quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Ainda há tempo

Tatiana Babadobulos

Quem não aproveitou a 32ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, pode aproveitar a repescagem neste final de semana. Confira a programação:
31/10, sexta
“A Hora do Lobo” (“Vargtimmen”), de Ingmar Bergman. Cinemateca, 21h
“Absurdistan”, de Veit Helmer. Cinesesc, 16h
“Aquele Querido Mês de Agosto”, de Miguel Gomes. Cine Bombril, 18h
“As Lágrimas de Minha Mãe - Berlim-Buenos Aires” (“Die Tränen Meiner Mutter”), de Alejandro Cardenas Amelio. Cine Bombril, 14h
“Bode Rei, Cabra Rainha” + Curtas. Cine Bombril, 15h50
“Che”, de Steven Soderbergh. Cinesesc, 18h10
“Crise” (“Kris”), de Ingmar Bergman. Cinemateca, 14h
“Il Divo”, de Paolo Sorrentino. Cine Bombril, 22h30
“Maldeamores”, de Carlitos Ruiz Ruiz e Mariem Perez Riera. Cine Bombril, 20h50
“Música na Noite” (“Musik I Mörker”), de Ingmar Bergman. Cinemateca, 19h10
“Prisão” (“Fängelse”), de Ingmar Bergman. Cinemateca, 15h50
“Sede de Paixões” (“Törst”), de Ingmar Bergman. Cinemateca, 17h30
“Trato é Trato” (“A Deal is a Deal”), de Jonathan Gershfield. Cinesesc, 14h
01/11, sábado
“Conhecendo Andrei Tarkovsky” (“Meeting Andrei Tarkovsky”), de Dmitry Trakovsky. Cinemateca, 14h
“El Regalo de la Pachamama”, de Toshifumi Matsushita. Cinesesc, 20h
“Estranhos” (“Strangers”), de Erez Tadmor e Guy Nattiv. Cine Bombril, 14h
“Fanny e Alexander” (“Fanny Och Alexander”), de Ingmar Bergman. Cinemateca, 19h40
“Formidável” (“Formidable”), de Dominique Standaert. Cine Bombril, 15h40
“Fuera de Carta”, de Nacho Velilla. Cinemateca, 14h
“Fumando Espero”, de Adriana Dutra. Cinesesc, 18h
“Gomorra” (“Gomorrah”), de Matteo Garrone. Cine Bombril, 19h
“Jodhaa Akbar”, de Ashutosh Gowariker. Cinesesc, 22h
“KFZ-1348”, de Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso. Cinemateca, 16h10
La Boheme”, de Robert Dornhelm. Cinesesc, 15h50
“Loki - Arnaldo Baptista”, de Paulo Henrique Fontenelle. Cine Bombril, 21h30
“Machan”, de Uberto Pasolini. Cinemateca, 21h10
“Mais Sapatos” (“More Shoes”), de Lee Kazimir. Cine Bombril, 17h30
“Mais Tarde Você Entenderá” (“Plus Tard Tu Comprendras”), de Amos Gitai. Cinesesc, 14h
“No Limiar da Vida” (“Nära Livet”), de Ingmar Bergman. Cinemateca, 15h50
“Of All The Things”, de Jody Lambert. Cinemateca, 17h50
“Quando as Mulheres Esperam” (“Kvinnors Väntan”), de Ingmar Bergman. Cinemateca, 17h30
“Só Dez Por Cento É Mentira”, de Pedro Cezar. Cinemateca, 19h30
“Titãs, A Vida Até Parece Uma Festa”, de Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves. Cine Bombril, 23h50
02/11, domingo
“Cinzas do Passado Redux” (“Dongxie Xidu”), de Wong Kar Wai. Cinesesc, 21h30
“Crianças da Pira” (“Children Of The Pyre”), de Rajesh S. Jala. Cinemateca, 17h50
“Formidável” (“Formidable”), de Dominique Standaert. Cinemateca, 21h20
“Harrison Montgomery”, de Daniel Dávila. Cinemateca, 15h50
“Manda o Diabo Para o Inferno” (“Pray The Devil Back To Hell”), de Gini Reticker. Cinemateca, 15h40
“Meu Winnipeg” (“My Winnipeg”), de Guy Maddin. Cine Bombril, 21h20
“O Amigo” (“Der Freund”), de Micha Lewinsky. Cine Bombril, 14h
“O Estranho em Mim” (“Das Fremde In Mir”), de Emily Atef. Cinemateca, 21h20
“O'Horten”, de Bent Hamer. Cine Bombril, 17h20
“Recurso Intangível Número 82” (“Intangible Asset Number 82”), de Emma Franz. Cinemateca, 14h
“Sidney Poitier: Um Estranho em Hollywood” (“Sidney Poitier: Un Outsider À Hollywood”), de Catherine Arnaud. Cine Bombril, 15h50
“Sneakers - Entrando de Sola na Cultura Urbana” + Curtas. Cine Bombril, 19h10
“Sob Controle” (“Surveillance”), de Jennifer Lynch. Cinesesc, 16h10
“The Bluetooth Virgin”, de Russell Brown. Cinemateca, 14h
“Three Monkeys” (“Üç Maymun”), de Nuri Bilge Ceylan. Cinesesc, 14h
“Tulpan”, de Sergey Dvortsevoy. Cinemateca, 19h20
“Verônica”, de Maurício Farias. Cinesesc, 18h10

