sábado, 30 de novembro de 2019

BOAS OPÇÕES CINEMATOGRÀFICAS

Antonio Carlos Egypto


Alguns filmes passam tão meteoricamente pelo circuito comercial que mal dá tempo de se comentar algo antes de que saiam de cartaz.  Há os que até, surpreendentemente, seguem em exibição, mas num só cinema ou num só horário.  E são bons filmes, que mereceriam ser conhecidos.  Por isso, me arrisco a comentar alguma coisa aqui, contando com que a indicação de seus países ao Oscar lhes dê maior sobrevida.


RETABLO

RETABLO, filme peruano de 2017, está indicado ao Oscar de filme internacional e foi exibido na 42ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, a do ano de 2018.  Dirigido pelo cineasta e psicólogo Álvaro Delgado-Aparício, seu primeiro longa, é um filme que lida com tradições, folclore, e um ambiente conservador, que torna tudo mais complicado e dramático.  Aborda, por meio do personagem Noé, a tradição artística dos retablos, que são caixas artesanais, portáteis, de madeira, com porta, que contém figuras de massa pintadas, que representam cenas religiosas ou cotidianas de famílias abastadas da elite local, como, por exemplo, dos políticos.  É um belo trabalho que o reconhecido artesão Noé desenvolve e capacita seu filho adolescente de 14 anos, Segundo, para sucedê-lo.  A narrativa se baseia na visão do adolescente. E foca na relação pai e filho. Essa bela arte tradicional será posta em xeque quando uma cena homoerótica é flagrada e não consegue ser assimilada pela sociedade conservadora e religiosa da localidade.  Mais do que isso: é fortemente rejeitada e perseguida, sem abrir nenhuma possibilidade de assimilação.  Como Segundo vai lidar com isso?  Que caminho vai tomar?  É por aí que o filme se coloca, questionando a visão conservadora, e explorando as manifestações artísticas e folclóricas que merecem ser preservadas.  101 min.



A CAMAREIRA

A CAMAREIRA (La Camarista), de Lila Avilés, de 2018, é a indicação mexicana para concorrer ao Oscar de filme internacional.  Sua narrativa concentra-se na vida penosa e frustrante de Eve, a jovem mãe solteira que trabalha como camareira num hotel de luxo, na cidade do México, sem tempo para nada, nem mesmo para ver com regularidade seu bebê, cuidado por outra pessoa.  Acompanhamos sua rotina e, como espectadores, vamos percebendo pouco a pouco o que a move, que expectativas tem, por onde passa seu desejo, que planos alimenta para o futuro e que ações faz, com base nisso.  Vemos que o trabalho pesado e cansativo até promete, mas não cumpre.  O que resulta disso é angustiante, especialmente quando uma esperança que parecia tão concreta não se realiza.  Aí é que o filme ensaia caminhos e possibilidades, mas acaba não encontrando propriamente um rumo para a personagem.  Ou preferindo deixar em aberto, só sugerindo, esse rumo.  As soluções individuais são mesmo muito complicadas, ou virtualmente inexistentes, quando um sistema explorador não oferece saídas reais, apenas doura a pílula, sendo até acolhedor ou afetivo sob alguns aspectos, mas sem resolver o cerne da questão.  É como aquela história do gerente do banco que não resolve o que você precisa, mas o trata bem, oferece cafezinho e tal.  De que adianta?  “A Camareira” é um filme de clima, que nos põe no centro da vida de uma trabalhadora modesta, sem preparo, mas dedicada à função que ocupa, que ousa ter esperança.  Em certos contextos, no entanto, até sonhar é difícil.  102 min.



ADAM

ADAM, produção do Marrocos de 2018, indicada para concorrer pelo país ao Oscar de filme internacional, dirigida por Maryam Touzani, é um filme sobre mulheres desamparadas, cada qual à sua maneira.  Põe em contato duas mulheres, uma, viúva com uma filha ainda pequena, que tenta sobreviver de forma estóica e a muito custo.  Que se enrijece, endurece, mas não verga.  É sua defesa, indispensável.  Pelo menos até que encontre e acolha uma jovem grávida, fora do casamento, o que é um problema moral no Marrocos, vagando pelas ruas sem casa ou trabalho.  Do encontro das duas novas perspectivas virão.  Uma modificará a outra, abrindo espaços para novas possibilidades e esperanças, num contexto muito difícil para ambas.  Na verdade, para o trio, já que a menina que vive na casa, onde elas acabarão convivendo, servirá de elemento catalizador da relação, com a indispensável perspectiva do futuro que as crianças trazem.  A maternidade está no centro dessa trama, em que as relações ocupam o lugar principal.  A sempre possível perspectiva de mudança e o encontro consigo mesmas servindo de elementos de base para uma melhor relação com a vida.  Uma história contada com sensibilidade e respeito pelos sentimentos, desejos e idiossincrasias de cada uma.  96 min.

