domingo, 28 de novembro de 2010

ABUTRES



    Antonio Carlos Egypto



ABUTRES (Carancho). Argentina, 2010. Direção: Pablo Trapero. Com Ricardo Darín e Martina Gusman. 107 min.

“Abutres”, de Pablo Trapero, nos apresenta alguns dados estatísticos que serviram de base para a história que se desenvolverá no filme. Na Argentina, anualmente, 8 mil pessoas morrem em acidentes de trânsito, 22 por dia e 120 mil ficam feridas. 100 mil foram mortas na última década.

O dinheiro necessário para atender os gastos médicos, as questões legais, as indenizações das seguradoras, geram negócios atraentes para muitos que não se pautam exatamente pela ética ou por terem escrúpulos.

Os “caranchos” do título original são os advogados que procuram vítimas de trânsito para tirar a maior indenização possível das seguradoras e ficar com uma gorda comissão. Lembrando que muitos acidentes podem ser forjados. É de se supor que essa história toda envolva, por exemplo, suborno a guardas de hospitais, funcionários de emergências, médicos. A coisa vai longe.

Dessa realidade, triste e sórdida, se alimenta a ficção de “Abutres”. Trata-se da história do envolvimento amoroso de um desses advogados, Sosa (Ricardo Darín) com uma jovem médica que atende no cotidiano difícil de um desses hospitais. A personagem é Luzán (Martina Gusman, mulher do diretor). Ela mal consegue dormir, depois de passar por plantões desgastantes e carregados de sangue. E ainda terá de se defrontar com a corrupção envolvida nos seus atendimentos médicos.

Uma denúncia e tanto é o que faz o filme de Trapero, com muita lucidez política. Entende o povo sofrido, a médica e a máfia que envolve o carancho, além dele próprio, aliás, brilhantemente vivido por Ricardo Darín. Onde há miséria, a lei é frágil e há alternativas atraentes, o universo mostrado pelo filme se torna inteiramente compreensível. Mas não se percebe de imediato o que está acontecendo. O filme vai nos revelar o funcionamento do “negócio”, pouco a pouco, nos imergindo numa realidade que nos custa ver, que nos repugna. Isso dá muita força à narrativa, que nos coloca no centro do furacão. E não alivia.

Para chegar a esse resultado, Trapero se utiliza de uma mise-en-scène que expõe a desgraça sem disfarce, com muita dor, muito sangue e uma violência enorme. Não aquela dos brinquedinhos de Quentin Tarantino, mas a de um realismo cru e cruel, da mais evidente veracidade, difícil de aguentar. E a gente fica se perguntando: Essa história não podia ser contada de modo menos violento, um pouco mais sutil? Talvez, mas provavelmente o efeito do “soco no estômago” do espectador, para tentar conscientizá-lo, não seria alcançado. Por outro lado, com tanta violência realista, é filme para um público restrito, provavelmente.

O cinema de Pablo Trapero, um dos mais talentosos diretores do cinema argentino contemporâneo, sempre foi um trabalho pouco ou nada comercial, sem concessões, e muito ligado às questões sociais do seu país. Ele costuma tomar uma parte singular e específica da realidade para permitir uma compreensão de algo maior e mais complexo. Como fez em “Leonera”, de 2008, ao abordar os presídios femininos, onde mães vivem com seus bebês e filhos pequenos, num mundo estranho, à parte, onde há espaço para que crianças cresçam e se desenvolvam, apesar de tudo.

“Família Rodante”, de 2004, tem uma pegada mais satírica. Ele narra a trajetória de uma família que atravessa o país até a fronteira com o Brasil, para ir a um casamento de um membro distante. Tudo acontece nesse road-movie argentino, em que as coisas mudam, se agregam, se desintegram, e personagens vão se revelando, um após o outro. O clima lembra o posterior “Pequena Miss Sunshine”, que deve ter se inspirado em “Família Rodante”. Vejam os dois filmes e me digam se não tenho razão.

Sair de uma realidade pessoal, dura, em busca de uma espécie de fuga geográfica, é o mote de outro filme do diretor, “Nascido e Criado”, de 2006, em que as paisagens da Patagônia ganham destaque e a vastidão do território engole as pessoas, mais do que apazigua.

A obra de Pablo Trapero é bastante sólida e relevante e vai se ampliando a cada novo trabalho, como este “Abutres”. Mas nunca tinha sido tão violenta como agora. Sinal dos tempos?