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

32ª. MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA

Antonio Carlos Egypto

A Mostra Internacional de Cinema, que chega agora à sua 32ª. edição, é o mais importante evento cinematográfico da cidade de São Paulo e tem revelado a cada ano aos cinéfilos paulistanos novos cineastas de todo o mundo. Ao mesmo tempo, traz retrospectivas de grandes diretores de todos os tempos, filmes históricos, resgate até mesmo do cinema silencioso, (este com acompanhamento musical ao vivo). Daí a expectativa que cada Mostra provoca em todos os que gostam do cinema de qualidade e da diversidade de perspectivas e de linguagem.

Na edição deste ano, há destaques na programação de cineastas conhecidos, como o novo filme dos irmãos Dardenne, “O silêncio de Lorna”, com um clima que já se tornou marca registrada deles. O mais recente filme de Alexandre Sokúrov, “Alexandra”, é original na trama e traz a habilidade de captar imagens de rara beleza e adequação ao tema tratado. Em que pese o fato de que Sokúrov é uma espécie de cineasta ahistórico, de direita, que muitas vezes irrita ao tratar de personagens como Lenin ou Hitler, é um talento respeitável.

Lá também se poderá ver o filme de José Padilha, “Garapa”, que ganha especial interesse por tratar em espaço micro do tema da fome, documentalmente, após o êxito estrondoso de “Tropa de Elite” e do não menos brilhante “Ônibus 174”. Por falar nisso, o filme de Bruno Barreto, “Última Parada, 174”, vai ser exibido na Mostra. A conferir. E tem “Che”, de Steven Soderbergh, e mais 400 filmes que abarcam a cinematografia de 75 países.

A competição de novos diretores é uma excitante exploração pelo que de novo se está fazendo mundo afora e sempre traz surpresas agradáveis e, é claro, decepções também. Mas vale muito garimpar essa seleção.

A não perder são os filmes menos vistos, menos conhecidos, de Ingmar Bergman. Tudo o que ele fez desde seu primeiro filme, “Crise”, tem grande interesse agora que, definitivamente, ele se foi. Um mestre como ele não tem substituto, nem nunca terá. E que tal conhecer ou revisitar a obra do cineasta Kihachi Okamoto, que tem sua retrospectiva na 32ª. Mostra?

E quem não viu, na 9ª. Mostra, “Berlin Alexanderplatz”, de Rainer Werner Fassbinder, com suas 15 horas de duração, se puder vê-lo agora, em cópia de 35 mm, vai se fartar de amor ao cinema. É papa fina, mesmo.

Ainda tem o show de encerramento, com Maria de Medeiros, muitos convidados importantes, entre eles, Wim Wenders e Pablo Trapero. O cartaz é de Tomie Ohtake. Como se vê, tem muito a oferecer esta nova edição da Mostra Internacional de Cinema, que Leon Cakoff e Renata de Almeida organizaram uma vez mais. É hora de usufruir desse banho de cultura cinematográfica anual.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

"Blindness"

"Blindness" ("Ensaio Sobre a Cegueira"), e a máscara cai.