Para encerrar
1º. de dezembro, dia mundial de luta contra a Aids.  O cinema tem participado dessa batalha já há muitos anos.  Alguns dos filmes produzidos sobre o tema estão em cartaz na Mostra Prevenção, no Cinesesc, até o dia 04 de dezembro.



segunda-feira, 25 de novembro de 2019

O IRLANDÊS

Antonio Carlos Egypto





O IRLANDÊS (The Irishman).  Estados Unidos, 2019.  Direção: Martin Scorsese.  Com Robert De Niro, Al Pacino, Joe Pesci.  209 min.


Martin Scorsese desenvolve em “O Irlandês” uma saga que perpassa várias décadas na vida de Frank Sheeran (Robert De Niro).  De caminhoneiro, entregador de carne, a matador de aluguel, rápido, eficiente e sem envolvimento emocional ou culpa.  Uma figura assim será logo captada para o mundo do crime organizado e, com um pouco de sorte, cair nas graças de um grande chefão como Russel Bufalino (Joe Pesci).  E conhecer e atuar junto à mais importante figura dos grandes sindicatos, o lendário Jimmy Hoffa (Al Pacino).

A trama de Scorsese mostra como o crime organizado dispõe de um poder impressionante junto à política institucionalizada, com vínculos fortes com o poder local, mas também com o poder federal e com a própria figura de presidentes da República, que os apoiaram, foram apoiados por eles, ou favoreceram uma ala em relação a outra, de acordo com os interesses em jogo.  O forte sindicalismo estadunidense também apresenta grande vinculação com o crime organizado.  E tudo se arranja no Judiciário, a partir de advogados que conhecem os caminhos para livrar o gangsterismo de pagar pelo que faz.  Ou de fazê-lo moderadamente.  O crime, lá como cá, também pode ser comandado da cadeia.  Ou seja, tudo vai junto e misturado, onde menos se espera, e pondo em cheque a própria ideia de democracia. 




Vida e morte estão na mão dos grandes do crime no momento.  Que resolvem suas diferenças a bala.  As máfias se formam e a violência é quem dá as cartas.

O talento do diretor nos garante uma narrativa muito intensa e envolvente, com momentos marcantes e impactantes, mas dentro de um ritmo lento, que nos permite observar, atentar para detalhes, pensar sobre o que estamos vendo.  E se preocupar sobre o que ele nos mostra, enquanto curtimos belas sequências.

Ao final, fica um questionamento importante: de que vale tudo isso, esse poder de vida e de morte, dinheiro a rodo, traições, vinganças, sordidez, se no fim tudo acaba em velhice, doença, solidão, desamparo e morte?  O que se ganha, afinal, com essa vida delirante de armas e poder a qualquer preço?  Que sentido tem isso?  Scorsese põe também sua pitada religiosa aí, aquela dos momentos finais, onde pode haver arrependimento, ou não, pelo que se fez.





Robert De Niro está exuberante como protagonista dessa história e quase irreconhecível quando mais jovem.  A maquiagem faz miséria também em relação a Al Pacino, igualmente em grande desempenho.  Joe Pesci também passa pela metamorfose do tempo e brilha, tem um desempenho espetacular no papel do grande chefão da história.  É uma trinca de atores de altíssimo nível que está em cena.

“O Irlandês” é uma produção da Netflix, que está tendo uma carreira limitada no cinema.  Infelizmente.  Os que não se incomodam de perder a saga na indispensável telona, porque preferem a comodidade do sofá da sala, no entanto, vão adorar.  O filme é muito longo, o mais longo da filmografia de Martin Scorsese.  De modo que uma parada para o banheiro, um café ou uma comidinha, pode até ser bem-vinda, mesmo atrapalhando a fruição desse belo filme.  De qualquer maneira, sinal dos tempos.






quarta-feira, 20 de novembro de 2019

UM DIA DE CHUVA EM NOVA YORK

Antonio Carlos Egypto





UM DIA DE CHUVA EM NOVA YORK (A Rainy Day in New York).  Estados Unidos, 2018.  Direção e roteiro: Woody Allen.  Com Selena Gomez, Timothée Chalamet, Elle Fanning, Jude Law, Liev Schreiber.  95 min.


