ABUTRES (Carancho). Argentina, 2010. Direção: Pablo Trapero. Com Ricardo Darín e Martina Gusman. 107 min.
“Abutres”, de Pablo Trapero, nos apresenta alguns dados estatísticos que serviram de base para a história que se desenvolverá no filme. Na Argentina, anualmente, 8 mil pessoas morrem em acidentes de trânsito, 22 por dia e 120 mil ficam feridas. 100 mil foram mortas na última década.
O dinheiro necessário para atender os gastos médicos, as questões legais, as indenizações das seguradoras, geram negócios atraentes para muitos que não se pautam exatamente pela ética ou por terem escrúpulos.
Os “caranchos” do título original são os advogados que procuram vítimas de trânsito para tirar a maior indenização possível das seguradoras e ficar com uma gorda comissão. Lembrando que muitos acidentes podem ser forjados. É de se supor que essa história toda envolva, por exemplo, suborno a guardas de hospitais, funcionários de emergências, médicos. A coisa vai longe.
Dessa realidade, triste e sórdida, se alimenta a ficção de “Abutres”. Trata-se da história do envolvimento amoroso de um desses advogados, Sosa (Ricardo Darín) com uma jovem médica que atende no cotidiano difícil de um desses hospitais. A personagem é Luzán (Martina Gusman, mulher do diretor). Ela mal consegue dormir, depois de passar por plantões desgastantes e carregados de sangue. E ainda terá de se defrontar com a corrupção envolvida nos seus atendimentos médicos.
Uma denúncia e tanto é o que faz o filme de Trapero, com muita lucidez política. Entende o povo sofrido, a médica e a máfia que envolve o carancho, além dele próprio, aliás, brilhantemente vivido por Ricardo Darín. Onde há miséria, a lei é frágil e há alternativas atraentes, o universo mostrado pelo filme se torna inteiramente compreensível. Mas não se percebe de imediato o que está acontecendo. O filme vai nos revelar o funcionamento do “negócio”, pouco a pouco, nos imergindo numa realidade que nos custa ver, que nos repugna. Isso dá muita força à narrativa, que nos coloca no centro do furacão. E não alivia.
Para chegar a esse resultado, Trapero se utiliza de uma mise-en-scène que expõe a desgraça sem disfarce, com muita dor, muito sangue e uma violência enorme. Não aquela dos brinquedinhos de Quentin Tarantino, mas a de um realismo cru e cruel, da mais evidente veracidade, difícil de aguentar. E a gente fica se perguntando: Essa história não podia ser contada de modo menos violento, um pouco mais sutil? Talvez, mas provavelmente o efeito do “soco no estômago” do espectador, para tentar conscientizá-lo, não seria alcançado. Por outro lado, com tanta violência realista, é filme para um público restrito, provavelmente.
O cinema de Pablo Trapero, um dos mais talentosos diretores do cinema argentino contemporâneo, sempre foi um trabalho pouco ou nada comercial, sem concessões, e muito ligado às questões sociais do seu país. Ele costuma tomar uma parte singular e específica da realidade para permitir uma compreensão de algo maior e mais complexo. Como fez em “Leonera”, de 2008, ao abordar os presídios femininos, onde mães vivem com seus bebês e filhos pequenos, num mundo estranho, à parte, onde há espaço para que crianças cresçam e se desenvolvam, apesar de tudo.
“Família Rodante”, de 2004, tem uma pegada mais satírica. Ele narra a trajetória de uma família que atravessa o país até a fronteira com o Brasil, para ir a um casamento de um membro distante. Tudo acontece nesse road-movie argentino, em que as coisas mudam, se agregam, se desintegram, e personagens vão se revelando, um após o outro. O clima lembra o posterior “Pequena Miss Sunshine”, que deve ter se inspirado em “Família Rodante”. Vejam os dois filmes e me digam se não tenho razão.
Sair de uma realidade pessoal, dura, em busca de uma espécie de fuga geográfica, é o mote de outro filme do diretor, “Nascido e Criado”, de 2006, em que as paisagens da Patagônia ganham destaque e a vastidão do território engole as pessoas, mais do que apazigua.