terça-feira, 16 de julho de 2024

TRANSEXUAIS NO CINEMA

Antonio Carlos Egypto

 

A questão transexual adquiriu importância e relevância maior nos últimos tempos, com a derrocada de tabus e o reconhecimento do valor da diversidade, pela maioria das pessoas.  O cinema tem refletido muito isso, com filmes que destacam personagens trans na ficção e dando voz e vez às pessoas chamadas não-binárias no registro documental.  Três filmes, que estão em cartaz nos cinemas, têm a questão transexual no centro de suas narrativas. 

 


ORLANDO, MINHA BIOGRAFIA POLÍTICA (Orlando ma biographie politique), documentário francês, de 2023, dirigido pelo filósofo, ativista e escritor trans, Paul B. Preciado, que agora é também cineasta, homenageia o personagem Orlando, de Virginia Woolf, de 1928.  Esse romance teve o primeiro personagem mudando de sexo no meio da história.  Preciado apresenta no filme 26 pessoas trans ou não-binárias, de 8 a 70 anos de idade, que se apresentam como representando o papel de Orlando.  Na verdade, estão falando de si próprias, se dando a conhecer, atuando no cotidiano de suas vidas e interagindo com suas vivências, o que não deixa de ser representação.  O filme é um documentário, poético e visual, muito interessante de se ver e que consegue até mesmo esclarecer didaticamente aqueles que ainda não se situam direito nesses novos conceitos.  E o faz sem restringir. Ao contrário, amplia as perspectivas de compreensão social e política desse universo, digamos, queer.  Seria interessante que justamente as pessoas com mais dúvidas ou resistências fossem ver o filme, para entender melhor o que se passa nessa realidade ainda desafiadora para nós, para eles, para todos.  98 min.

 


CAMINHOS CRUZADOS (Crossing) é um filme da Georgia e Turquia, de 2023, dirigido pelo georgiano radicado na Suécia, Levan Akin (de “E Então Nós Dançamos”, 2019).  No elenco: Mzia Anabuli, Lucas Kankava, Deniz Dumanli.  105 min.  A narrativa do filme foca na figura da senhora Lia, que está em busca de sua sobrinha Tekla, que ela não vê há muito, mas que prometeu à irmã falecida, mãe de Tekla, resgatá-la e trazê-la de volta.  Para isso, tem de, partindo da Georgia, ir à vizinha Istambul, onde presumivelmente a sobrinha estaria.  Sem falar turco ou inglês, aceita a companhia de um jovem para ajudá-la.  Nessa viagem, vão ficando claras as coisas.  Tekla está ligada ao mundo transexual da cidade, o que tenderia a aproximá-la da prostituição e das drogas.  Mas nesse meio há também sucessos, como o da trans Evram, advogada e defensora dos direitos humanos, que vai colaborar nessa busca.  Enfim, trata-se de penetrar no submundo de Istambul, para conhecer a realidade dos transexuais, suas rejeições, sofrimentos, abandonos, transgressões e fantasias.  Ao mesmo tempo, Lia estabelece uma relação difícil com seu acompanhante, que poderia ser seu filho e que está bem necessitado de apoio e de afeto.  A jornada de Lia levará a uma compreensão mais profunda desse universo tão palpável e tão desconhecido da transição de gênero, ou da eliminação da necessidade dessa escolha.  Uma mensagem escrita na abertura do filme informa que em georgiano e em turco não existe uma palavra diferenciadora de gênero para pessoas.  Destaque para a trilha sonora com canções locais muito bonitas.

 


A FILHA DO PESCADOR (La estrategia del Mero) é um filme da Colômbia, de 2023, dirigido por Edgar De Luque Jácome, filmado na República Dominicana, que conta, além desses dois países, com Porto Rico e o Brasil, na produção e distribuição.  É o primeiro longa do diretor colombiano.  No elenco: Roamir Pineda, Nathalia Rincón, Henry Barrios, Jesús Romero, Modesto Lácen.  78 min.  Numa ilha isolada do mar do Caribe, numa aldeia, vive um pescador tarimbado na pesca submarina em mergulho livre.  Convive com as alterações do mar e com ele tem uma relação de amor e domínio em sua solidão.  Até que aparece na ilha seu filho Samuelito, uma mulher trans, renomeada de Priscila, que está fugindo de uma confusão em que se meteu e que resultou numa morte.  Ela e o pai pescador são água e vinho, ele a hostiliza e rejeita, do mesmo modo que ela não o aceita por conta do passado, das relações rompidas dele com a mãe.  Será preciso que o pescador adoeça e se torne vulnerável para que as relações possam tomar outras proporções e caminhos.  Assim como o mar, os relacionamentos e emoções são sujeitos a ondas, revoluções, tempestades, furacões.  O filme é um tanto esquemático, nessa evolução narrativa, falta um tempo de elaboração para que os fatos se processassem como acontece.  Algumas mudanças de atitude são bruscas e inconvincentes.  No entanto, o conjunto se sustenta e as filmagens no mar dão um toque de beleza à realidade dura da transexualidade num ambiente conservador, que o filme mostra com clareza.