Que bom ter de volta o Woody Allen às telas de cinema.  Estava fazendo falta.  Suas histórias inteligentes, cheias de charme, com diálogos bem humorados, irônicos e sutis, estão disponíveis novamente ao nosso desfrute.  E aqui, mais uma vez, a cidade é um grande protagonista.  E, mais uma vez, é Nova York, Manhattan, quem brilha e se torna deslumbrante, fabulosa, num dia de chuva.

Se em Nova York tudo acontece, tudo pode acontecer, a vida e a arte pulsam, a chuva não encobre nada disso, até acentua a aventura e a experiência amorosa.

Por conta de uma entrevista com um diretor hollywoodiano, Rolland Polard (Liev Schreiber), a estudante de jornalismo Ashleight (Elle Fanning) tem de se deslocar a Manhattan num final de semana.  Oportunidade logo abraçada por seu namorado Gatsby (Timothée Chalamet).  E ambos fazem planos de como aproveitar Nova York juntos, após a entrevista.  Romanticamente juntos, com direito até a passeios de charrete pelo Central Park.




O que se planeja, no entanto, pode não acontecer.  Elementos fortuitos, inesperados, encontros imprevistos, expectativas não consideradas, podem mudar o quadro dessa comédia romântica, sem que ela deixe de ser uma comédia ou deixe de ser romântica.  A responsável pelas mudanças de comportamento, definitivamente, não é a chuva.

Um filme que tem leveza, sutileza, tiradas inteligentes e bem-humoradas o tempo todo, e uma trilha sonora belíssima fazem do espectador seu cúmplice. As referências cinematográficas envolvendo o nome dos personagens agrada e atrai os cinéfilos. É de se sair feliz do cinema, achando que a vida, afinal, pode ser charmosa e divertida.  Sequências muito bem concebidas e realizadas compõem a narrativa de Woody Allen, que nunca desaponta.

Timothée Chalamet é ao mesmo tempo contido e expressivo, no papel de Gatsby, o namorado que espera e também experimenta.  Elle Fanning é tão deslumbrada quanto a personagem que representa, descobrindo importantes figuras do cinema de Hollywood.  Exagera um pouco, beirando o histriônico.  Selena Gomez (Chan), a quem Gatsby redescobre em sua espera, dá o tom firme e charmoso da sua personagem, na sutileza.  O elenco, como um todo, entra bem no clima do conjunto do trabalho. 

As situações têm, como sempre acontece com o diretor, a capacidade de envolver o espectador, enquanto o municia de tiradas críticas, irônicas.  O que faz com que “Um Dia de Chuva em Nova York” alcance um nível que está muito acima das habituais comédias românticas realizadas com mero intuito comercial.  Qualquer que seja o gênero ou a concepção de cinema, tem de estar acima do interesse comercial, mesmo que ele faça parte da história, como é o caso.



Denúncias, investigações, correções de rota na vida pessoal, não podem impedir, como vinha acontecendo, que um talento da importância de Woody Allen pudesse ser posto na geladeira, boicotado ou impedido de trabalhar.  Até porque, como dizia a velha canção de Herivelto Martins, imortalizada por Dalva de Oliveira, “primeiro é preciso julgar para depois condenar”.  Acusar é fácil.  É preciso investigar e dar amplo direito de defesa.  Até prova em contrário, todos são inocentes.  Desconsiderar isso, em nome de uma campanha ou de algum clamor popular, pode gerar grandes injustiças. E também é necessário distinguir a pessoa da obra que ela cria.





segunda-feira, 18 de novembro de 2019

A ODISSEIA DOS TONTOS

Antonio Carlos Egypto





A ODISSEIA DOS TONTOS (La Odisea de los Giles). Argentina, 2019.  Direção: Sebastián Borensztein.  Com Ricardo Darín, Andrés Parra, Luis Brandoni, Chico Darín, Verónica Llinás.  116 min.


Na América Latina, os planos econômicos que visam a salvar a economia acabam sempre estourando do lado dos mais fracos e que já estariam acostumados a serem ludibriados, como tontos.  Aqui no Brasil, o plano Collor foi um exemplo dramático de situações terríveis, provocadas pelo confisco do dinheiro poupado pelo cidadão.  Na Argentina, em 2001, tivemos o corralito, que segurou os dólares, limitando drasticamente o seu uso e transformando-os em pesos, que perdiam valor.  Como também aconteceu – e acontece – por aqui, informações privilegiadas de pessoas poderosas e dos bancos favorecem uns e acabam com a vida de outros.

Foi nesse contexto de crise econômica  que desempregados e subempregados, em busca de sobrevivência, conseguiram juntar dólares, para reformar e reavivar uma cooperativa agrícola, até que o corralito, associado a uma manobra bancária escusa, acabou com a economia deles de vez.  Só que, agora, eles disseram “Chega!” e prometeram fazer de tudo para encontrar o dinheiro que lhes foi roubado, arquitetando uma revanche dos perdedores, os tontos.