Roseli Costa

Filme de Fernando Meirelles, baseado na obra de José Saramago

Mais claro que isso, impossível. O filme nada tem a ver com cegueira física e muito menos retrata o deficiente visual como depravado. Depravados somos nós, que enxergamos e vivemos em completa falta de luz por pura hipocrisia. Este é o filme. Fala sobre o egocentrismo e a degeneração humana provocada por nós em prol de puro narcisismo.

Sempre fui apaixonada por cinema e sou eclética, nada de títulos, patamares, escolas ou outros rótulos, gosto do que gosto. E para os que me conhecem, quando gosto, me apaixono. Uma vez na escuridão das salas de cinema, deixo-me levar pela história e não me permito ser influenciada antecipadamente por opiniões, porque de toda a obra sempre escapa um olhar que pode ser uma verdade. Afinal, Nietzsche já dizia que a verdade não é nada além de um ponto de vista.

Como sempre faço, completamente desarmada de argumentos, sinopses e bagagem histórica fui ao cinema para verificar o filme de Fernando Meirelles, baseado na obra do Nobel José Saramago, “Blindness”, Ensaio sobre a Cegueira. Me fisgou. É um dos filmes mais profundos que já senti. Digo senti, porque tive que vendar todos os meus olhos, físicos e alma, para tentar mergulhar na história, desta vez não como espectadora, mas como ser vivo que procura algo em meio à obscuridade que momentaneamente envolve o planeta. No trocadilho, pela minha visão, pude olhar a obra e o ser sem pudor, subterfúgios, conceitos e outros artifícios que insistentemente utilizamos para explicar nossas atitudes. Essa produção que fala da degeneração humana, da insaciedade humana com relação a vida, a conquistas, a futuro e a desejos.

Em meio a tanta hipocrisia, eu, apenas mais uma na multidão, pude conceber quão imperfeitos todos somos e seremos, porque simplesmente, a perfeição, mesmo que exista, não tem valor.

O quão fúteis e descartáveis são nossos super valorizados preceitos e sem falar no julgamento que é totalmente desprovido de qualquer tentativa de analisar, mas sim, totalmente munido da intenção objetiva de denegrir e piorar o outro diante de nós.

O narcisismo, disfarçado em cada um de nós pelas roupas, títulos, posições, bens e outros tantos alienados conceitos atrelados às nossas vidas em uma tentativa estúpida de encobrir o instinto de sobrevivência que nos move.

“Ensaio sobre a cegueira” mostra pelo excesso de luz o quão somos mais cegos do que os que nasceram sob ou adquiriram uma deficiência visual.

Ditados
antigos que ouvimos desde crianças como “O pior cego é aquele que não quer ver” ou “Em terra de cego quem tem um olho é rei” são retratados no filme de maneira inversa. O primeiro no personagem que é o único cego de nascença que vive no confinamento. Ele se adapta em um mundo onde ele tem que sobreviver sozinho e em constante vantagem. Ele não percebe que a única maneira de sobrevivência entre os seres é a convivência desinteressada e que não há luz para quem caminha sozinho.

O segundo, o velho que já perdera um olho e mesmo com a cegueira momentânea, foi sábio e impediu o movimento de medo gerado pela morte do “rei” de outra ala que propunha entregar aos lobos, a única mulher que enxerga e que por sobrevivência tira a vida do “rei”. Sobrevivência? Ou ego, vaidade, por se sentir massacrada e impotente por um macho que se intitulou dono das alas. Ou apenas por se engrandecer perante a condição de única com visão onde todos dependem dela o que a coloca em um patamar de superioridade.

O filme de Meirelles é uma análise de quanto de degeneração podemos agüentar em prol de sobrevivência e o quanto nos despojamos de integridade, orgulho, vaidade, delicadeza e conceitos quando somos submetidos a provações e desordens que nos tiram do nível de segurança. Como vítimas desta cegueira branca e fictícia se transformam em figuras inseguras e vulneráveis e terminam por seguir qualquer um que lhes estenda uma mão guia, forte, que tome decisões em seus lugares. É a fraqueza humana que retira o ser do seu papel principal e o transforma em figurante, com ou sem fala, submetido à vontade alheia, isento de responsabilidade de qualquer coisa que aconteça em meio a velocidade e proporção que transcendam as modificações.