sábado, 13 de julho de 2024

O SEQUESTRO DO PAPA

           

 Antonio Carlos Egypto

 


O SEQUESTRO DO PAPA (Rapito). Itália, 2023.  Direção: Marco Bellocchio.

Elenco: Paolo Pierobon, Fausto Russo Alesi, Barbara Ronchi, Enea Sala, Leonardo Maltese.  135 min.

 

Vamos começar pelo título em português: “O Sequestro do Papa”.  Ele sugere o quê?  Que o Papa, um Papa histórico, tenha sido sequestrado. Mas, e se o fato histórico, que deu origem ao filme, é sobre um Papa que atuou como sequestrador ou mandante de um sequestro?

 

O título original “Rapito” significa raptado ou sequestrado.  E a que se refere?  Ao menino judeu Edgardo Mortara, que vivia com sua família em Bolonha e que, em 1858, aos seis anos de idade, foi retirado de seus pais e passou a viver no Vaticano, sob a responsabilidade da Igreja Católica, em especial, do Papa Pio IX (1792-1878), que o tratava como se fosse seu pai.

 


O motivo para o sequestro da criança seria o fato de que uma empregada doméstica da família Mortara realizou o batismo do menino em uma situação de doença e risco real de morte, quando bebê, visando livrá-lo do limbo, sendo ela católica.  À revelia da família, naturalmente. A lei proibia aos não-cristãos educar uma criança cristã, definida assim pela condição de batizado. Ainda que quem a pretendesse educar fossem seus pais biológicos.

 

Uma situação vista hoje como esdrúxula e de um autoritarismo absurdo.  Até então o poder do Papa extrapolava o modelo religioso, realizando-se também como chefe de Estado, uma espécie de Rei com poderes absolutos.

Na época vigorava um reinado Papal que se opunha à unificação da Itália e a Roma como capital do novo país, o que ocorreu em 1870.  O Papa vivia em conflito com os maçons, que inclusive tentaram jogar o caixão com os restos mortais do pontífice no Rio Tigre.

 

A situação que gerou o Vaticano como Estado independente dentro da Itália só seria resolvida pelo modelo atual por Benito Mussolini, em meados do século XX.

 


Essa história real resgatada pelo filme do grande diretor Marco Bellocchio é forte, é um libelo contra o autoritarismo, numa sucessão de sequências de impacto e beleza que nos levam a refletir sobre um bom número de questões.

 

Ao tomar como referência a vida do menino sequestrado e de tudo o que se passa com ele ao longo do tempo, não deixa dúvidas sobre o caráter opressor, não importa de quem parta.  Também nos revela o papel da manipulação de corações e mentes, ainda que envelopados pela aparente bondade e doçura.

 

Bellocchio se vale de um elenco de grande talento, que dá vida a personagens multifacetados, que não estão enquadrados na galeria dos bons ou dos maus.  São figuras mais complexas, reais.  A partir do próprio garoto estreante, Enea Sala, que faz muito bem o papel de Edgardo criança, o jovem Leonardo Maltese, como Edgardo adulto, o pai Momolo, interpretado por Fausto Russo Alesi, a mãe, Marianna, por Barbara Ronchi, e o Papa Pio IX, vivido por Paolo Pierobon. A reconstituição de época é muito boa e a beleza da cidade de Bolonha com a Basílica de São Petrônio e suas construções medievais se evidencia no filme.



terça-feira, 2 de julho de 2024

TESTAMENTO

                       

 Antonio Carlos Egypto





TESTAMENTO (Testament).  Canadá, 2023.  Direção e roteiro: Denys Arcand.  Elenco: Remy Girard, Sophie Lorain, Guylaine Tremblay, Caroline Néron, Robert Lepage.  115 min.

 

Denys Arcand, um dos mais importantes cineastas do Canadá, da região de Québec, foi sempre um diretor antenado com as questões da contemporaneidade.  Como atestam filmes como “Declínio do Império Americano”, de 1986, “Jesus de Montreal”, de 1989, e “Invasões Bárbaras”, de 2003.  Em “Testamento”, ele, aos 83 anos de idade, se debruça sobre o chamado campo do politicamente correto, da postura anticolonialista e das questões identitárias, totalmente relevantes e prevalentes no momento atual.