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Harry Potter e as Relíquias da Morte - Parte 1


Tatiana Babadobulos 

Harry Potter e as Relíquias da Morte - Parte 1 (Harry Potter and the Deathly Hallows – Part 1). Estados Unidos e Reino Unido, 2010. Direção: David Yates. Roteiro: Steve Kloves. Com Daniel Radcliffe, Ralph Fiennes, Rupert Grint, Emma Watson, Helena Bonham Carter. 146 min.


Quando os produtores de Harry Potter decidiram dividir o sétimo e último livro de J.K. Rowling em duas partes, boa coisa não era. O motivo para isso é, obvia­mente, estender por mais um ano os lucros de uma das fran­­quias mais rentáveis de todos os tempos. Mas o maior problema dessa decisão é não condensar a his­tória e fazer com que, no ci­nema, ela perca a agilidade que os ou­tros longas-metragens da série tinham, e se torne arrastado.

“Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 1” estreou na sexta, 19, e registrou, em seu final de semana de estreia, o recorde de maior abertura da história da Warner Bros. Pictures no Brasil. Ao todo, 1,3 milhão de pessoas foram aos cinemas assistir ao filme, fazendo com que ele assumisse a liderança de mais visto em três dias de abertura, superando os cinco primeiros filmes -- só ficando atrás do sexto, "Harry Potter e o Enigma do Príncipe", que registrou 1,8 milhão de espectadores.

No início da fita, a manchete do jornal avisa: “Marca Negra espalha terror”. A partir de então, as ima­gens fazem as apresentações dos personagens de maneira a situar o espectador. Como é início de ano letivo, os alunos de Hogwarts estão em casa com suas famílias. Harry Potter (Daniel Radcliffe), que há muito deixou de ser um bruxinho ingênuo, está sendo procurado por Lord Vol­demort (Ralph Fiennes) e, por isso, seus amigos vão resgatá-lo em casa para fazer a transferência em segurança.

Durante uma festa, Harry, Ron Weasley (Rupert Grint) e Hermione Granger (Emma Watson), que repetem seus papéis, saem à francesa com a missão de encontrar e destruir o segredo da imortalidade de Voldemort: as tais Horcruxes. A partir de então, eles começam a fugir, se disfarçar e burlar os Comensais da Morte, que tomaram conta do Ministério da Magia, já que no filme passado Alvo Dumbledore foi morto.

Neste longa, o destaque vai para os três garotos, uma vez que os outros personagens pouco se envolvem na trama – estão guar­dando o clímax maior para o epi­sódio final. Entre as interpreta­ções marcantes está Helena Bonham Carter, como a Comensal da Morte Belatriz Lestrange.

A direção novamente está sob a batuta de David Yates, que também foi o responsável por "Harry Potter e a Ordem da Fênix" e "Harry Potter e o Enigma do Príncipe", todos com roteiros escritos por Steve Kloves. Com sua câmera, ele respeita as linhas de Rowling e leva o espectador para dentro do filme já no início em travelling perfeito.

Embora nos dois primeiros filmes da franquia as histórias fossem voltadas para as crianças, com a mistura de magia e fantasia, a cada ano os livros ficaram mais densos e sombrios e o público foi acompanhando o crescimento dos atores. Sobretudo nes­te longa-metragem, é possível confirmar a afirmação já na pri­meira meia hora de projeção, quando os Comensais da Morte se reúnem com o Lorde das Tre­vas que, após matar uma mulher com sua varinha, usando o fa­moso feitiço Avadra Kedavra, oferece o corpo como jantar para a gigante cobra que está por ali. Além de, digamos, uma cena assustadora, é também horrível por conta da frieza com que Voldemort trata esse tipo de situação. A mesma cobra, aliás, prota­goniza outra cena cheia de sustos em outra sequência muito bem filmada.

Outro detalhe que o longa apre­senta são as brigas dos adolescentes, uma vez que os três vão passar muito tempo juntos e, uma hora ou outra, Ron vai sentir ciú­me de Harry com sua namorada, Hermione. Os beijinhos, po­rém, ficaram de fora da tela. Eles apenas trocam olhares e se apro­vei­tam de um bom-humor contido pa­ra desfa­zer a tensão e fazer a plateia gargalhar. Outras sequências engraçadas são quando utilizam, mais de uma vez, a poção polis­suco.

À medida que procuram pistas em suas andanças, os três des­cobrem uma lenda antiga: as Re­líquias da Morte, que é re­pre­sentada por um símbolo formado pela pedra da ressurreição, pela capa de invisibilidade e pela va­rinha. E, sabendo disso, vão continuar a busca (mas só no outro filme).

