quinta-feira, 23 de setembro de 2010

LÉO E BIA


                       Antonio Carlos Egypto


LÉO E BIA. Brasil, 2010. Direção: Oswaldo Montenegro. Com: Paloma Duarte, Françoise Forton, Emílio Dantas, Fernanda Nobre, Pedro Caetano, Pedro Nercessian. 97 min.


Oswaldo Montenegro, cantor e compositor da MPB, também já escreveu, dirigiu e produziu peças teatrais, entre elas, um musical que teve sucesso nos anos 1980: Leo e Bia. Agora, ele se aventura, como diretor e produtor de cinema, com “Léo e Bia”, o filme.

Trata-se de um grupo de sete amigos jovens, vivendo em Brasília, no auge da ditadura militar, em 1973. Ali, eles buscam montar uma peça de resistência à repressão política, que tece comparações entre Jesus Cristo e Lampião.

O filme se concentra todo nos ensaios do grupo, num galpão, sob a liderança de Léo (Emílio Dantas), e vai mostrando em paralelo os relacionamentos que se estabelecem entre eles e as influências externas ao grupo, que influem no trabalho. A maior e mais dramática delas, a que envolve Bia (Fernanda Nobre) e sua mãe (Françoise Forton), obcecada pela filha e figura opressora, que adoece.

A filmagem, num único espaço de ensaios teatrais, revela o “sufoco” em que viviam os jovens atores na cena cultural de Brasília daqueles anos, em que à aridez da temperatura local se somava a opressão da falta de liberdade que asfixiava a vida cotidiana.

Embora o espaço cênico seja totalmente despojado, fechado e único – não varie ao longo do filme -, a câmera se move, o espaço é explorado até em cenas duplas e evocando o que acontece fora de lá. Neste sentido, não é um filme teatral, embora seja um filme sobre teatro.

As músicas de Montenegro vão pontuando a história, a versatilidade dos jovens atores vai colocando movimento em cena e expressões emocionais intensas são apresentadas. Isso dá um dinamismo que contrasta com o claustrofóbico cenário da filmagem, alivia o clima e dá vigor ao filme.

“Léo e Bia” é ousado, ao encarar as dificuldades que este tipo de projeto apresenta e consegue um bom resultado com um tema que é específico e datado. Segundo a divulgação do filme, tudo foi feito com recursos próprios e sem qualquer patrocínio. Outra ousadia e uma raridade nos dias atuais, em relação ao cinema brasileiro. É uma produção modesta, obviamente também pelas circunstâncias citadas, mas nela se vê o empenho, a criatividade e a garra que também costumam caracterizar os grupos jovens que se dedicam de corpo e alma ao teatro alternativo.

sábado, 18 de setembro de 2010

BAARÌA – A PORTA DO VENTO



Antonio Carlos Egypto


BAARÌA – A PORTA DO VENTO (Baarìa). Itália, 2009. Direção e roteiro: Giuseppe Tornatore. Com: Francesco Scianna, Margareth Madè, Raoul Bova, Angela Molina e Monica Bellucci. 150 min.


Se o diretor italiano Giuseppe Tornatore não tivesse feito nenhum outro filme além de “Cinema Paradiso”, passaria para a história do cinema só por essa maravilhosa película. Ele fez muito mais coisas, por certo, ainda que não tenha voltado a acertar na mosca da mesma forma. Talvez fosse mesmo pedir demais.

Com “Baarìa”, porém, o cinema de Tornatore volta a crescer. É um projeto grandioso, um filme já concebido para ter grande importância e significado na vida do diretor, do cinema italiano em novo momento de crescimento e do espetáculo cinematográfico em geral. “Baarìa” é o nome pelo qual é chamada a cidade de Bagheria, que tem entre suas possíveis etimologias poder derivar de Bab el Gherid, que em árabe significa “A Porta do Vento”. Daí o título do lançamento brasileiro.