 

Não deixa de se referir aos extremos climáticos que tanto preocupam, mas o faz só ao final, na forma de blague.  Aliás, o filme todo se vale da piada, do comentário irônico e até do deboche.  Aí é que mora o perigo! 

 

Claro que os exageros são demonstrativos de que há algo a condenar por aí.  Exemplo no filme: um homem que faz muitos exercícios, alcança muitos quilômetros em maratonas na bicicleta, tem uma vida ultrassaudável, alimentação balanceada e tudo o mais, em torno dos 60 anos de idade.  Sua mulher critica os que não fazem como ele e acaba por se desesperar ao constatar que ele morre de morte súbita, ao chegar de uma dessas maratonas, em que exigia de si mesmo muito esforço.  OK.  Mas a prática de exercícios equilibrados e controlados, em qualquer idade, feita moderadamente é desejável.  Ou não?

 

Fazer piada depreciativa de quem já está vulnerável ou desprestigiado na escala social, objeto de preconceitos, discriminações e agressividade, se justifica?  Basta dizer que se as pessoas riem é porque é engraçado e tudo bem?  Atacar quem já está espezinhado pela palavra, pelo humor, pelo deboche, é engraçado por quê?  Revela o que está escondido, reprimido, escamoteado.  Aquilo que rejeitamos, inconscientemente, que não admitimos, não queremos ver.  Nesse sentido, dá até para invocar Freud em defesa do tal do politicamente correto.  Claro, regras e proibições são coisas chatas, incômodas, desagradáveis.  Mas, gostemos ou não, têm uma razão de ser.  Pelo menos até que possamos evoluir na compreensão e aceitação dos outros.  “Testamento” não tem essa preocupação crítica, que seria necessária, partindo de um cineasta com reconhecida lucidez política.


 



A questão mais explorada no filme é o ativismo político anticolonialista, que implica com um mural artístico de grande beleza que, supostamente, insulta as primeiras nações indígenas, os povos originários.  Diante do colonizador vestido com pompa e postura altiva estão indígenas seminus, com penas, etc..  Um pequeno grupo de ativistas, que nem são indígenas, conseguem gerar uma difusão pela mídia, que põe em risco a obra de arte.  E o que se vê é espantoso.  E ridículo.  Ninguém pode concordar.  Mas a postura colonialista merece ou não ser discutida?  Se não é essa a forma, qual seria?  E por aí vai.  

 

Estou chamando a atenção para um filme bem realizado, com um elenco excelente, a começar pelo protagonista, o ator Remy Girard, e também Sophie Lorain, intérpretes habituais do cinema de Arcand, e que funciona bem como comédia, de que o terreno é escorregadio.  É preciso cuidado para lidar com esses temas, porque eles têm um lado caricato, sim, mas são também relevantes e importantes para a sociedade contemporânea do século XXI.  Eu não gostei muito da abordagem do filme, ele ficou parcial e, em nome da ironia, simplificou as coisas.  É um pouco assim, mas não é bem assim.



quinta-feira, 27 de junho de 2024

A GRANDE FUGA

                            

Antonio Carlos Egypto

 



A GRANDE FUGA. (The Great Scape).  Reino Unido, 2023.  Direção: Oliver Parker.  Elenco: Michael Caine, Glenda Jackson, John Standing, Danielle Vitalis, Will Fletcher, Laura Marcus. 96 min.

 

Um ator e uma atriz ingleses, ícones do teatro e do cinema britânicos, são os protagonistas de “A Grande Fuga”, filme dirigido por Oliver Parker.  São Michael Caine, que realizou esse trabalho aos 90 anos, e Glenda Jackson (1936-2023), que também foi política, deputada pelo Labour Party, fez aqui sua última performance fílmica.  Com protagonistas desse quilate, nem é preciso dizer que todas as atenções se dirigem às suas respectivas atuações, que são magníficas, é o que o filme tem de melhor a oferecer.

 

Além disso, a história é muito boa e baseada num personagem real, Bernard Jordon (Michael Caine), que, aos 89 anos de idade, viajou sozinho, partindo de Londres, até a Normandia, na França, para participar das cerimônias de comemoração da vitória na Segunda Guerra Mundial, no chamado Dia D, que, em 2014, completava 70 anos.  O espetáculo foi grandioso, mas o feito de Bernard (ou Bernie) também repercutiu amplamente.  Gerou matérias de jornais, da TV e de outras mídias.