Os efeitos especiais estão por toda parte, mas, ao invés de utili­zarem o cenário sempre muito explorado nos outros fimes, como o castelo onde estudam, agora eles vão filmar cada vez mais em loca­ções, como praia, campo e até ruas da capital inglesa. Efeito especial também está presente nas animações, como quando Her­mione explica “Os Contos de Beedle, o Bardo” e na volta dos elfos Dobby e Mons­tro.

Tal como em “Os Senhor dos Anéis: As Duas Torres”, filme intermediário daquela trilogia, “Harry Potter e as Relíquias da Morte – Parte 1” é cansativo, arrastado e bastante longo, uma vez que possui mais de duas horas de dura­ção. No entanto, quem acompa­nha a série desde o início, não pode perder. Ao final, quando as luzes do cinema se acendem, fica a pergunta: quando será a batalha final? A qualquer hora, se você preferir ler o livro, ou a partir de 15 de julho de 2011, nos cinemas.

VOCÊ VAI CONHECER O HOMEM DOS SEUS SONHOS

Antonio Carlos Egypto


VOCÊ VAI CONHECER O HOMEM DOS SEUS SONHOS (You will meet a tall dark stranger). Estados Unidos, 2010. Roteiro e direção: Woody Allen. Com Gemma Jones, Anthony Hopkins, Rupert Frazer, Naomi Watts, Josh Brolin, Freida Pinto, Antonio Banderas. 98 min.

O que se pode dizer sobre o novo filme de Woody Allen? Não muita coisa nova que já não tenha sido apontada na sua obra cinematográfica, que tem reconhecidamente grande importância e densidade.

Na obra de Woody Allen a vida é complexa e improgramável. Impossível prevê-la ou controlá-la. Tudo sai diferente do que se planeja, as coisas não se dão linearmente. E é comum começar a narrativa dramática de qualquer ponto e interrompê-la também a qualquer momento. A vida sempre seguirá seu rumo. Não necessariamente em direção a um “happy end”, mas também sem vaticínios catastróficos ou pessimistas. Em outras palavras, a vida é, e basta.

Os seres humanos têm de lidar com suas expectativas, fantasias, frustrações, desencontros, solidão. Geralmente estão em busca da felicidade, ou da ilusão dela. Enganando-se a si próprios para poderem suportar as vicissitudes da vida. Construindo crenças ou comportamentos, por vezes estranhos ou exóticos, para conviverem com suas neuroses e com os surpreendentes caminhos do inconsciente.

Os personagens dos filmes de Woody Allen são gente comum, geralmente de classe média ou alta, querendo encontrar o amor, o sucesso profissional e o reconhecimento. O que todo mundo procura alcançar, de um modo ou de outro. E como isso é fácil de falar, mas difícil de conseguir, os fracassos, enganos e impossibilidades acabam sendo a principal matéria-prima da sua obra. Sempre regada a diálogos inteligentes e bem humorados e música da melhor qualidade e extremo bom gosto.

“Você vai conhecer o homem dos seus sonhos” não é nada diferente de tudo isso, embora o título em português possa sugerir outra coisa. No original, trata-se apenas de um estranho, alto e moreno. Uma surpresa, talvez, mas não propriamente um sonho, uma idealização. E uma das protagonistas dessa história é uma mulher que esteve casada por 40 anos, e seu marido a abandonou. A inevitável crise daí advinda pode ser aplacada pela crença numa vidente que prevê o futuro, sempre bom para ela, e em que um novo amor se encaixará. A crença cega na vidente determinará os rumos da história, não só dela, mas dos outros personagens, envolvidos com ela, como o ex-marido e a filha, também em crise no seu próprio casamento e com projetos de ter uma galeria de arte própria. O genro, que estudou medicina, mas tenta ser um escritor de sucesso, está indo ladeira abaixo, depende da sogra e, portanto, também será afetado pelas tais previsões. E, ao contrário do que a vidente afirma, nada será previsível ou estará sob controle, apesar de grande parte das previsões aparentemente se confirmar.

O que o diretor explora é a influência que essa crença cega pode produzir na própria vida e na dos outros, com o cuidado de não maximizar sua importância. Há outras crenças que movem a narrativa, como a do ex-marido, já idoso, que acredita poder bancar um novo casamento com uma garota de programa com seu dinheiro, Viagra e alguns músculos. Ou a do livreiro que, em sessões espíritas, espera obter a aprovação da mulher morta para um novo relacionamento. Ou, ainda, a crença do escritor de poder se realizar profissionalmente com o talento de outro.