Fernando Meirelles me emociona em um momento de mudanças cinematográficas no mundo e principalmente no Brasil onde a maturidade e a confiança começam a despontar. Mas ao mesmo tempo, me choca. Pois, a verdade implícita em seu filme é conhecida por todos nós e ainda não consegui vislumbrar, além de discursos bem intencionados, o menor movimento em prol da recuperação do equilíbrio humano rumo ao desenvolvimento.

Como nada é perdido e a luz sempre volta com menos brilho e mais claridade no final, onde alguns, após alguma provação, já começam a imaginar o que poderia ser modificado em nossos intocáveis conceitos. “Ensaio sobre a cegueira” banaliza de vez o velho discurso sobre a ética que na verdade só é respeitada até a página nove que é da nossa temperança; passou daí, afogam-se estes velhos conceitos e entra a lei do mais forte, da sobrevivência, do interesse.

O filme de Meirelles nos coloca em nosso lugar, como um velho quadro na parede, cuja moldura é o antagonismo, ou seja, a necessidade de ser o oposto, contraditório e contraposto de tudo o que nos é apresentado ou oferecido como verdade. O ego não permite a complacência e a abstenção de uma discussão, pois é necessário lutar, nem que seja por banalidades. Essa luta e que nos impulsiona a querer transpor o limite imaginário que nos colocamos a todo o momento na intenção de nos presentearmos com uma magnitude de algo que nos valorize.

A cegueira branca, no final, dá lugar à luz. E a visão da única personagem, dá lugar a impotência gerada pela retirada do santuário a que ela fora colocada. De mera coadjuvante sem grandes atrativos intelectuais ou profissionais, a personagem interpretada com maestria por Juliane Moore, passa a ser arrimo de um grupo completamente diversificado e aleatório com pessoas de todos os níveis, raças e complexidades.

Ela é a maioria de nós, pois não seguimos nossas vidas pautadas nos sonhos e conquistas por diversas razões, e para não nos sentirmos mutilados, nos transformamos em soldados que lutam batalhas alheias apenas para satisfazer o ego.

Este filme me fez lembrar de uma cena em um outro produzido pelo México e Estados Unidos onde um cego pede a uma moça que descreva como está o dia em New York. E ela começa a falar que é aquele é um dia comum na cidade, muitas nuvens, pessoas caminhando rapidamente, uma árvore que começa a florir e ele pergunta a cor das flores e fica admirado com as respostas que para ela não passavam de banais pois o dia era banal, mas para ele era um prêmio e ainda completa com um sorriso e a frase:..puxa, eu adoraria ver isso.

A nossa cegueira é medo que não nos permite ver e valorizar o belo, o comum e o simples, assim como, nos afasta de pequenas batalhas, que apesar de verdadeiras, nos retiraria de tantas ostentações. Quando uma obra cinematográfica é capaz de mudar conceitos, a arte se fez. E em seu papel principal.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

CARLOS REYGADAS, LUZ SILENCIOSA E O CINEMA CONTEMPORÂNEO

Antonio Carlos Egypto













Luz Silenciosa (Stellet Licht), México, França, Holanda, 2007. Direção: Carlos Reygadas. Com: Cornelio Wall Fehr, Miriam Toews e Maria Pankratz. 127 min.

"Luz Silenciosa", o filme do mexicano Carlos Reygadas, é um belo exemplar do que poderíamos chamar de cinema contemplativo. Os primeiros minutos, assim como o tempo final, equivalem a assistir ao pôr do sol, ao anoitecer e ao raiar do dia serenamente no campo. Com o domínio do tempo, que só o cinema pode fazer, pelos recursos de montagem e decupagem, o deslumbramento das imagens toma conta da tela grande e arrebata. Pelo menos, aqueles que não se deixaram viciar pelos ritmos frenéticos hollywoodianos.

Os tempos de "Luz Silenciosa" e sua estrutura narrativa remetem ao clássico dinamarquês de Carl Dreyer, "A Palavra", de 1955. Este filme, assim como a obra de Dreyer como um todo, foi fonte de inspiração para Ingmar Bergman, o maior cineasta sueco de todos os tempos.