 

Ele saiu incógnito de uma casa de repouso de alto padrão, onde vivia com sua mulher Irene, papel de Glenda Jackson aos 87 anos, e com quem convivia há mais de 70 anos.  Enfrentou a aventura com o apoio, a convivência e a cumplicidade de Irene, que só não foi junto porque tinha uma situação de saúde bem mais frágil do que a dele.

 

Uma bela história de amor revela-se ao longo do filme, ao mesmo tempo em que fica evidente que os desejos e os sonhos não têm idade e sempre podem ser perseguidos, mesmo diante das limitações da velhice.  Aliás, essas limitações são muito claramente mostradas, assim como fica claro que uma mente preservada pode muito e sustenta a vida, ainda que o corpo, geralmente, não tenha mais condições de acompanhá-la.

 

O final da vida também parece gerar a necessidade e a urgência de realizar algo importante, ainda que com isso o restante da vida fique mais comprometido ou seja abreviado.  Afinal, quem viveu muito pode se dar ao luxo de correr esse risco.  Outro aspecto enfatizado pelo filme são as memórias, as lembranças recorrentes, os prazeres, dores e culpas que o passado deixou como marcas permanentes.

 


Como se pode ver, “A Grande Fuga” enfrenta a complexidade das coisas, não é negacionista, nem se pretende servir de autoajuda ou conceber o final feliz da existência, que não existe.  Sim, valoriza e celebra a vida, mas como ela é, sem idealizá-la. A própria celebridade alcançada por Bernie passa pelo crivo da crítica.  Não há qualquer deslumbramento nisso.  Pessoas inteligentes conseguem analisar essas coisas e não deixam de fazê-lo na velhice.  Boa parte dos profissionais que cuidam de pessoas idosas tendem a tratá-las de forma infantilizada, sem se dar conta disso.

 

“A Grande Fuga” é um mergulho na personalidade de dois personagens fascinantes, Bernie e Irene, vividos por um ator e uma atriz soberbos, impecáveis, que nos conquistam a cada plano, a cada sequência.  Evidentemente, o filme produzirá uma reflexão mais profunda naqueles que já estão numa idade mais avançada e, provavelmente, menos nos jovens.  Para os que fazem empatia com pais ou avós, não faltará oportunidade de ampliar a compreensão da velhice como um estado de vida limitador e rico ao mesmo tempo.  Pelo peso da experiência e da maturidade que compensa as agruras inevitáveis da decrepitude física.  O papel de Glenda Jackson é especialmente relevante nesse aspecto.

 

“A Grande Fuga” tem também uma série de sequências que remetem ao passado dos personagens, seu amor na juventude (papéis de Will Fletcher e Laura Marcus) e ainda as lembranças da batalha do Dia D na Normandia, o que dá margem a cenas de ação, bombardeio e explosões, relacionadas à experiência pregressa do personagem de Michael Caine.  Não como um filme de guerra, mas de uma forma mais intimista, com o que a guerra deixa na vida das pessoas, mesmo as que sobreviveram sem perdas aparentes.

 

O mar também dá margem a imagens bonitas e evocativas de uma vivência, muito intensa, que ressurge diante de suas águas.  Na velhice, passado e presente se fundem e, às vezes, se confundem.

 

 

terça-feira, 25 de junho de 2024

AINDA TEMOS O AMANHÃ

                           

Antonio Carlos Egypto




AINDA TEMOS O AMANHÃ (C’è ancora domani).  Itália, 2023.  Direção: Paola Cortellesi.  Elenco: Paola Cortellesi, Valerio Mastandrea, Romana Maggiore Romano, Emanuela Fanelli, Giorgio Colangeli, Francesco Centorame.  118 min.

 

“Ainda Temos o Amanhã” é um filme autoral.  Sua diretora, corroteirista e atriz principal é Paola Cortellesi.  É o seu primeiro longa como diretora, mas com talento de veterana.  O filme é muito bem concebido e realizado.  Para começar, pela feliz escolha da imagem em preto e branco que, aliada à caracterização de época, bastante cuidadosa e competente, nos remete à Roma do final dos anos 1940 e início dos 1950. 

 

O roteiro, muito bem construído, produziu uma trama envolvente, com qualidade dramática, leveza e humor, muito bem contextualizados.

 

A sociedade italiana, seu machismo atávico e o patriarcado opressor estão bem mostrados, fazendo um retrato nítido da estrutura social da época, que remete não só à Itália, mas a muitas outras partes do globo, cujos efeitos são claramente sentidos até os dias atuais.

