sábado, 28 de novembro de 2020

O ORFANATO

Antonio Carlos Egypto

 



O ORFANATO (Parwareshghah).  Afeganistão, 2019.  Direção de Shahrbanoo Sadat.    Com: Qodratollah Qadiri, Sediqa Rasuli, Masihullah Feraji, Anwar Hashimi.  90 min.

 

 

São tão raras as possibilidades de ver um filme realizado no Afeganistão que, quando elas aparecem, vale a pena conferir.  É o caso agora de “O Orfanato”, que estará disponível por streaming (Now, Vivo Play), a partir de 03 de dezembro.  Uma jovem mulher cineasta, Shahrbanoo Sadat, dirige uma história baseada num diário não publicado de Anwar Hashimi, um dos atores do filme, que faz o papel de supervisor do orfanato.

 

A ação se passa num orfanato soviético no Afeganistão, na época de Gorbatchev no poder na URSS.  O local recolhe meninos em situação de rua, como Qodrat (Qodratollah Qadiri), aos 15 anos, que perambula pelas ruas de Cabul, ganhando algum dinheiro como cambista de ingressos de cinema esgotados.  Aí já se vê o apelo do cinema, que entrará na narrativa como fantasia.

 

O orfanato oferece boas condições de moradia, alimentação e estudo aos meninos, tanto que os conflitos acabam sendo as lutas de poder entre eles e o domínio autoritário de um líder mais velho da turma.  Sem ele, no entanto, a camaradagem consegue imperar entre os demais.  Quando ele deixa o orfanato, a gente fica pensando: e agora, o que restará do filme?

 

A questão proposta por "O Orfanato” é que esse mundo em razoável equilíbrio desmoronará com a queda do governo e a chegada da milícia muçulmana armada ao poder.

 



Do jeito em que isso é apresentado fica esquemático, os soviéticos eram bons, o Estado Islâmico que se instalou, péssimo.  Por exemplo, alguns meninos vão para um acampamento de férias em Moscou, onde são bem recebidos, ensinados e estimulados a jogar xadrez e se divertem.  O braço armado muçulmano já chega ao orfanato atirando no diretor, sem mais, nem menos.  Não há nuances.  Ficam o bem e o mal mostrados de forma absoluta.

 

A gente custa a crer que a barbárie exista mesmo, desse modo, sem meias medidas.  Mas que ela existe, existe.  Então, pode ter sido mais ou menos assim mesmo, conforme o relato dos diários filmados.  Enfim, a coisa foi sentida e vivida assim pelo escritor.  Esse escritor/ator compõe o personagem do diretor do orfanato, que será atacado, como um bom educador, equilibrado e justo.

 

O que o filme acrescenta de interessante a tudo isso é a fantasia.  Qodrat é obcecado pelo cinema indiano de ação, com lutas e sopapos, e o musical, com cantos e danças.  Enquanto ele vive a realidade, a sua imaginação encontra soluções em cenas típicas de filmes de Bollywood, a Hollywood da Índia, em Bombaim (Mumbai).  É o cinema colorindo a vida de um menino sem família, em situação de rua, acolhido pelo orfanato que, como todo mundo, tem de lidar com frustrações, decepções e perdas.  Vale-se do cinema para suportar tudo isso.

 

 

terça-feira, 24 de novembro de 2020

VALENTINA

Antonio Carlos Egypto

 



VALENTINA, Brasil. 2020.  Direção de Cássio Pereira dos Santos.  Com Thiessa Woinbackk, Guta Stresser, Rômulo Braga, Letícia Franco, Ronaldo Bonafrio.  95 min.

 

 O filme brasileiro “Valentina”, de Cássio Pereira dos Santos, em seu primeiro longa-metragem, vem recebendo prêmios importantes em festivais.  Na 44ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo venceu o prêmio do público de melhor ficção nacional, além de receber menção honrosa pelo júri internacional para o desempenho da atriz principal, Thiessa Woinbackk.  Ela recebeu prêmio pela interpretação também no festival Outfest, de Los Angeles.  O filme foi, ainda, fartamente premiado no recém-encerrado Festival Mix Brasil 2020, pela interpretação da atriz, pelo melhor roteiro, melhor longa, pelo júri popular, e o prêmio Coelho de Ouro de melhor longa.  Grande reconhecimento para um trabalho que procurou mostrar o drama da identidade na vida de uma pessoa transexual.