Baarìa, na província de Palermo, é a cidade onde nasceu Giuseppe Tornatore e onde viveu até os 28 anos de idade. O filme pretende prestar uma homenagem à sua terra natal e à sua família. É a saga épica de uma família siciliana, através de três gerações, a partir da década de 1930 até a de 1980. Passa, portanto, pela ascensão e solidificação do fascismo, a Segunda Guerra Mundial e a fome que dela resultou e a consequente paixão pela política, que envolve Peppino (Francesco Scianna). São os tempos das lendárias esperanças que o PCI (Partido Comunista Italiano) despertava. Mas do modelo soviético nas mãos de Stálin começam a surgir as dúvidas.

De toda maneira, foram tempos de muitas e decisivas convicções. Mudar o mundo era um imperativo. O militante comunista encontraria, por outro lado, as incompreensões e os preconceitos habituais, incluindo a velha história de que “comunista come criancinha”, que não deixa de ser citada no filme. Em momento já de maturidade, sua atuação será chamada de reformista. E ele explica ao filho o que é isso: “reformista é aquele que sabe que, ao bater com a cabeça no muro, você quebra a cabeça, não o muro”.

Peppino encontra a mulher de sua vida, Mannina (Margareth Madè), e ela terá de entender e acompanhar as lutas políticas do marido. Os jovens amantes buscarão a realização de seus sonhos, vivendo todas as dificuldades possíveis. Entre elas, a presença do crime organizado na história.

Cada cena é bem trabalhada e realizada com capricho, mesmo aquelas que tratam de coisas banais. Por exemplo, o filme começa com a corrida de um garoto para comprar cigarros para um adulto, em troca de uma moeda. A filmagem dessa cena já tem um caráter forte e intenso e servirá de base para a mudança de época ao longo da película.

De Cicco para seu filho Peppino até seu neto, Pietro, o filme é um relato dessa saga familiar em que as emoções afloram todo o tempo. Grandes paixões, alegrias e tragédias pontuam a história, que é também recheada de humor e poesia.

A reconstrução das diferentes épocas por que passa a trama do filme se faz por meio de uma estética cativante. Locações na Tunísia, segundo informa o diretor de arte Maurizio Sabatini, além de levar a belos lugares, apresentam uma série de analogias com Baarìa, como era no início do século XX. Ainda segundo ele, a construção dos cenários envolveu desafios à criatividade, para que se pudesse passar de uma época a outra em questão de dias. O resultado é amplamente convincente.

Os números divulgados relativos ao filme são todos grandiosos. Uma superprodução que levou 9 meses de preparação, 12 meses para a construção dos sets, 25 semanas de filmagens, envolvendo 122 locações, 2800 trajes, 63 atores profissionais, 147 não profissionais e 35.000 figurantes, 27 temas originais de música, sob a responsabilidade de Ennio Morricone para 210 personagens.

Não é apenas o fato de ser superprodução de alta qualidade o que importa. Mas é que se trata também de um trabalho que tem grande investimento afetivo do diretor. Um filme que evoca memórias, amores, sonhos e desilusões de personagens marcados pela cultura siciliana, mostrada sobretudo no comportamento intenso, histriônico dos seus habitantes e em que a intimidade é vivida de forma pública. A história dos personagens se funde com a história política da Sicília e, consequentemente, da Itália. Na medida em que o espectador se emociona com os muitos elementos constitutivos da saga e se maravilha com as imagens que a telona apresenta, vai aprendendo algo sobre a história política da Itália, ao longo de grande parte do século XX.

O filme é longo, são duas horas e meia de projeção, mas não dá para sentir o tempo passar, pelo envolvimento que se tem com personagens e situações tão próximas de todos, apesar das diferenças culturais, além da beleza que impregna toda a película. E a gente até quer mais. “Baarìa” foi um investimento de peso, dando suporte ao roteiro e direção de uma história pessoal e autoral de Giuseppe Tornatore. Compensou artisticamente o custo. É o melhor filme dele desde “Cinema Paradiso”, de 1989. 