 


“Ainda Temos o Amanhã” buscou e alcançou uma comunicação popular, comprovada pelo grande sucesso de bilheteria na Itália, que levou 5 milhões de espectadores aos cinemas, rendeu 24 milhões de euros e a pré-indicação para representar a Itália no Oscar de filme internacional.

 

É difícil encontrar um produto artístico que consiga aliar a profundidade intelectual a um bom apelo popular.  Ou seja, transmitir bem questões importantes numa linguagem de fácil assimilação popular.  Paola Cortellesi conseguiu isso e, a meu ver, criou um dos mais interessantes filmes feministas da história do cinema.

 

Um feminismo que se manifesta na vivência individual das mulheres que, mesmo com suas diferentes condições, tem um substrato comum, marcado pela organização social, pela coletividade.  Assim sendo, as soluções também têm de ser coletivas.  O filme faz essa passagem brilhantemente.  Tem um final emocionante, que é bom não comentar, mas que conquista a plateia.  Pela forma como se desenrola e pela forma surpreendente como acontece.  A partir de um elemento misterioso que se insere na trama.  É um filme que recomendo vivamente que assistam.

 


Ele faz parte e é o filme de abertura da 11ª. edição da 8 1/2 Festa do Cinema Italiano, que ocorre de 27 de junho a 3 de julho de 2024.  Em São Paulo, no Espaço de Cinema Augusta, no cine Reag Belas Artes, no cine Satyros Bijou e no Cinesystem Frei Caneca.  Mas o festival alcança 22 cidades brasileiras, entre elas, praticamente, todas as capitais de Estados.  A programação, os locais de exibição e informação sobre os filmes poderão ser consultados no site www.festadocinemaitaliano.com.br  Além de “Ainda Temos o Amanhã”, gostaria de recomendar que conferissem os filmes de Daniele Lucheti, que estará no Brasil participando do evento, com “Segredos”, destacar o novo trabalho de Marco Bellochio, com “Sequestro do Papa”, e “A Imensidão”, de Emanuele Crialese, cineastas talentosos e já consagrados.  Mas há muito mais para ver, além desses.



 

sábado, 15 de junho de 2024

A ORDEM DO TEMPO

 

Antonio Carlos Egypto

 



A ORDEM DO TEMPO (L’Ordine del Tempo).  Itália, 2023.  Direção: Liliana Cavani.  Roteiro: Liliana Cavani e Carlo Rovelli.  Elenco: Alessandro Gassman, Claudia Gerini, Fabrizio Rongione, Angela Molina, Richard Sammel.  113 min.

 

No momento em que vivemos às voltas com as emergências climáticas e suas consequências terríveis para a humanidade, como degelo polar, aquecimento dos oceanos, submersão de cidades inteiras, secas prolongadas, calor insuportável, convivência com novos vírus, doenças e pandemias, a ideia de um final dos tempos parece algo admissível e, talvez, até próximo.

 

Por isso não é de estranhar que “A Ordem do Tempo”, trabalho de Carlo Rovelli, um físico teórico e especialista no estudo da gravidade quântica, que apresenta sua interpretação dos mistérios do tempo, tenha inspirado o novo trabalho da veterana diretora italiana Liliana Cavani, em atividade, veja só, aos 91 anos.  Segundo ela, “Toda a nossa Física, e a ciência em geral, trata de como as coisas se desenvolvem conforme a ordem do tempo (...) como humanos e parte do Universo, embarcamos na jornada da vida sem termos escolhido fazê-lo.  Simplesmente acontece, como tudo acontece segundo a ordem do tempo”.   E foi pela ótica de um final dos tempos que ela gestou o seu filme.

 

Aqui, o risco de um fim para toda a humanidade está focado na entrada ocasional no sistema solar do imenso asteroide Anaconda, a uma velocidade inesperada, em vias de chocar-se com o planeta Terra e destruí-lo.  Algo semelhante teria acontecido quando do desaparecimento dos dinossauros, há milhões de anos.

 

Quem vai viver a angústia dessa descoberta funesta é um grupo de amigos que se reúnem no aniversário de 50 anos de uma mulher, numa localidade de praia, numa ampla e bela casa, cercada pela natureza do lugar.  São pessoas de educação refinada, formações variadas e sucesso econômico na vida. Classe alta ou média alta.