 

A narrativa, bastante realista, enfatiza o quanto a identidade legal importa para que transexuais, como Valentina, possam ser quem são e serem reconhecidos pelos outros.  E quanto esse processo pode ser muito custoso, sofrido, extremamente dolorido.  Alguém que se sente mulher, se apresenta como mulher, é mulher, não pode mostrar um documento de identidade do sexo masculino, com nome masculino.  É possível corrigir isso, mas quando se tem, como ela, 17 anos, exige toda uma burocracia e a ativa participação dos pais.  Sem isso resolvido, como frequentar a escola?  Com que nome, registro oficial, diploma, etc.?  Diploma é modo de dizer, já que, conforme o filme nos informa ao final, 82% das transexuais abandonam a escola.  A documentação é o primeiro e relevante problema, o preconceito, a agressão inclusive física, o desrespeito e a humilhação completam o quadro desse absenteísmo. 

 

Sem educação formal, o próximo passo pode ser a pobreza e a exclusão na vida em sociedade.  É preciso impedir que o processo prossiga.  Uma família acolhedora poderia ajudar muito.  No caso de “Valentina”, a mãe cumpre muito bem esse papel.  Só que o casal está separado, o pai sumiu e até mudou de celular sem comunicar-lhes.  Poderá ser encontrado?  Pelo menos, para assinar os papéis? 

 

A escola, atualmente, no Brasil, é obrigada legalmente a aceitar o nome social em lugar do de nascimento, nesse caso.  A reação de uma comunidade pequena e religiosa, quanto a isso, já é outra história. A propósito, o enredo leva Valentina e sua mãe a sair da cidade grande e ir para uma localidade pequena, exatamente para tentar fugir das consequências decorrentes da condição da transexualidade que já se tornavam insuportáveis.  Aquela conhecida tentativa de recomeçar tudo do zero.

 



Onde há desinformação e preconceito também pode haver solidariedade.  Até porque, por trás das aparências, a vida segue com sua diversidade, tanto nos grandes como nos pequenos centros populacionais.  Há de tudo em todos os lugares, desde sempre. 

 

As locações de “Valentina” foram a pequena Estrela do Sul e Uberlândia, nas Minas Gerais.  O diretor e roteirista do filme, Cássio Pereira dos Santos, é da região.  Nasceu em Patos de Minas e estudou cinema em Brasília.  Começa muito bem, com conhecimento de causa.

 

É fácil entender por que o filme “Valentina” vem conquistando o público.  A personagem traz uma novidade.  Situações e problemas que o espectador por vezes desconhece totalmente.  Ou avalia de modo muito diverso.  Às vezes, até jocoso, sem conseguir uma empatia, um envolvimento com a situação da transexual.  Na medida em que os fatos vão se desenrolando, a identificação vai ocorrendo, ajudada pelo excelente desempenho da atriz tão merecidamente premiada e de nome difícil, Thiessa Woinbackk.  Que, além de atriz, é youtuber de sucesso.  Assim me informaram, pelo menos.  A atuação como atriz é ótima e tem muito peso no desenvolvimento da narrativa.  Mas todo o elenco é muito bom também.

 

A outra possível explicação para o interesse do público liga-se à atualidade do tema.  A quebra de um tabu que aparece, com certa surpresa, nas candidatas trans que lograram se eleger vereadoras, pelo Brasil afora.  Já houve até prefeita trans, se bem me lembro, mas era uma completa exceção.  Agora, o número parece ser representativo, indicando uma mudança importante.  Outros debates, livros, peças, filmes, estão aparecendo sobre o tema.  Minha última postagem, antes desta, no cinema com recheio, incluiu o filme “Maria Luíza”, documentário sobre a primeira trans nas Forças Armadas brasileiras.  A transexualidade vai conquistando o seu espaço e colocando as questões pertinentes à sua condição de vida para a reflexão da sociedade.  Muito justo e oportuno.

 


                                                                                                                   

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

DOCS BRASILIENSES

Antonio Carlos Egypto

 



Dentro do cabo da Aeronáutica José Carlos sempre houve a Maria Luíza.  Desde criança, muito antes de que a paixão por aviões a levasse a optar pela carreira militar.  A primeira transexual da Força Aérea acabou conquistando, a duras penas, sua festejada carteira de identidade castanha.  Depois de sofrer muito preconceito na vida e de ter amargado as consequências de uma rejeição de sua identidade feminina que a impediu de ser ela mesma.  Pela via da ciência, com tratamentos para reforçar a identidade masculina que recebeu da sociedade e aplacar suas características femininas.  A começar por uma raspagem das cordas vocais para engrossar a voz.  E também, claro, pela via moral que, no limite, a impediu de usar o fardamento feminino da Aeronáutica e a aposentar por invalidez depois de 22 anos de serviços impecáveis, sem qualquer mancha ou questionamento em seu desempenho.  Com um salário abaixo do merecido.