De amores imaginados, não correspondidos, ultrapassados pelo tempo ou já irremediavelmente desgastados também se compõe a trama. E de desejos que também podem iludir. Afinal, a ilusão é, muitas vezes, o motor de nossas ações. Sem ela, poderíamos nos entregar à depressão. No que tudo isso vai dar, não sabemos. Mas vamos tocar o barco assim mesmo. O que será, será!

“Você vai conhecer o homem dos seus sonhos” não tem Woody Allen como ator. Tem Anthony Hopkins e Antonio Banderas, Naomi Watts e outros em papéis sem glamour hollywoodiano ou espetacularização. Todos vivendo pessoas comuns e dramas reconhecíveis, com quem podemos cruzar em qualquer lugar e a qualquer momento. O cinema de Woody Allen sempre se alimentou de humanidade, não de mero espetáculo. Por isso mesmo, andou tendo dificuldade nos últimos anos para conseguir financiamento para os seus pequenos grandes filmes, sobretudo nos Estados Unidos. Ainda bem que ele acaba conseguindo dar continuidade aos seus trabalhos no cinema que, com inspiração maior ou menor, são sempre bons.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

MEUS DESTAQUES DA 34ª. MOSTRA DE CINEMA

        Antonio Carlos Egypto

Assisti a 49 filmes da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que terminou há poucos dias. Para um universo de mais de 400 filmes, é pouco mais de 10%. Certamente, vi alguns filmes perfeitamente dispensáveis e deixei de ver outros, mais importantes. A programação distribuída em muitas salas e horários que abrangem quase o dia todo, de meio-dia a meia-noite, torna isso inevitável.

De qualquer modo, posso apontar aqui algumas das coisas de que mais gostei. Algumas delas vão passar no circuito comercial, ainda que possa demorar um ano ou mais, em alguns casos. Outras, nunca passarão, mas podem aparecer em mostras temáticas ou retrospectivas que pululam ao longo do ano, nos cinemas dos grandes centros urbanos.

O principal destaque para mim foi NOSTALGIA DA LUZ, do diretor chileno Patrício Guzmán, responsável também pela antológica trilogia de documentários A BATALHA DO CHILE, um retrato impressionante do processo político chileno sob Allende, até o bombardeio do Palácio de la Moneda e a morte do presidente. Agora, em NOSTALGIA DA LUZ, ele se concentra no deserto de Atacama, onde equipamentos de última geração permitem a astrônomos do mundo inteiro a observação de estrelas, de galáxias distantes e dos limites do universo. O céu translúcido do deserto é favorável a isso. Por outro lado, o calor forte e seco ajuda a conservar cadáveres humanos e ali estão espalhados pelo amplo terreno inúmeros prisioneiros políticos da ditadura de Pinochet. Os familiares desses “desaparecidos” estão em busca de ossadas que possam identificá-los, para poderem viver e dormir em paz, enterrando seus mortos adequadamente. Uma busca que, em muitos aspectos, se assemelha à dos astrônomos: tão difícil quanto, mas muito dolorida. Com esse mote, Guzmán faz um filme notável, belíssimo e politicamente forte. Das melhores coisas que vi no cinema nos últimos tempos.

Gostei também de um moderno e importante filme inglês que discute juventude, aventura, amizade e morte: TERCEIRA ESTRELA, longa de estreia de Hattie Dalton, e do novo filme de Manoel de Oliveira, aos 102 anos, com direito a voos e efeitos especiais, a partir da foto da morta que sorri só para o fotógrafo: O ESTRANHO CASO DE ANGÉLICA. Ótimo!

Também valeu a pena ver dois filmes russos, COMO EU TERMINEI ESTE VERÃO e ALMAS SILENCIOSAS, e o filme da Bósnia, UM OUTRO CAMINHO, este sobre a religiosidade islâmica, levada a ferro e fogo, o que inviabiliza uma relação amorosa. Um filme italiano sem diálogos, AS QUATRO VOLTAS, mostra as possibilidades que o cinema tem e que muitas vezes são mal aproveitadas.

O vencedor da Palma de Ouro em Cannes, em 2010, TIO BOONMEE, QUE PODE RECORDAR SUAS VIDAS PASSADAS, também é cinema de primeira, mas mais difícil de ser assimilado e aceito, porque rompe paradigmas. É preciso ver deixando de lado as expectativas usuais.