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O PECADO DE HADEWIJCH

Antonio Carlos Egypto

O PECADO DE HADEWIJCH (Hadewijch). França, 2009. Direção: Bruno Dumont. Com: Julie Sokolowski, Yassine Salime, David Dewaele, Karl Sarafis. 120 min.

Noviças podem ter muitas dificuldades para se adaptar à vida de orações, sacrifícios e simplicidade de um convento. Há ainda a considerar a perda da liberdade e os desafios da fé.

No filme de Bruno Dumont, a protagonista, vivida pela atriz Julie Sokolowski, não tem esse problema. Ou melhor, tem o problema oposto: é tão fanática, que leva os sacrifícios ao extremo, negando a própria existência do corpo. Não come, não se protege do frio, reza de forma compulsiva. Vive alheia a tudo que não seja o seu “casamento” com Cristo e a adoração de sua imagem em martírio.

A coisa, evidentemente, extrapola os limites. Até mesmo das freiras. A superiora acaba concluindo que é melhor que ela passe um tempo fora do convento, convivendo com o mundo exterior. As portas estarão sempre abertas para ela, mas algo precisa mudar. Quem sabe, ao se conectar com o mundo, ela possa temperar a alienação em que se coloca. Deve ter sido esse o pensamento da personagem da madre superiora. Bem, pelo menos é o que o espectador pensará, a partir do que o filme mostra até ali.

A agora cidadã Celine vai buscar o que no “mundo”? A amizade de um rapaz, ou vários, por que não? Mas não carícias, sexo ou amor. É de Cristo que ela precisa e sente falta. Fisicamente, até. Afinal, os hormônios estão lá. Deve caber a Ele satisfazê-la.

É bem estranha, mas muito interessante a caracterização dessa personagem, sua alienação e loucura. Porque procura revelar os meandros do que vai pela mente das pessoas fanatizadas pela religião. Vale dizer, por qualquer verdade absoluta.

Os fanatismos se aproximam e Celine vai conhecer o lado islâmico dessa história. Uma espécie de fanatismo que soará até familiar a ela. E daí se desenvolverá uma trama densa e pesada, mas muito consistente. E assustadora.

O diretor Bruno Dumont, de quem vimos “A Vida de Jesus” e “Humanidade”, põe o dedo na ferida do fundamentalismo religioso e suas relações com a doença mental. Mostra a que podem chegar esses excessos e também o que eles podem estar encobrindo. Os riscos estão aí, por toda parte.

Ele conta a sua história, com as personagens principais bem delineadas, deixando em suspense o que vai acontecer, dando tempo para que observemos as ações, os desejos, a solidão, o vazio. O diretor parece ter especial interesse pelas personagens que vagam sem rumo, as que estão perdidas pelo mundo, desencontradas ou sem saber o que buscar. Seus outros filmes exibidos por aqui vão nessa linha.

Em “O Pecado de Hadewijch” seu foco foi muito firme numa questão importante do nosso tempo, revelada por personagens intrigantes. É um trabalho que, sem dúvida, merece atenção. O filme recebeu o Prêmio da Crítica, no Festival de Toronto de 2009.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Nosso Lar

Tatiana Babadobulos

Nosso Lar. Brasil, 2010. Direção e roteiro: Wagner Assis. Com: Renato Prieto, Fernando Alves Pinto, Rosanne Mulholland, Inez Viana, Rodrigo dos Santos, Werner Schünemann, Clemente Viscaíno, Othon Bastos, Ana Rosa, Paulo Goulart. 102 min.

O que acontece depois que a gente morre? Uma das maiores dúvidas dos mortais é o que o livro espírita “Nosso Lar”, psicografado pelo médium mineiro Chico Xavier, pretende responder. E, depois de o cinema contar a história dele (e de a televisão exibir novelas e seriados sobre o assunto, como “Escrito nas Estrelas” e “A Cura”, para ficar nos atuais), chega aos cinemas o filme baseado no livro de André Luiz, médico que “ditou” sua expe­riência após sua morte.