 

O documentário do diretor brasiliense Marcelo Diaz, MARIA LUÍZA, primeiro longa do cineasta, dedica-se a nos apresentar essa história contada pela própria Maria Luíza e por outras pessoas que com ela conviveram ou que procuram explicar a transexualidade.  É um tema tabu até hoje, tanto que ninguém na hierarquia militar da Aeronáutica quis prestar qualquer depoimento.  Existe no documento, mas ainda não existe no reconhecimento da realidade.

 

Um tema como esse, que implica rejeição, sofrimento, negação da própria identidade, julgamento moral com base na ignorância e no preconceito, inevitavelmente resvala por emoções fortes.  Não por acaso, o documentário nos envolve e emociona, apesar de Maria Luíza ser tímida, econômica nos relatos e relutante na revelação da opressão que sofreu.  Seu catolicismo a faz capaz de perdoar e entender a ignorância dos pais, não os culpando por nada do que viveu.

 

Faz-nos lembrar da reação espontânea do dr. Dráuzio Varella naquele episódio do abraço à transexual abandonada na cadeia, exibido pela TV e Internet, que virou polêmica.  Naquele caso havia um crime, mas houve a solidariedade humana de uma pessoa da qualidade do médico, que é muito admirado por seu trabalho e sua capacidade de comunicação como profissional e como escritor.

No caso de Maria Luíza, não há crime algum, pelo contrário, há uma dedicação impressionante à Força Aérea Brasileira, nunca contestada.  Ainda assim, o reconhecimento não acontece.  O preconceito fala mais alto.

 

MARIA LUÍZA, o filme sobre a primeira mulher trans das Forças Armadas Brasileiras merece ser visto e divulgado.  Não é possível que continuemos a manter tabu daquilo que mexe com a gente, que a gente não entende, que nos incomoda.  Até quando vamos fingir que a diversidade humana não existe?  Bem, notícias de candidatas trans sendo eleitas neste 2020 pelo Brasil  são alvissareiras. 80 minutos.

 




Documentário CANDANGO – MEMÓRIAS DO FESTIVAL, do cineasta brasiliense Lino Meireles, em seu primeiro longa, realiza um importante trabalho histórico em relação ao cinema brasileiro, num período de 50 anos.  O filme reconstrói, por meio da chamada história oral, o que aconteceu no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o maior evento relacionado ao nosso cinema, ao longo de todo esse período.

 

Ouviu todo o pessoal envolvido, atores, atrizes, diretores, técnicos, organizadores, críticos e jornalistas, relembrando vitórias, derrotas, solidariedade, competições, brigas e longas discussões, costurando a história em que se destacam a luta cultural contra a censura e a ditadura militar, que já estava instalada quando o Festival de Brasília começou, em 1965.

 

Sabemos que a memória é seletiva, coisas são esquecidas, outras, superdimensionadas ou distorcidas, elas vêm recheadas de afetos, que vão do eufórico ao incômodo.  É importante resgatá-las, revisitá-las.  É o que o documentário faz, nos pondo em contato com as memórias de todas as grandes figuras do cinema brasileiro, que por lá passaram.  Para quem gosta de cinema, e conhece, acompanha o cinema nacional, o filme flui, delicia, encanta.  Para quem está menos ligado, dá para perceber como é difícil fazer cinema no Brasil, os vai-e-vens das leis, das ações governamentais, do abandono à própria sorte, da perseguição política e da censura, dos interesses comerciais que inviabilizam projetos e até do próprio preconceito do público.

 

Quando se percorre todo esse caminho árduo, fica difícil simplesmente criticar ou comparar nosso cinema ao que se faz em outros lugares em que há muito mais apoio e condições econômicas bem diversas.  É forçoso reconhecer a qualidade do cinema brasileiro, sua diversidade e criatividade, inclusive nos momentos mais tensos e desalentadores.