Dos escandinavos, destacaria o sueco BEYOND e o dinamarquês WATER EASY REACH. E, ainda, a comédia da Finlândia, O CIÚME MORA AO LADO, de Mika Kaurismaki, que funciona bem e deve entrar em cartaz brevemente em São Paulo. Da China, MEMÓRIAS DE XANGAI, de Jia Zhang-Ke, um retrato histórico da cidade de Xangai e do país, constrastando com a atualidade, e um épico espetáculo de humor, UMA MULHER, UMA ARMA E UMA LOJA DE MACARRÃO, do já consagrado Zhang Yimou. Do Japão, destaque para o filme de Kore-Eda, AIR DOLL (Boneca Inflável), uma fantasia graciosa e inteligente.  Há ainda um bom filme do Quirguistão, O LADRÃO DE LUZ. E o novo e original filme do grande diretor iraniano Abbas Kiarostami, agora filmando fora de seu país de origem: CÓPIA FIEL.

Por último, uma curiosidade: o filme francês COPACABANA, todo calcado numa imagem positiva do Brasil e principalmente de sua música, é boa diversão, com uma atriz do porte de Isabelle Hupert.

Um registro final: vários filmes com cópias digitais, ou mesmo em DVD, não fazem jus à qualidade que se espera da Mostra. As projeções e o atendimento ao público nos cinemas do Arteplex Frei Caneca deixaram a desejar. Acho que o gigantismo está atrapalhando a Mostra. Para que programar mais de 400 filmes? Há tanto filme bom, assim, todo ano? E adianta projetar bons filmes com má qualidade de imagem? Por que não selecionar melhor, reduzir a quantidade de filmes e investir mais nas cópias, na projeção e no atendimento qualificado aos cinéfilos? Todos teríamos a ganhar com isso.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Senna


Tatiana Babadobulos

Senna. Reino Unido, 2010. Direção: Asif Kapadia. Roteiro: Manish Pandey


Seria natural que a vida de Ayrton Senna virasse filme após a sua trágica morte, em Ímola, na Itália, em 1994. Só não se sabia, porém, como seria esse longa-metragem. A princípio, o ator espanhol Antonio Banderas teria sido escolhido para viver o herói brasileiro das pistas. Mas Viviane Senna, irmã de Ayrton, nunca encontrou um contrato dos estúdios hollywoodianos que lhe satisfizesse. Em 2006, porém, produtores ingleses a procuraram com uma nova proposta: transformar as imagens reais, captadas das pistas, dos bastidores e da vida íntima de Senna (os passeios de lancha e jet-ski pelos mares de Angra dos Reis, durante o Carnaval, e com as namoradas Adriane Yamin, Xuxa e Adriane Galisteu), em um filme. Contar uma história a partir de imagens, ou seja: cinema puro!

A ideia, portanto, seria fazer um documentário. Mas mais do que isso, uma “colcha de retalhos” que, costurada, daria origem ao produto final, com começo, meio e fim. Foi aí que entrou o roteirista (e fanático por Senna) Manish Pandey, que resolveu contar uma história linear sobre a vida de Ayrton, iniciando a partir do momento em que ele começou a correr na Fórmula 1, em 1984, no Grande Prêmio de Mônaco.

Ao contrário dos documentários tradicionais, "Senna" não utiliza depoimentos, mas narrações em off de pessoas que tiveram envolvimento diretamente na vida de Ayrton Senna. Uma pessoa muito importante, e que contribuiu com a história, foi o comentarista esportivo Reginaldo Leme.

Em entrevista coletiva realizada em São Paulo, Viviane Senna disse que fazer um filme de ficção sobre a vida de Senna não seria tão impactante. “A cena do Balestre, por exemplo, não seria tão forte”, comenta, citando uma das cenas nas quais há uma grande discussão, no Grande Prêmio do Japão, quando houve um problema do lado da pista em que o pole position largaria.

Embora seja tratado como documentário pelo fato de utilizar imagens reais, o longa poderia ser de ficção, uma vez que a construção é típica desse tipo de filme: a luta do bem contra o mal (Senna versus Prost), catarse, ascensão e queda do herói. Antonio Pinto (de “Cidade de Deus”), brasileiro responsável pela bela trilha sonora da fita, aumenta o coro. “O cara é um herói, precisa se superar, há os vilões... Vamos combinar que o Alain Prost parece o Darth Vader”, brinca, fazendo alusão ao malvado personagem de “Star Wars”.

Quem conheceu a trajetória de Ayrton Senna vai se emocionar com as imagens e a importância que ele teve no automobilismo de maneira geral, principalmente por sua superação a cada corrida. Na primeira, em Mônaco, ele competiu com grandes estrelas, como Keke Rosberg, Nigel Mansell, o bicampeão mundial austríaco Niki Lauda, Nelson Piquet e o homem chamado de “O Professor”, o francês Alain Prost, de quem se tornou companheiro de equipe, na McLaren, e com quem passou maus bocados.

