitas dificuldades no relacionamento de casal, principalmente, por conta da grande demanda que provém do trabalho.  Mas não só.  Se Katia consegue se equilibrar e manter seu eixo, Oleg é mais desregulado, descontrolado no seu dia-a-dia, além de abusar do álcool.  É muito dedicado ao que faz, a ponto de jogar para o alto certas regras de ação, pensando em salvar vidas, ou em dar um atendimento adequado ao momento.  Com isso, cria problemas.  Ou melhor, esbarra nas estruturas burocráticas do trabalho na saúde, que, muitas vezes, são absurdas, por exemplo, querendo controlar tempo e destinação a uma outra equipe, deixando sem atendimento, por momentos, uma pessoa que está à morte.  Por outro lado, se outro atendimento não acontece, também pode produzir a morte de alguém.

 

O que fica claro é que a estrutura do serviço não dá conta de toda a demanda e que as decisões burocráticas e centralizadas, sem ouvir adequadamente os profissionais que estão na linha de frente, não só não resolvem o problema como complicam a situação.

 

Como se pode ver, essa ficção tem muito de caráter documental, já que desvela um setor fundamental da vida e o papel do Estado nele: o sistema de saúde, que atende à população. A Rússia não fica muito bem nessa fita, não.

 

O casal que vive o seu drama, se separando, se aproximando, se entendendo, se perdoando ou não e, sobretudo, se amando, mesmo em meio ao caos, traz um profundo sentido de humanidade e até romantismo a um mundo profissional tão complicado e desafiador.  Esse paralelo relacional nos permite respirar um pouco, rir um pouco das situações, mesmo sabendo que aquilo tudo que eles vivem é muito sério, não pode se reduzir a comportamentos inadequados de um ou de outra. Seus problemas imbricam-se com o mundo em que estão, num amálgama.

 

“Arritmia” é um bom filme, bem conduzido e interpretado, numa chave realista, que contempla também elementos absurdos, ou até surreais, como o colchão aerado que, por falta de espaço, tem de ser colocado na cozinha para separar o casal nos momentos de crise.

 




O HOMEM QUE SURPREENDEU A TODOS.  Rússia, 2018.  Direção de Natasha Merkulova e Aleksey Chupov.  Com Evgeniy Tsyganov, Natalya Kudryashova.  104 min.

 

Na tentativa de enganar a morte, você corre o risco de ser morto a pauladas.  Esta frase me parece, sintetiza o sentido do filme “O Homem que Surpreendeu a Todos”, que pode ser visto como uma fábula sombria, passada numa aldeia siberiana.  Envolve incompreensão, preconceito e intolerância quanto à questão de gênero, mesmo diante da fragilidade humana frente à morte e mesmo partindo daqueles com quem se vive uma relação familiar de respeito e amor.

 

A questão de que a mudança choca, e parece impossível de entender, jamais poderia justificar a agressão pura e simples, sem motivo.  Se fôssemos destruir tudo o que não somos capazes de entender e aceitar, acabaríamos com a própria ideia de humanidade.

 

Se o filme me trouxe essas questões importantes, é porque ele foi competente, na forma, para mostrar essas coisas.  A narrativa se desenvolve num sentido, muito claro e compreensível, para mudar de rumo, nos surpreendendo, tanto quanto as decisões do personagem Egor.  O que passa a importar agora é outra coisa e logo será outra mais, já que nada se sucede como poderíamos esperar, realisticamente falando.

 

Quando tudo parecia selado, volta a nos surpreender, restabelecendo algo que havia sido perdido.  É um belo trabalho esse, conduzido pelo casal de diretores e roteiristas Natasha Merkulova e Aleksey Chupov.  O fato é que eles conduzem muitíssimo bem a trama, surpreendem e inovam no tratamento da narrativa.  A motivação, digamos, fantástica, fabular, se encaixa com facilidade no contexto realista, produzindo um híbrido para lá de interessante.

 

Cinema russo de caráter autoral e muito boa qualidade, também no desempenho do elenco.  Por sinal, o casal de atores protagonistas é brilhante, ao passar sensações e sentimentos com um mínimo de recursos e dispensando a necessidade de palavras, a maior parte do tempo.  Para Evgeniy Tsyganov, o desafio é maior, porque é ele que tem de segurar a mudança e a surpresa na figura de um personagem que, afinal, tem duas vidas e contextos de relacionamento completamente distintos.

 

“O Homem que Surpreendeu a Todos” é um pequeno grande filme.  Excepcional na sua simplicidade de recursos que, partindo de algo trivial, chega a uma dimensão reflexiva notável.




terça-feira, 8 de dezembro de 2020

FESTIVAIS EM CASA

Antonio Carlos Egypto

 

Neste final de ano é necessário ficar em casa, evitar viagens que não sejam indispensáveis, fazer encontros virtuais ou com muito pouca gente reunida.  É bom que haja boas opções cinematográficas, com talento e arte, sem precisar sair de casa, não é?  Pois bem, há ótimas opções.  Festivais acontecendo em plataformas digitais, por streaming.  E o que é melhor, gratuitamente.

 



Comecemos pelo 15º. Festival do Cinema Latino-Americano de São Paulo 2020, que acontece de 09 a 16 de dezembro, nas plataformas Spcine play, Sesc digital e Looke.  Filmes recentes do Brasil e dos países da América Latina, que devem nos reservar boas surpresas.  Trata-se de uma produção rica e variada culturalmente, que nos diz respeito de perto e traz reflexões sociais importantes.  Os filmes não são os mesmos nas três plataformas, embora um ou outro possam ser repetidos.