 

As obras maiúsculas premiadas ao longo desses 50 anos no Festival de Brasília deixam muito claras a força e a importância do nosso cinema.  O cinema que mostra a nossa cara, o nosso ambiente, a nossa cultura, as nossas preocupações, os nossos problemas, o nosso jeito de amar.  119 minutos.




 

segunda-feira, 9 de novembro de 2020

MEU BALANÇO DA #44 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto

 

Como já afirmei aqui, mais de uma vez, sempre fui um frequentador da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que foi para mim uma verdadeira escola de cinema.  Fiz isso por mais de 40 anos, todos os anos, vendo o máximo de filmes que podia.  Já há um bom tempo, minha média tem girado em torno de 50 ou 60 filmes por edição.

 

Aí veio a pandemia, o fechamento dos cinemas, mas havia a esperança de que até outubro fosse possível realizar a Mostra.  Logo se viu que não e, como tudo tem que ser providenciado com muita antecedência, Renata de Almeida e a equipe da Mostra resolveram realizá-la pela primeira vez on line.  De um lado, fiquei muito feliz.  Apesar de tudo, a Mostra resistia e aconteceria.  De outro, temia pelos problemas.  Nunca me entusiasmei por streaming, ver cinema em casa sempre foi por meio do DVD, geralmente para conhecer filmes que já não estavam disponíveis ou para rever filmes conhecidos e importantes.  Como fazer com as oscilações de Internet, o travamento na hora de assistir?  Daria para ver quantos filmes dessa forma? E como avaliá-los assim?  Sem falar nas famosas interrupções domésticas.




 

O que não tem remédio remediado está.  Não é assim que diz o ditado?  Pois é, se é a única maneira de ver os filmes da Mostra, vamos a ela.  Até porque de nada adiantaria se tivesse sido mantido o esquema presencial.  Mesmo com os cinemas abertos, eu não teria coragem de passar horas e horas nas salas, enfrentando aglomerações, ar condicionado e tudo o mais.  Iria simplesmente saltar esse ano, pela primeira vez.

 

A frustração foi grande, porque a Mostra é uma oportunidade de conviver com pessoas, que a gente só de vez em quando, alguns só nessa época.  De rever os conhecidos cinéfilos de sempre.  De conversar sobre filmes com desconhecidos. A troca de informações, de ideias é importante. E a falta que faz a imprescindível tela grande e o som da sala de cinema.

 

Bem, encarei a nova proposta e, para minha surpresa, deu tudo muito certo.  O esquema montado pela 44ª. Mostra foi muito competente e profissional.  Os filmes entravam e rodavam muito bem.  As orientações recebidas funcionaram.  Foram raros, diminutos, os problemas.  Acabei me acostumando a ver os filmes na tela do notebook, e gostando.

 

Tanto é verdade, que acabei de contar o que consegui ver desde a semana anterior à Mostra, com cabines virtuais, até a repescagem e foram 50 filmes, exatamente.  Ou seja, ficou na média do que eu costumava assistir nos cinemas.  Não é a mesma coisa, mas não posso negar que gostei da experiência.

 

A 44ª. Mostra manteve a qualidade, mesmo com pouco mais da metade dos títulos usualmente exibidos.  Foram 198 filmes, quando outras edições chegaram a alcançar perto de 400 títulos.  Reduziu-se o cardápio para escolha.  Considerando, porém, que, quando a oferta é muita a gente se perde, acho que perdemos pouco.  Não pretendo trocar a sala de cinema pelo cinema em casa e espero que a próxima edição da Mostra possa se realizar no esquema habitual.

 

No entanto, se houve perdas, também houve ganhos.  Acredito que muitas pessoas puderam conhecer um pouco da Mostra e possam ter descoberto a sua importância.  Os que se acomodam em casa desta vez puderam conhecer um cinema menos comercial, mais elaborado, em sua produção mais atual.  E quem está fora de São Paulo não precisou vir até aqui ou deslocar-se para acompanhar a Mostra.  O Brasil inteiro pôde usufruir da Mostra on line.  Já vi gente reivindicando a manutenção do esquema virtual nas próximas edições, visando a alcançar uma abrangência nacional.

 

Viajar atualmente também é um problema e envolve riscos.  Tudo está mudando, se ajustando, até que possamos encontrar um modus vivendi  com o novo coronavírus.  A vacina vai ajudar, não vai resolver tudo.  Depende de nós o que faremos no novo estilo de vida.  Cultura para todos, sem aglomeração?  Difícil, não?  A cultura virtual é uma solução provisória, pois nada pode substituir o contato humano, na arte e na vida. Quem viver, verá.