Nessa mesma corrida ele largou na 13ª posição pela equipe Toleman e alcançou Prost na 32ª volta, embora não tenha ganhado a prova. Daí pra frente, ele começou a mostrar a que veio e o que se podia esperar de um piloto audacioso e corajoso como sempre foi.

Foi durante a temporada de 1990, no Japão, que, por conta da matemática do campeonato, Senna e Prost lutavam pela vitória. A partir de então os personagens de Senna e Prost são revelados.

Em 1991, ele venceu pela primeira vez em Interlagos e é emocionante vê-lo carregando a bandeira brasileira, a “música da vitória” e como foi duro chegar em primeiro lugar, sendo que nas última três voltas estava apenas com a sexta marcha.

Além de mostrar como era um “gênio” nas pistas, o longa reforça o lado espiritual e marcante de Senna. Algumas passagens mostram que ele rezava e, inclusive, admite ter visto Deus. No dia de sua morte, outro depoimento sublinha a ideia de que ele havia aberto a Bíblia antes da corrida e teria recebido uma mensagem divina.

No longa é possível conferir como eram os carros antes e depois, quando as equipes começaram a se valer de tecnologia de ponta para montar os seus carros e que, quando Senna começou, vencer uma corrida dependia muito mais da habilidade do piloto que propriamente de uma equipe competente e de um carro sensacional. Em uma passagem, ele diz que é muito complicado quando se entra na “war technologie”, ou seja, na guerra da tecnologia, pois é preciso ter um carro competitivo se quiser enfrentar.

E, quando chegou ao topo, a tecnologia nos carros mudou e os títulos de 1992 e 1993 foram para os carros da Williams-Renault, pilotados por Mansell e Prost. Em 1994, no entanto, com Prost e Mansell não mais correndo a F1, Senna assegurou um posto na Williams.

Ainda que o final desta história já seja conhecida, é inacreditável e inaceitável saber que, no fim de semana em que morreu, durante o treino classificatório, Rubens Barrichello bateu e se feriu. Um dia depois, o piloto austríaco Roland Ratzenberger morreu após bater no muro a 320km/h. O médico e seu amigo, Sid Watkins, o aconselhou a não correr no domingo e até Frank Williams tinha dúvidas se ele largaria naquela manhã. Mas Senna cumpriu seu trabalho com responsabilidade, ainda que curva Tamburello estivesse no meio do seu caminho.

“Senna” é um filme produzido para emocionar. Portanto, não queira sair intacto da sala de projeção após se render as imagens do diretor Asif Kapadia. Trata-se de um longa-metragem sensível, com imagens reais e, sobretudo, “chapa branca”, ou seja, mostram o herói Ayrton Senna, aquele que fazia milhares de brasileiros se levantarem nas manhãs de domingo prontos para ver mais uma vitória. Há, imagens, inclusive, que dão conta de mostrar a pobreza do país e que, após a sua morte, os brasileiros se sentiram órfãos e tristes por achar que não mais valeria a pena viver, uma vez que a alegria havia ido embora. Em Interlagos, imagens da pobreza, mas ao mesmo tempo a torcida gritando o seu nome, e a superação de vencer com apenas a sexta marcha. 

Um senão: imagens de Xuxa e Adriane Galisteu. Para o diretor, a ideia de incluí-las era para mostrar mulheres no filme e que os “relacionamentos fazem parte da história dele”. Embora tenha feito graça por conta do vestido que Xuxa usa e tenha se lembrado que já havia visto imagens impróprias da apresentadora, o diretor não respondeu se chegou a acompanhar os romances à época, uma vez que, pelo noticiário, Adriane não parecia ser bem-vinda à família Senna.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

JOSÉ E PILAR


Antonio Carlos Egypto

JOSÉ E PILAR. Portugal, 2010. Direção: Miguel Gonçalves Mendes. Documentário. 125 min.

José Saramago se foi e sua falta já está sendo bastante sentida. Seus livros, felizmente, permanecerão como acervo cultural de grande envergadura na língua portuguesa. Mas sua presença em entrevistas, depoimentos, artigos jornalísticos, suas frases e sua coragem em apontar as questões fundamentais do nosso tempo, geralmente indo contra a maré, não mais poderão ser apreciadas. Ateu e comunista de convicções firmes e presença suave, sempre valerá a pena relembrar sua atuação, além de reler seus escritos.