O longa começa impactante: de forma não-linear, conta a história do médico que vivia reclamando dos atendimentos no consultório, e, após sua morte, acorda em um lugar sombrio, o tal lim­bo: nem no céu nem na Terra. Após ser resgatado com dor e sofrimento, André (Renato Prieto) é leva­do para o Nosso Lar, local onde recebe um tratamento e começa a entender o que aconteceu com seu corpo e sua alma após o último piscar de olhos “na carne”.

Embora a fita tenha a pretensão de ser didática ao público que não é familiarizado com o espiritismo, há muitas lacunas a serem preenchidas. Por outro lado, é maçante demais quando tenta explicar, como posso dizer?, o inexplicável.

Para diferenciar o mundo terreno do “plano superior” entram em ação os efei­tos visuais e a precária direção de arte, que faz a casa onde viveu o médico nos anos 1930 ser do século 19, e o tal plano superior mais moderno que qualquer episódio de “Os Jetsons”. Para essa dife­rença, aliás, há uma breve explicação: segundo Lísias (Fernando Alves Pinto), um dos responsá­veis por apresentar o Nosso Lar a André, tu­do começa antes neste plano e só depois, quando um reencarna, é que leva a memória para desenvolver algo bastante tecnológico, por exemplo.

Por falar em efeitos especiais, o longa brasileiro teve essas cenas desenvolvidas no Canadá, na Intelligent Creatures, mesma empresa responsável por filmes como “Fonte da Vida”, “Babel” e “Watchmen”. Embora alguns efeitos sejam bem-vindos, outros são grosseiros, como a criação de uma cidade inteira por computador, fazendo com que pareça falso demais, com o uso do chroma-key (fundo azul).

Além do limbo e do plano superior, há cenas nas quais o personagem vai “visitar” a família na Terra e ver como andam as coisas por lá, enviar um sonho, recados (como o caso do livro), receber mensagens através de orações e até ser visto por alguém durante a passagem de sua alma.

Uma das cenas interessantes e que podem ser aplicadas no nosso cotidiano é a água da paciência. Repare!

Ainda que a maioria dos atores seja desconhecida, há estrelas como Paulo Goulart, Othon Bastos, Werner Schünemann. O protagonista, Renato Prieto, emagreceu cerca de 18 quilos para viver o personagem, além de ter, juntamente com o restante do elenco e da equipe, passado por preparação na Federação Espírita Brasileira e de ter tido contato com o livro do médium.

Dirigido por Wagner de Assis (de “A Cartomante”), “Nosso Lar” é destinado a um público específico, ou seja, o espírita que, no mínimo, já se convenceu da ideia de que existe vida após a morte. Quem não acredita na história, não vai se convencer da produção. Nem adianta tentar.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

O REFÚGIO

Antonio Carlos Egypto

O REFÚGIO (Le Refuge). França, 2009. Direção: François Ozon. Com: Isabelle Carré, Louis-Ronan Choisy, Pierre-Louis Calixte, Melvil Poupard. 90 min.


O filme começa com um jovem casal na cama, no quarto, injetando heroína nas veias, sem parar. Vê-se que já não há mais onde picar e que, para uma dependência como esta, o fim está próximo. É o que de fato acontece com o rapaz, Louis, morte por overdose. Mas a moça, Mousse, sobrevive.

Para se livrar da dependência de heroína, há jeito: tratamentos à base de metadona costumam funcionar. Mas há um grande complicador: ao ser socorrida no hospital, descobre-se que ela está grávida. Do jovem e finado Louis, por suposto.

Prosseguir com essa gravidez inesperada, apesar da oposição da família dele? Realizar o aborto? Haverá espaço para cuidar de uma criança na vida dessa jovem, até aqui vivendo em função das drogas?

Uma casa de praia, longe de Paris, pode ser o refúgio ideal, numa hora dessas. Mas e se o irmão de Louis aparecer por lá? Muita coisa pode vir daí.