 




FILMES QUE LEVARAM PRÊMIOS NESSA MOSTRA

 

Júri Internacional – Novos Diretores

Ficção: EIYMOFE - ESSE É O MEU DESEJO (Nigéria)

Documentário: 17 QUADRAS (Estados Unidos)

Menção Honrosa ao documentário brasileiro: CHICO REI ENTRE NÓS e à atriz Thiessa Woinbackk, de VALENTINA.

 

Prêmio do Público

Ficção internacional: NÃO HÁ MAL ALGUM (Irã)

Ficção nacional: VALENTINA

Documentário internacional: WELCOME TO CHECHNYA (Estados Unidos)

Documentário nacional: CHICO REI ENTRE NÓS

 

Prêmio da Crítica

Melhor filme estrangeiro: MOSQUITO (Portugal)

Melhor filme nacional: GLAUBER, CLARO

 

Prêmio Abraccine para diretores brasileiros estreantes

ÊXTASE, de Moara Passoni

@mostrasp




sexta-feira, 6 de novembro de 2020

ÚLTIMAS DICAS DA #44 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto

 

A 44ª. Mostra já acabou, oficialmente, mas a plataforma Mostra Play no www.mostra.org, ainda mantém um bom número de filmes que podem ser alugados até domingo.  Há coisas muito boas por lá.

 

CRIANÇAS DO SOL, do Irã, do talentoso diretor Majid Majidi (o mesmo de “Filhos do Paraíso”, lembram-se?) mostra um trabalho com forte sentido humanitário, ao abordar uma escola que atende meninos em situação de rua, com apoio financeiro da comunidade.  A partir da questão do abandono familiar e do indesejável trabalho infantil, o diretor constrói uma narrativa, para lá de envolvente, em torno de um tesouro que está enterrado sob a escola.  O ator mirim Rouhollah Zamani, que faz o personagem Ali, de 12 anos, tem um desempenho que vale o filme e não por acaso foi premiado em Veneza.  99 minutos.

 


ISSO NÃO É UM ENTERRO...

ISSO NÃO É UM ENTERRO, É UMA RESSUREIÇÃO é um filme que já chama a atenção pela origem.  É do Lesoto e África do Sul.  Direção: Lemohang Jeremiah Mosese.  Tem uma personagem fantástica chamada Mantoa, de 80 anos, que vive em função do retorno do filho que trabalha nas minas e depois vai se dedicar a pensar na sua morte e no seu enterro.  A construção de uma barragem, porém, que vai inundar toda a vila e deixar os cemitérios e os mortos queridos enterrados sob as águas, mobiliza Mantoa a lutar para preservar o patrimônio espiritual da comunidade.  O filme é visualmente bem bonito, com efeitos sofisticados e um jogo de luzes e cores fortes muito atraente.  Vale a pena ver.  120 minutos.

 

Além desses belos filmes, eu gostei também de um da Mongólia, AS VEIAS DO MUNDO, da diretora Byambasurem Davaa, focalizado num menino de 11 anos, cuidador de ovelhas nas estepes, com um talento artístico inesperado e uma capacidade de luta herdada do pai, enfrentando mineradoras que exploram a região.  Imagens bonitas, locações atraentes e uma boa história convidam a ver o filme.  96 minutos.

 

Para quem curte o cinema como assunto, dois filmes brasileiros ótimos.  GLAUBER, CLARO, um documentário de César Meneghetti sobre Glauber Rocha (1939-1981), entre 1970 e 1976, em Roma, produzindo o filme “Claro”.  Muito interessante e revelador sobre aquele nosso grande talento cinematográfico.  80 minutos.

 

GLAUBER, CLARO


NAS ASAS DA PANAM nos traz um trabalho autobiográfico de Sílvio Tendler, documentarista de mão cheia, que conta por meio de depoimentos, conversas e, sobretudo, fotos e filmes, sua rica história engajada nas ideias socialistas, o colapso do socialismo real, o amor à fotografia e ao cinema como recurso de expressão.  Também trata de sua família, de seus muitos amores e amigos e chega até a pandemia (depois dos créditos finais).  Muito bom.  112 minutos.