Por isso, o documentário “José e Pilar”, do seu conterrâneo português, Miguel Gonçalves Mendes, é tão oportuno e necessário. Foi um trabalho de três anos – 2006, 2007 e 2008 – com duzentas horas de gravação, registrando o dia-a-dia do escritor em sua casa, na ilha de Lanzarote, na Espanha, suas viagens constantes pelo mundo após a conquista do merecidíssimo Prêmio Nobel de Literatura, em 1998, acompanhando também o processo de criação e produção do romance “A Viagem do Elefante”, cujo lançamento mundial se deu no Brasil, em 2008.

A figura humana de Saramago se destaca no filme. Mas igual destaque ganha sua amada, Pilar Del Río, jornalista espanhola com quem ele viveu uma história de amor, camaradagem, cumplicidade e até de dependência dele em relação a ela, em alguns aspectos. É o retrato íntimo dessa relação, em geral, serena, apaixonada e altamente produtiva, o que o documentário mais revela.

A vastidão do material que acumulou, acompanhando as viagens do casal, interessado nos grandes momentos pelo mundo e também nos pequenos momentos domésticos, permite que, sem se deter muito em quase nada, um grande painel da vida do escritór nos últimos anos se construa. Foram anos de grande glória, mas também das perdas decorrentes da velhice e de uma doença que quase o matou e que poderia ter impedido a conclusão da obra “A Viagem do Elefante” e o que ainda viria depois, como o romance “Caim”.

Saramago tinha tudo, mas pedia tempo para completar seu trabalho. Felizmente, obteve o tempo extra que pedia. A isso muito se deve a dedicação de Pilar, que prossegue após a sua morte, à frente da Fundação que leva o nome do escritor.

São momentos de puro deleite cinematográfico àqueles que apreciam José Saramago. Quem não o conhece bem certamente vai gostar de conhecê-lo e a sua amada. Aos conservadores mais empedernidos, a obra e a figura humana de Saramago serão sempre ferinas e sem concessões. Porque, com doçura e expressão moderada, ele não se engana e não se deixa abater. E o filme rende uma justa homenagem à grandeza desse homem.

A produção do documentário une Portugal à produtora espanhola “El Deseo”, de Pedro Almodóvar e seu irmão Agustín e à “02 Filmes”, brasileira, de Fernando Meirelles. Aliás, a famosa cena de Fernando, mostrando seu “Ensaio Sobre a Cegueira” ao autor do texto, que deu origem àquele belo filme e às reações de Saramago, que emocionaram o cineasta, também está em “José e Pilar”.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

MINHAS MÃES E MEU PAI

            Antonio Carlos Egypto

MINHAS MÃES E MEU PAI (The kids are all right). Estados Unidos, 2010. Direção: Lisa Cholodenko. Com Annete Bening, Juliane Moore, Mark Ruffalo, Mia Wasikowska e Josh Hutcherson. 106 min.

Duas mulheres lésbicas vivem um amor intenso e harmonioso, com um casal de filhos adolescentes. Ambos os jovens foram concebidos por inseminação artificial, a partir de um doador anônimo. Cada uma delas foi mãe, gerando o filho ou a filha em seu próprio útero, com sêmen do mesmo doador. E assim se constituiu uma família que seguiu seu rumo pelo tempo, sem maiores tropeços. O nível socioeconômico dessa família é alto e o padrão intelectual das mães, também. O que pode acontecer se o doador, o pai biológico, entrar em cena? Esse é o mote do filme, totalmente antenado com o século XXI.

Vivemos num tempo em que já não se pode falar da família no singular, mas sim de famílias, no plural. Ou seja, há diferentes configurações familiares convivendo pacificamente. Isso já se verifica há tempos. A família nuclear – pai, mãe e filhos – que substituiu a família extensa, em que entra a parentela em geral, foi se reduzindo. O número de filhos caiu vertiginosamente, inclusive no Brasil. Menos nas classes de menor poder aquisitivo, mas caiu lá também.

Os casamentos duram muito menos do que no passado, gerando muitas famílias mantidas pela mãe e só por ela. Ou, então, apresentando de forma intensa padrastos, madrastas e o convívio com meio-irmãos. Crianças que passam a semana numa casa e o fim de semana em outra. Crianças que só têm pai ou mãe ou têm até quatro genitores. Bebês de proveta passaram a fazer parte da história e famílias homossexuais se tornaram um fato social relevante.

Isso tudo significa que a família está em crise ou se desestruturou? Não, significa apenas que as famílias mudaram, assim como o mundo mudou. Eu diria que para melhor. O que não impede que haja surpresas, estranhamentos e problemas nessas novas relações que se estabelecem e é disso que se alimenta “Minhas Mães e Meu Pai”. O título brasileiro se surpreende mais do que o original, que apenas nos informa que as crianças estão muito bem. Ou seja, as novas configurações familiares dão conta muito bem do cuidar das crianças. Pelo menos, quando o dinheiro não falta, como é o caso aqui.