 


Num mundo onde a velocidade das informações é instantânea, estranha-se que esse seleto grupo seja portador de uma notícia como essa, que não está divulgada e esclarecida a contento.  Um dos convivas, por sua especialidade, tem acesso a essas informações que, decide-se em algum foro superior, não serão esclarecidas à população convenientemente.  Até porque teria pegado a todos os especialistas de surpresa e o tempo que restaria para esse impacto seria apenas de algumas horas.

 

Pois bem, diante disso, as pessoas vão ter de encarar algumas coisas que estavam escondidas, camufladas, negadas, adaptadas sem a devida revisão crítica.  Enfim, diante do fim do mundo e quando nos resta pouquíssimo tempo, é agora ou nunca.

 

Seria de se esperar, ainda mais num filme italiano, doses de emocionalidade e descontrole muito grandes.  Mas, não.  Nesse grupo, mesmo com o fim do mundo, tudo se faz com contenção.  Apelando para comprimidos, bebidas, um choro nervoso, um abandono do local, conversas francas que nunca existiram. E até um breve momento de descontração com música e dança.  Mas não mais do que isso.  Consequentemente, o filme fica morno, sem a tensão que um Lars von Trier já colocou em situação semelhante, nem a densidade de um Ingmar Bergman. 

 

Mas Liliana Cavani é uma diretora importante da fase áurea do cinema italiano e com a longevidade produtiva que está demonstrando tem de merecer nossa atenção.  Claro que o filme é bem realizado, bem dirigido, com bons atores e atrizes.  Mas, mesmo assim, não chega a empolgar.



terça-feira, 11 de junho de 2024

13 SENTIMENTOS

  Antonio Carlos Egypto                     

 


13 SENTIMENTOS.  Brasil, 2024.  Direção e roteiro: Daniel Ribeiro.  Elenco: Artur Volpi, Juliana Gerais, Michel Joelsas, Marcos Oi, Sidney Santiago, Helena Albergaria.  100 min.

 

“13 Sentimentos” aborda o que acontece com alguém quando se dá a ruptura de uma relação amorosa estável, que já durava 10 anos.  Esse é o caso de João (Artur Volpi), aos 32 anos.  A relação homoafetiva com Hugo (Sidney Santiago) parece ter tido um final feliz, o fim perfeito de um relacionamento realizado consensualmente e com a amizade mantida, pelo menos os contatos telefônicos ou via Internet.

 

Claro que não é tão simples assim.  O personagem João é um roteirista e cineasta que busca ter controle sobre a realidade e assim não sofrer muito.  Mas é muito difícil para ele voltar aos encontros românticos, saber que seu ex pode estar se encontrando com outras pessoas e tudo o mais que surge nessas circunstâncias.  Estar aberto e disponível a um novo romance leva tempo, o coração tem de se abrir, não criar restrições a priori, não se deixar levar por uma imaginação fértil que acabe complicando as coisas.

 

É desse processo que trata o filme.  João convive com um amigo e uma amiga, também gays, que o ajudam a pensar a situação, se destravar, abrir-se a novas relações, mas ele precisa de tempo e de experimentar novos contatos até chegar a reconstruir sua vida amorosa e sexual.  Que, afinal, um dia acontecerá.  Mas encontrará muitos percalços pela frente.

 

Esse tipo de assunto contém, evidentemente, elementos dramáticos.  Afinal, separações envolvem dor, sofrimento, decepções, frustração, fantasias não realizadas.  Podem levar a uma tristeza que produza uma depressão temporária.  São os tais “13 sentimentos” do título, embora exista aí uma brincadeira com um roteiro chamado de 13 centímetros, que também pode não ser o que você está pensando. 

 

O fato é que Daniel Ribeiro construiu, com esse tema, que, segundo ele, é inspirado em sua própria vivência, não um drama, mas uma comédia romântica.  Tudo tratado com leveza, sem menosprezar a importância que tem para o personagem.

 


Um elenco jovem e entusiasmado, pelo que se viu no lançamento do filme, garante uma atmosfera agradável à trama.  Com destaque, evidentemente, para Artur Volpi, o protagonista, que está em cena o tempo todo e segura o clima do filme.

 

O diretor Daniel Ribeiro já nos deu “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, em 2014, um ótimo trabalho que também envolvia a sexualidade dos adolescentes e a questão da cegueira, com muita sensibilidade.

 

Em “13 Sentimentos”, as características da cena gay se destacam, mas envolvimento amoroso todo mundo tem e separações que envolvem fortes sentimentos, também.  Assim é possível identificar-se com a situação e acompanhar o filme com interesse.