@mostrasp




terça-feira, 3 de novembro de 2020

PORTUGUESES NA #44 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto

 

 


O novo filme do cineasta português João Botelho,
O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, é baseado na obra literária homônima de José Saramago (1922-2010).  É um dos melhores filmes desta 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.  Por quê?  Traz uma narrativa ficcional, bastante original, concebida por Saramago, que põe em contato criador e criatura.  Segundo essa narrativa, Fernando Pessoa, já morto em 1935, se encontra com seu heterônimo, o médico Ricardo Reis, ainda vivo, em vias de partir no ano seguinte, 1936.  O encontro fantástico de ambos rende conversas e versos de muita beleza poética, além de muitos questionamentos sobre o tempo em que estão e o mundo daquele momento.  Era o tempo de Mussolini, na Itália, Hitler, na Alemanha, a eminência da guerra civil espanhola que traria o regime de Franco e em Portugal, a ditadura de Antônio Oliveira Salazar (1889-1970), o Estado Novo português, que vigorou de 1926 a 1974.  Ou seja, tempos de ascensão e domínio do fascismo.  O filme nos leva aos anos 1930, por meio de uma mise-en-scène meticulosamente trabalhada em todos os detalhes.  Cenários, figurinos, ambientação, figuras humanas muito bem caracterizadas e uma fotografia em preto e branco deslumbrante.  As sequências muito frequentes de chuva e névoa criam um clima nostálgico que nos leva longe.  A poesia não está só no texto, está nas imagens.  É um belo cinema.  Ricardo Reis é vivido pelo ator brasileiro (nascido no México) Chico Diaz, em excelente desempenho.  Contracena com um elenco muito sintonizado com a trama e a ambientação desse passado, em que estão Luís Lima Barreto e as duas atrizes que são as paixões “carnais” da criatura, Catarina Wellenstein e Victória Guerra, mulheres belíssimas que só fazem acentuar ideias de sonho e idealização.  Fernando Pessoa, Lídia e Marcenda são as principais personagens em torno de Ricardo Reis.  A figura do heterônimo remete ao Brasil, onde ele teria estado nos últimos dezesseis anos, tendo saído de Lisboa após uma revolta e retornado à cidade natal depois da revolta comunista no Brasil. Portugal, porém, entrará numa ditadura paralisante por 41 anos e todos estarão sob controle e vigília, como ele perceberá rapidamente.  Talvez seu tempo já tenha passado e a poesia já não possa deixar de ser fortemente política, se não quiser se alienar do mundo.  Fernando Pessoa (1888-1935) serve, assim, de inspiração a uma obra cinematográfica de alta qualidade artística, como pode se ver que também o é a criação de Saramago, ao assistir-se ao filme de João Botelho.  125 minutos.






O cinema português esteve também representado por outros bons filmes.  ORDEM MORAL, do diretor lisboeta Mário Barroso, traz a grande atriz Maria de Medeiros vivendo muito à frente de seu tempo, em 1918, como Maria Adelaide Coelho da Cunha, herdeira e proprietária do jornal Diário de Notícias, que se envolve amorosamente com um jovem motorista, com idade para ser seu filho, mesmo sendo casada.  Banca o atropelamento dos valores morais vigentes, arcando com consequências muito grandes.  Pagou o preço, mas enfrentou os valores machistas e ultraconservadores e a injustiça dos dois pesos e duas medidas, que serviam de balança para a avaliação moral de homens e mulheres. Ainda servem?  Só o desempenho de Maria de Medeiros já vale o filme, mas as reflexões que ele traz também são muito boas.  101 minutos.

 

O ÚLTIMO BANHO, dirigido por David Bonneville, em seu primeiro longa, se passa na região do Porto, do Douro, em que Josefina se prepara para fazer os votos e se tornar freira, e está muito feliz com isso, quando recebe a notícia da morte do irmão.  Seu sobrinho Alexandre, de 15 anos, cuja mãe está ausente há tempos e nem comparece ao enterro, torna-se órfão, na prática.  Josefina resolve, então, assumir a educação do jovem, em atitude maternal, que trará novas configurações ao longo do tempo.  Atrações e desejos sub-reptícios se tornam presentes, especialmente quando Ângela, a irmã e mãe, reaparece.  O filme perde um pouco a sutileza que o caracterizava no final, mas, ainda assim, conta uma história bem estruturada, em narrativa clássica.  90 minutos.

 

Citaria ainda MOSQUITO, bom trabalho de João Nunes Pinto em seu segundo longa, que já comentei aqui, em 22 de outubro de 2020, na postagem Filmes de Novos Diretores, na # 44 mostra.

@mostrasp