Como de hábito, François Ozon aborda relações humanas em que coisas um tanto fora do padrão acontecem. Os personagens têm algo que os diferencia do usual, seja uma personalidade, seja uma circunstância ou um mistério qualquer. Histórias que poderiam parecer comuns tomam rumos inesperados. “O Refúgio” vai nessa linha e consegue prender o interesse o tempo todo.

François Ozon, desde o seu primeiro filme, “Sitcom-Nossa Linda Família”, de 1998, foi sempre um diretor capaz de inovar no clima e na temática de suas histórias e, com frequência, intrigar. Foi assim com “Amantes Criminais”, de 1999, e “Gotas D’Água em Pedras Escaldantes”, também de 1999, esse baseado em texto teatral de Rainer Werner Fassbinder, o mestre alemão do cinema. Depois, vieram o inusitado “Sob a Areia”, de 2000, e “Swimming Pool – À Beira da Piscina”, de 2002, onde uma competição raivosa e contida entre duas mulheres, em momentos diferentes de vida e com idades muito distintas, se estabelece. Filmes fortes e desafiadores, que não combinavam com a investida de Ozon no superespetáculo que foi “Angel”, de 2007, uma história de amor mais convencional e ao estilo clássico.

Felizmente, “O Refúgio” traz o Ozon mais intrigante de volta. A fita recebeu o prêmio especial do júri do Festival Internacional do Filme, de San Sebastian.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

5 X FAVELA – AGORA POR NÓS MESMOS



Antonio Carlos Egypto

5 X FAVELA – AGORA POR NÓS MESMOS. Brasil, 2010. Direção: Cadu Barcelos, Luciana Bezerra, Luciano Vidigal, Manaíra Carneiro e Wagner Novais, Rodrigo Felha e Cacau Amaral. Com Vítor Carvalho, Márcio Vítor, Pablo Vinícius, Juan Paiva e outros. 96 min.


“5 vezes Favela – Agora por nós mesmos”, como o próprio nome já indica, é uma coleção de curtas, contando histórias de personagens que vivem em favelas – do Rio de Janeiro, no caso. Como todo filme de episódios, acaba sendo irregular, uma história é melhor do que outra, uma é melhor dirigida ou tem melhores interpretações do que outra e assim por diante. Inevitável isso.

O que “5 X Favela” tem de mais interessante é o seu complemento: “agora por nós mesmos”. Ou seja, ele retoma a experiência histórica do original famoso de 1962, porém, com um novo olhar, o dos moradores das comunidades.

As histórias foram criadas, dirigidas e interpretadas por eles, com a participação de alguns atores profissionais, num projeto concebido por Cacá Diegues. Aqui se revelam o jeito de ver, sentir e existir dos moradores das favelas. Suas dificuldades, seus relacionamentos, seu humor, seus dramas. Algumas coisas surpreendem, apesar do muito que já se abordou o universo das favelas no cinema brasileiro, especialmente na última década.

A violência está presente, claro, mas não dá o tom do filme. Só um dos episódios traz a violência dos confrontos armados que inviabilizam uma vida digna e em paz. Esse episódio, “Concerto de Violino”, reforça o que estamos cansados de ver em filmes feitos por quem está de fora da favela e também no cotidiano dos telejornais. Mostra também vínculos entre a polícia e facções criminosas. Aqui, como nos outros curtas, fica evidente a dificuldade de se separar de alguma transgressão ou ilegalidade.

O que os outros episódios mostram é que há muitas outras situações – que não envolvem armas --, em que as escolhas são difíceis. Por exemplo, adianta passar no vestibular da universidade pública se falta grana para livros e até para a condução? E como obter esse dinheiro sem praticar nenhuma transgressão à lei?

As agruras de um menino que quer poder oferecer um frango no aniversário do pai, que só consegue comer arroz e feijão todo dia, também passam por fazer algo que não seria moralmente aceitável.

E diante da pouca atenção dos serviços públicos e da insensiblidade de um profissional, quando na véspera do Natal falta luz na favela? Como resolver isso sem apelar, nem para a violência, nem para a ilegalidade? O jeitinho temperado com humor acaba aparecendo.