"Gritos e Sussurros", de 1972, uma verdadeira obra-prima de Bergman, também dialoga com "A Palavra" e está fortemente presente em "Luz Silenciosa". Reygadas bebeu dessas fontes, procurando refazer o caminho antes trilhado por eles, não em busca de parodiá-los, mas enquanto exercício de estilo, metalingüístico, que pode ser chamado de imitativo, de tão colado que está nessas referências do cinema moderno, que são Dreyer e, sobretudo, Bergman. Por isso mesmo, rigorosamente alinhado ao cinema contemporâneo. O caráter imitativo presente no cinema contemporâneo não é mero plágio, ou repetição. É muitas vezes citação do que merece ser lembrado ou rediscutido, mas também o que merece ser reconstruído, seja enquanto reflexão, seja enquanto linguagem cinematográfica. Ou, ainda, como refacção de outras manifestações artísticas, como a pintura ou o teatro.

Os valores e estilos de vida praticados pelos protestantes, seus conflitos com a realidade e entre eles próprios, são tão caros à visão religiosa de Dreyer quanto ao questionamento de Deus e das religiões de Bergman. Para penetrar neste mundo mais convincentemente nos dias atuais, Reygadas recorreu a uma comunidade protestante, isolada dos valores contemporâneos: os menonitas. Vivendo num mundo à parte, que rejeita o progresso e professa um pacifismo radical, eles estão muito próximos das vivências e conflitos das comunidades focalizadas por Dreyer e das experiências e observações que preencheram a infância de Bergman.

Verdades rígidas em oposição a paixões que escapam ao controle e modificam as pessoas, trazendo sofrimento, mas também avanços, fazem parte da estrutura narrativa da obra, tanto de Reygadas, como dessas grandes referências que ele buscou. A cena da morta que volta à vida é emblemática e entrelaça os três diretores, com sentidos distintos, porém, similares: é uma questão transcendental, de algum modo “espiritual”, que ali está colocada.

É do significado da morte, da relação que estabelecemos com os mortos e do que muda com a partida deles, que se trata. E, ainda, do que aconteceria se houvesse o retorno. A refacção por Reygadas da mesma cena do “milagre” de Dreyer, que inspirou Bergman a realizar uma das cenas mais fortes e tocantes sobre a dor e a incapacidade de viver afetos profundos, mesmo após a morte, é uma referência lingüística que ultrapassa o seu significado.

É o cinema reverenciando o que o cinema já produziu de melhor, mostrando que ser contemporâneo não significa, necessariamente, se opor às tradições, mas comporta até mesmo cultuá-las, a partir das próprias experiências subjetivas (no caso, as de cinéfilo), na busca de um sentido universal, único. Em última análise, em busca do essencial.

Reygadas, ao realizar um filme tão contemplativo, também questiona o cinema frenético e acelerado que se tornou hegemônico, procurando levar o espectador a recuperar uma possível dimensão esquecida, ou pouco experimentada na atualidade.

Não por acaso, o mexicano Carlos Reygadas faz parte da lista dos sessenta cineastas contemporâneos, destacados pelo Cinema Now. Ele, sem dúvida, tem grandes méritos para figurar nesta lista dos cineastas, nascidos após 1950, que realizam um trabalho de peso para a história do cinema contemporâneo, que agora se constrói. Certamente ele faz parte deste cinema que se refaz e se recicla na contemporaneidade. São filmes que aspiram a ser mais do que um simples filme, ou seja, que querem ir além do contar histórias, mesmo que de forma não linear ou em ordem inversa.

Os recursos que o cinema tem hoje permitem muito mais experimentação, relacionamento com outras formas de arte, busca de significados, idéias-força, questionamentos e renovação da sua linguagem. Cada filme contemporâneo poderia ser o germe de uma dessas buscas, ressignificando o próprio cinema, em especial num momento em que a tecnologia digital democratiza o acesso de todos à sua linguagem.

"Luz Silenciosa" é um trabalho artístico respeitável de um cineasta que não chega a alcançar o talento de seus grandes inspiradores. Mas não é pouco oferecer um belo filme contemplativo com base em referências como Dreyer, Bergman (e, também, Tarkovsky), aos cinéfilos da atualidade.