De um filme leve, bem realizado, com boas interpretações e com um tema como esse pode esperar-se muito, não é mesmo? Infelizmente, não. Afinal, estamos em Hollywood e seja um blockbuster ou uma produção independente e mais modesta, os valores do cinema espetáculo costumam se sobrepor ao cinema que produz reflexão.

A família homossexual se equipara em tudo às famílias convencionais mais moderninhas. O triunfo da família como um valor, seja ela qual for, não questiona, antes, reforça a idealização tradicional da família que o cinema norte-americano sempre mostrou. Nem sinal dos conflitos familiares do cinema italiano do neorrealismo, por exemplo. Ou dos questionamentos de Wilhelm Reich e de um de seus seguidores brasileiros, o médico psiquiatra recém-falecido, José Ângelo Gaiarsa. Nem de Nelson Rodrigues, por certo. O máximo que se vê de conflitos são ciúmes, além de características de personalidade que inteferem nos relacionamentos.

É tudo ligeiro, para não incomodar ninguém. Dá para ver? Claro que dá para ver e para se divertir. Mas é um tema que merecia outro tratamento. Fico só imaginando o que não seria capaz de aprontar o cineasta Pedro Almodóvar com uma história dessas. Certamente, teríamos tipos estranhos fazendo coisas extravagantes, detonando a sociedade tradicional e produzindo uma libertação que passaria pela implosão dos preconceitos. Mas isso seria Almodóvar, não a jovem diretora Lisa Cholodenko, que trabalha pela cartilha hollywoodiana, aquela que faz do mercado seu ente orientador.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

As Múmias do Faraó


Tatiana Babadobulos


As Múmias do Faraó (Les Aventures Extraordinaries D'Adèle Blanc-Sec). França, 2010. Direção e roteiro: Luc Besson. Com: Louise Bourgoin,Mathieu Amalric, Gilles Lellouche, Jean-Paul Rouve. 107 min.



Ambientado na Paris de 1912, o longa-metragem “As Múmias do Faraó” (“Les Aventures Extraordinaries D'Adèle Blanc-Sec”) conta a história de uma repórter, Adèle (Louise Bourgoin), que resolve ir ao Egito, pois acre­dita que a cura da doença de sua irmã está na tumba de um faraó. Quem aponta a solução, porém, é um professor (quase) centenário que tem a capacidade de  controlar animais pré-históricos do Museu de História Natural, uma vez que ele conseguiu trazer à vida um dinossauro que estava apenas no ovo! De Paris ao Egito, ela vai aprontar confusões, envol­ver a polícia local, enfim, vi­ver uma grande aventura e fazer a plateia rir.

Grosso modo, é assim o fil­me dirigido pelo francês Luc Besson, também responsável por longas  como “Arthur e os Minimoys”, “Joana d'Arc”, “O Profissional”, “Imensidão Azul”.

Na Belle Époque, o espectador vai conferir que pouca coisa mudou na rue de Rivoli, uma das principais ruas de co­mércio da capital francesa e on­de também estão os espe­tá­culos de can-can. O rio Sena também faz parte do cenário, assim como os museus da cidade.

Uma das referências mais geniais da fita, aliás, é quando cita as pirâmides do Egito e aparece o Museu do Louvre, local onde, atualmente, existem pirâmides de vidro na frente e, quando foram ali colocadas, se tornaram motivo de críticas por ser uma obra de mal gosto.

Usando de bastante ironia, o jornal local aproveita para falar do tal réptil que saiu do Museu, mas o governo acredita que isso tenha sido feito para desestabilizá-lo. E o policial, ao invés de tomar as providências necessárias, atua como um verdadeiro funcionário público e só pensa em comer. Com narrações em off, há cenas engraçadas e personagens que tiram sarro da história, como quando se vestem de car­neiros...

Ainda que a busca incessante da protagonista sejam as tais múmias do faraó, o título do filme bem que poderia ter sido apenas traduzido do ori­ginal, ou seja, “As Extraor­dinárias Aventuras de Adèle Blanc-Sec”, que é justamente o que ele trata. Com efeitos especiais para trazer vida às mú­mias, o longa abusa dos diálogos, como um bom filme fran­cês. No entanto, ao espectador, uma dica: relaxe e aproveite. O longa de aventura é divertido, uma verdadeira sessão da tarde. Portanto, não espere um filme francês do “tipo cabeça”, mas pura diversão cheia de ironias.