 

Aproveito para lembrar que o Spcine play tem muitos outros filmes importantes e disponíveis gratuitamente.  Por exemplo, clássicos brasileiros e internacionais e produções que fizeram parte de outras mostras, inclusive da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.  Entre eles, filmes de Manoel de Oliveira que nunca saíram em DVD no Brasil. Enfim, é só entrar, fazer login com o e-mail, uma senha, e usufruir de tudo isso e do Festival Latino, que já está começando.

 

O Sesc digital é outra dica indispensável.  Tudo sempre gratuito, programação de qualidade, como sempre foi a do  Cinesesc.  Títulos renovados semanalmente, agora o Festival Latino e ainda mais: de 10 a 23 de dezembro, entra lá também a 21ª. Retrospectiva do Cinema Brasileiro, que tradicionalmente aporta no Cinesesc, e está on line.  É só procurar por Sesc digital, cinema e vídeo, se inscrever com login e senha e aproveitar tudo o que está lá.  E é muito coisa.  sescsp.org.br/cinemaemcasa é uma forma de entrar.  Ou #emcasacomsesc.

 



Tem mais, está chegando o 1º Festival de Cinema Russo, com uma seleção de filmes recentes, de 2017 para cá, promovido pelo Ministério da Cultura da Rússia e pela Roskino.  Os 8 filmes selecionados poderão ser vistos de 10 a 30 de dezembro, na plataforma Spcine play, gratuitamente, até o limite de visualizações que os promotores estabeleceram.  Vi 5 filmes dessa Mostra Russa, que vou comentar com vocês nas próximas postagens do cinema com recheio.  Já adianto que valem bastante a pena.  Tem uma boa variedade e muito boa qualidade de produção.

 

Interessante notar que ainda está em andamento uma outra famosa Mostra de filmes russos e soviéticos clássicos, em sua 7ª. edição, promovida pela Mosfilm e o CPC da UMES, que também comercializa grande parte desses filmes em DVD.  Ou seja, temos à disposição filmes famosos de grandes diretores, russos e soviéticos numa Mostra que ainda segue e já entra em cena a produção russa atual.  Para conferir, CPC-UMES filmes no Youtube e www.cpcumesfilmes.org.br.

 

Todas essas Mostras foram pensadas e aconteciam nos cinemas.  Em 2020, foram parar no sistema on line.  O 1º. Festival de Cinema Russo nem teve chance de experimentar a edição nos cinemas.  Teve que sair pela primeira vez via Internet.  Sinal dos tempos.  Já que tenha de ser assim, que seja.  E que possamos aproveitar o máximo que pudermos, explorando esse recurso e nos preservando, que a vida não está fácil.

 

 

domingo, 6 de dezembro de 2020

TODOS OS MORTOS

Antonio Carlos Egypto

 



TODOS OS MORTOS.  Brasil, 2019. Direção de Caetano Gotardo e Marco Dutra.  Com Mawusi Tulani, Clarissa Kiste, Carolina Bianchi, Thomás Aquino, Thaia Perez e o menino Agyei Augusto.  120 min.

 

 “Todos os Mortos”, o filme dirigido por Caetano Gotardo e Marco Dutra nos leva à São Paulo do final do século XIX (1899-1900), no período logo após o fim do regime escravista no Brasil, país que foi o último do Ocidente a aboli-lo.  Isso, evidentemente, tem um custo, que pagamos até hoje, na forma de um racismo estrutural, tão odiento quanto negado.  A casa grande e a senzala estão entre nós, atavicamente, mal encobertas por uma suposta democracia racial.

 

Pois bem, o filme focaliza, por meio das mulheres, uma aristocracia que se percebe decadente, com o fim do modelo econômico da escravidão.  Os símbolos da ruína são evidenciados pela família branca dos Soares, por meio de doenças mentais (demência precoce, histeria, hipocondria, loucuras diversas) e desagregação familiar.  As mulheres na cidade, o pai, na fazenda.  Há uma falta de perspectivas e uma tentativa de se agarrar a privilégios que já não estão disponíveis.

 



Enquanto isso, a família negra dos Nascimento, escravizados por muito tempo, tenta juntar os cacos, reconstruir uma história, encontrando um lugar para viver com decência, um modo de sobreviver pelo trabalho livre e reencontrar o pai que está distante, veio para São Paulo e não deu mais notícias. A verdade é que não há lugar para eles na sociedade paulistana.  São excluídos, largados à própria sorte.

 

O canto da sereia vem da casa grande, buscando reavê-los, de alguma forma.  O menino, que nasceu livre, até se encanta com o ambiente e quer ficar muito tempo por lá, sem perceber que sua presença traz de volta a subserviência escravista.

 

Há também o confronto de crenças, cantos, danças, tradicionais, de diferentes origens africanas, discriminadas, ao mesmo tempo que domesticadas, postas a serviço das classes dominantes e do catolicismo que as representa, por meio da freira que pertence à família Soares. O filme abre, lindamente, com uma canção em dialeto africano, entoada por Alaíde Costa, em participação especial.

 



Mergulhar nesse mundo é visitar as origens dos problemas intensos que vivemos hoje, em busca de uma democracia que só será plenamente possível se, finalmente, formos capazes de enfrentar o racismo que produz assassinatos como o de João Alberto, no Carrefour de Porto Alegre, e põe em risco toda a população jovem, preta e parda, que vive majoritariamente na periferia das grandes cidades como São Paulo.

 

“Todos os Mortos”, os fantasmas da escravidão, estão à solta no competente trabalho de Gotardo e Dutra que, apoiados num elenco maravilhoso de atrizes e atores que a gente percebe bem empenhados no projeto, lança luz a uma história, que o próprio filme de época nos remete aos dias de hoje.


(crédito das fotos Hélène Louvart)