Por mais que os conceitos éticos estejam bem internalizados na mente das pessoas, a carência absoluta cria situações que desafiam as possibilidades de se seguir o caminho do direito e da legalidade, durante todo o tempo. Quando se vive no limite da subsistência e sem direito mesmo ao sonho, a linha que separa moralmente o que se pode ou não fazer é muito tênue. O desafio está em toda parte. É isso que o filme nos mostra, por meio de suas histórias, bem diferentes uma da outra, mas que se aproximam por essa questão básica: o dilema moral.

A solidariedade é uma característica que costuma ser muito atribuída aos mais pobres, que dividem até o que não têm. “5 X Favela” não nega isso, mas mostra também as hostilidades, as divisões e, consequentemente, os preconceitos que também existem entre grupos e comunidades. A história do menino que cruza a ponte e vai em busca de uma pipa do outro lado revela o clima latente de violência e intolerância, ao mesmo tempo em que afirma a possibilidade do entendimento por meio do amor, a la Romeu e Julieta. É o episódio mais interessante do filme, porque é o que consegue com maior eficiência mostrar o clima de tensão que se estabelece, dispensando a ação. A sutileza é muito mais cinematográfica do que a pancadaria e até o amor pode se revelar em pequenos gestos.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

ENFIM VIÚVA


Antonio Carlos Egypto


ENFIM VIÚVA (Enfin Veuve). França, 2007. Direção: Isabelle Mergault. Com: Michèlle Laroque, Jacques Gamblin, Wladimir Yardonoff, Tom Morton, Claire Nadeau. 93 min.

Mulher tem alto padrão de vida: bela casa, muito conforto, serviçais. Tudo isso por conta de um casamento com um homem muito bem sucedido nos negócios, profundo conhecedor do que faz.

Esse casamento, no entanto, é para ela um tédio. O marido não se interessa por ela, não a valoriza, nem a respeita, mal a nota, na verdade. Embora ele dê tudo em termos materiais. Uma vida que, vista de fora, parece perfeita, um sonho, até.

Todo prazer dela está num amante que vive no porto. É uma relação de que todo mundo na cidade parece saber da existência. Menos o marido, claro.

Ela tenta se virar com as desculpas mais esfarrapadas, para ir ao encontro do amante. Mas não engana nem a própria empregada. Até que... ele morre abruptamente, num acidente. E é do que se segue a isso que trata esta comédia, que consegue extrair alguns sorrisos e risadas da plateia, explorando o inusitado da situação.

Os familiares que vivem fora da cidade, inclusive o filho casado, vêm para consolá-la. Veem tristeza e desamparo onde o que existe é alívio e uma ansiedade por uma viagem de que ninguém poderia suspeitar.

O mais interessante do filme é a constatação de que o ser humano se comporta de acordo com o que imagina que o outro sente. E interpreta as ações do outro a partir do referencial que armou para avaliá-las. Aí tudo parece completamente diferente do que de fato é.

A utilização do clichê interpretativo – aquilo que é socialmente esperado – pode nos levar a coisas absurdas, opostas às necessidades e desejos da outra pessoa. A menos que ela explicite, de forma assertiva, o que sente e o que quer, podemos atuar a léguas de distância dessas necessidades. Ou, até mesmo, bloqueá-las de forma intensa. Querendo ser solidários e ajudar, naturalmente.

A graça das situações de “Enfim Viúva” está no fato de que, em nenhuma hipótese, a protagonista poderia ser clara e assertiva no que queria ou pretendia, sem produzir um escândalo de razoáveis proporções. Então, tudo se complica. O espectador se faz cúmplice da protagonista e se diverte com isso.

“Enfim Viúva” é uma comédia sem maiores pretensões, além da diversão ligeira. Mas é possível extrair dela reflexões interessantes sobre as ações humanas e, principalmente, sobre as expectativas que regem os relacionamentos.

A produção é bem cuidada e o elenco é muito bom, tornando verossímeis cenas absolutamente improváveis, fazendo graça sem agredir a inteligência do espectador.