 

In-Edit Brasil

De 12 a 23 de junho acontece em São Paulo o festival de documentários musicais (nacionais e internacionais) In-Edit Brasil, em sua 16ª. edição, com sessões gratuitas na Cinemateca Brasileira, no Cinesesc, no cine Bijou, no cine Matilha e no circuito Spcine, além de filmes que podem ser acessados on line.

Consulte: in-Edit Brasil 2024 – Festival Internacional do Documentário Musical.



quinta-feira, 6 de junho de 2024

GRANDE SERTÃO

Antonio Carlos Egypto

 


GRANDE SERTÃO.  Brasil, 2024.  Direção: Guel Arraes.  Roteiro: Guel Arraes e Jorge Furtado.  Elenco: Caio Blat, Luísa Arraes, Luís Miranda, Rodrigo Lombardi, Eduardo Sterblitch.  116 min.

 

Encarar a adaptação cinematográfica de uma obra literária do porte de Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, implica um desafio imenso.  Trata-se de um livro tão renovador na linguagem, na compreensão de figuras humanas complexas marcadas por sua terra, seus valores, suas crenças, formando um universo próprio, com personagens tão fortes, que é muito fácil se perder pelo caminho.

 

Guel Arraes, o diretor, e Jorge Furtado, dois grandes talentos do cinema brasileiro, fizeram essa adaptação como uma releitura, num roteiro que procurou trazer todo o universo do autor para o momento atual.

 

Guel Arraes ao microfone

Não mais a vida rural, jagunços, cangaceiros, mas bandidos organizados e a polícia, um enfrentamento que produz uma guerra civil não declarada e cujas intenções nem são claramente perceptíveis, entram em seu lugar.  A guerra é outra, mais ampla e generalizada, ocupando as periferias das grandes cidades e muitos outros espaços.  O grande sertão agora é aqui.

 

Lá estão os personagens icônicos de Guimarães Rosa, Riobaldo (Caio Blat), Diadorim (Luísa Arraes), Zé Bebelo (Luís Miranda), Joca Ramiro (Rodrigo Lombardi), Hermógenes (Eduardo Sterblitch) e outros, vivendo em plena guerra urbana dos nossos dias, ainda que sem contextualização específica, de lugar ou época.

 

O amor que nasce desde a meninice entre Riobaldo e Diadorim está lá, crescendo, desconcertando Riobaldo e acabando por levá-lo a associar-se ao banditismo por amor.  E, então, o filme vai caminhando para ser um espetáculo de ação, muito bem filmado, mas bastante violento, também.  Quem narra tudo são as memórias de Riobaldo, quando velho, o que levou Caio Blat a envergar uma barba imensa, preta, não branca.  É da percepção dos seus sentidos e sentimentos que se move a história, que ele vai narrando, comentando.  É aí que a inspiração poética de Rosa se faz presente.  As falas do personagem Riobaldo, magnificamente vivido por Caio Blat ao longo de todo o filme, ganham especial expressão e inovam na narração cinematográfica, a exemplo do livro.

 

A questão de gênero colocada nessa relação de Riobaldo com Diadorim deu margem a um desempenho muito intenso de Luísa Arraes, envergando uma dimensão de força e coragem, habitualmente associada ao lado masculino, que é bem marcante. 

 


Aliás, o elenco todo está afinado.  O policial “do bem”, que ficou sendo o Zé Bebelo de Luís Miranda, é muito convincente, assim como o comandante do grupo de bandidos, vivido por Rodrigo Lombardi, e a incrível caracterização do bandidão tresloucado Hermógenes, vivido por Eduardo Sterblitch, surpreende positivamente.

 

É importante pontuar que bandidos ou policiais “do bem”, assim como bandido que assim se torna por amor a outro, dão uma dimensão que quebra toda a expectativa de bem e mal, mocinho e bandido, em que pese a desgraça dessa guerra urbana atual.  É possível compreender o outro lado das coisas, sejam elas ações baseadas na sobrevivência, na lei, no confronto de interesses ou na paixão? 

 

O filme é, nesse sentido, bastante sintonizado com a obra que lhe deu origem.  É tão complexo quanto e tão poético quanto.  A violência que sobressai na adaptação cinematográfica, a meu ver, foi excessiva.




quinta-feira, 30 de maio de 2024

A FILHA DO PALHAÇO

                                 

 Antonio Carlos Egypto

 


A FILHA DO PALHAÇO.  Brasil, 2022.  Direção: Pedro Diógenes.  Elenco: Lis Sutter, Demick Lopes, Jesuíta Barbosa, Jupyra Carvalho, Ana Luiza Rios.  104 min.

 

A questão da paternidade num contexto familiar complexo coloca-se para a jovem Joana (Lis Sutter) aos 15 anos. E, como é natural, ela vai em busca de respostas para um relacionamento que praticamente não aconteceu ou restringia-se a momentos de Natal ou aniversário, quando muito.  Por que o pai a teria abandonado, deixando à mãe toda a responsabilidade pela educação e convívio com ela?  Por que ela sente a rejeição da mãe a ele e percebe o distanciamento que existe ali?

 

Só há uma maneira de enfrentar o desconhecido e é encará-lo, ainda que doa ou seja sofrido.  A oportunidade se coloca e ela conviverá com o pai Renato por uma semana inteira.  Um mundo a descobrir diante de tanta distância e ausência.

 

Renato (Demick Lopes), o pai, trabalha como ator transformista em bares, restaurantes e outros locais, fazendo humor e provocações aos frequentadores, com base numa personagem que construiu, Silvanelly, para ganhar a vida.  Mas seu momento não é de glória, mas de decadência. Numa cena do filme, um diálogo é bem esclarecedor.  Renato conta para Joana que o pai dele (avô dela) não tinha o filho que queria ter.  Ao que ela responde, mas às vezes também não temos o pai que queremos ter.

 

Escancarado o sentimento de rejeição de Renato, fica mais fácil a aproximação do espectador com o seu personagem.  E, vendo o esforço que ele e ela fazem para estar juntos, entendemos que é de relações e afeto que trata o filme.  Levantando questões que dizem respeito à diversidade, evidentemente, às transformações pelo que as pessoas passam, às mudanças que acontecem e com uma característica primordial: a busca pela aceitação, pelo afeto que faz falta.  A farta trilha musical do filme, repleta de canções, enfatiza bem isso.

 

Numa primeira leitura, pode-se ver uma família destroçada, que não existe ou que fica restrita a mãe e filha.  Mas por que não poderia ser uma família como qualquer outra, que possa encontrar caminhos de unir-se e conviver, quem sabe corrigir, perdoar ou relevar erros do passado, em busca de uma reconstrução?  Afinal, existem os mais diversos tipos de famílias na realidade social e concreta da vida.  Elas não seguem regras ou fórmulas, por mais que continuemos insistindo nisso.  Não existe a família, existem famílias no plural, de todos os tipos e modelos, com pais separados, cuidada só pela mãe ou só pelo pai (embora muito menos frequente), família com dois lares dividindo os filhos pelos dias da semana, famílias homoafetivas, de gays, lésbicas e de todas as variações não-binárias, que hoje não mais se escondem, tendem a se revelar.  Tudo é bem mais complexo do que parece, ou pareceu, num passado não muito distante.  Tem gente que nunca saiu dele, mas esses ficarão para trás, serão superados pelas evidências.

 

Jesuita Barbosa e Pedro Diógenes no Cinesesc

Nesse filme de relações e afetos, o papel desempenhado por Demick Lopes é central.  Seu desafio é viver dois personagens distintos, o tempo todo.  Simbolicamente, o palhaço e seu drama nos bastidores.  Travestido de mulher de forma exagerada, esse contraste se estabelece estridentemente.  O palco e a queda em um segundo.

 

O curioso é que quem aparece com cara de palhaço é o personagem Marlon, de Jesuíta Barbosa, muito à vontade no papel, que faz o elo de ligação entre as duas vidas, digamos assim, de Renato/Silvanelly e sua história, agora com a filha ali, mas com o desejo lá, também.

 

Da estreante Lis Sutter, no papel de Joana, percebe-se o trabalho realizado pelo diretor Pedro Diógenes e pela equipe do filme.  Ela segurou muito bem o seu papel de protagonista.

 

É importante apontar ainda que o filme foi realizado durante uma pequena trégua da pandemia.  Não há ninguém usando máscara, no filme, mas o clima dos contatos é tenso, cuidadoso, às vezes travado, indicando claramente que o momento também faz, fez, no caso, o filme.

 

Bem, e por fim, mas não menos importante é salientar que “A Filha do Palhaço” é um filme cearense até a medula.  Não só porque seja filmado em Fortaleza com equipe cearense, mas porque se vale da cultura cearense, com seu humor característico e onipresente por lá, inspirado e homenageando um ator recém-falecido, Paulo Diógenes, primo do diretor, e sua famosa personagem Raimundinha, que todo mundo sabe quem é, no Ceará.  E nós, que não sabemos, podemos apreciar muito bem toda essa simpática e honesta trama que o filme nos oferece.  Questionando, problematizando, abrindo caminhos.