Se o filme começa bem político, acaba se transformando em uma aventura em forma de comédia.  Mas que mantém o espírito crítico e a ironia, associados a uma forte raiva de se sentir, mais uma vez, passado para trás. 





Tudo acontece numa pequena vila da província de Buenos Aires, onde afinal todo mundo acaba se conhecendo e sabendo de tudo que se passa.  Desse modo, as  estratégias possíveis acabam sendo ampliadas e viabilizadas, embora as consequências também o sejam. A trama é muito bem construída, revelando, uma vez mais, que a Argentina tem escritores e roteiristas muito bons para relatar histórias e relacioná-las ao ambiente social, econômico e político do país.

O diretor Sebastián Borensztein já nos deu o delicioso “Um Conto Chinês”, em 2011, e dirigiu também um episódio de “Relatos Selvagens”, de 2014.  Sucessos de público no Brasil.  Aqui, ele trabalha com um elenco magnífico, liderado por Ricardo Darín, com participação de seu filho, Chico Darín, e que tem Luis Brandoni, Andrés Parra, Verónica Llinás e muitos outros bons atores e atrizes.  Isso resulta num filme bem equilibrado, convincente nas atuações e com um bom ritmo, capaz de envolver o espectador na história.

“A Odisseia dos Tontos” foi escolhido pela Argentina para representar o país na disputa pelo Oscar de filme internacional.  A Argentina costuma indicar produtos fortes nessa disputa, desta vez, porém, acho mais difícil que obtenha êxito, porque há grandes filmes na competição, inclusive o brasileiro “A Vida Invisível”, de Karim Ainöuz, que me parece superior (sem bairrismo), assim como “Parasita”, de Bong Joon-ho, da Coreia do Sul, e “Dor e Glória” de Almodóvar, entre outros.

A primeira exibição de “A Odisseia dos Tontos” no Brasil se deu na 43ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.




sexta-feira, 8 de novembro de 2019

MELHORES DA MOSTRA 43

Antonio Carlos Egypto


Quais seriam os melhores filmes da 43ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, recém encerrada?  Os que foram premiados pelo Júri Internacional que aqui esteve, os favoritos da crítica e do público?  Sem dúvida, estes devem ser considerados.  Mas cada um fará sua lista de melhores, com base em suas preferências cinematográficas, dentro daquilo que pôde ver.  Ao final deste texto, podem conferir a minha lista de 12 preferidos.  Por que 12 e não 10 ou 20?  Não sei ao certo. Talvez porque esses 12 cubram razoavelmente bem o que mais me impressionou e convenceu, dentre os filmes exibidos.  Mas eu poderia fazer uma segunda lista de destaques, de nível equivalente.  Tinha muita coisa boa para ver, fora o que não deu tempo de conferir.


HONEYLAND


Entre os filmes que saíram contemplados por esta Mostra, está “Honeyland”, vencedor do prêmio da crítica de melhor filme internacional e prêmio do Júri Internacional como melhor documentário.  É um trabalho de grande beleza plástica, que aborda a questão do meio ambiente, da sustentabilidade e das diferenças que experimentam as pessoas nos  diversos contextos culturais, a partir de uma figura de mulher, real e forte, que em sua vida simples e isolada mostra saber o que quer e agir com firmeza.  Belo trabalho da dupla de cineastas Ljubomir Stefanov e Tamara Kotevska, da Macedônia do Norte. 

“Aos Olhos de Ernesto” foi o preferido nacional da crítica.  É uma produção da Casa de Cinema de Porto Alegre, que completa 30 anos de trabalhos muito relevantes para o cinema brasileiro.  Ana Luíza Azevedo, que dirige o longa, já tem uma larga trajetória por lá, ao lado de Jorge Furtado.  Se em “Antes Que o Mundo Acabe”, de 2010, a ótica da relação pai e filho se centrava no mundo de um adolescente, agora o foco é a velhice de um fotógrafo que está ficando progressivamente cego e tem de lidar com suas limitações, a viuvez e a solidão.  É um retrato sensível numa trama bem construída, que envolve e comove, sem ser piegas.  Disseca um personagem muito rico e as relações respeitosas e espertas que ele consegue estabelecer com os outros.  Merece atenção quando chegar aos cinemas.

“Parasita”, da Coreia do Sul, o preferido internacional do público, até já chegou aos cinemas.  Acaba de estrear e merece ser visto.  A crítica do filme está aqui, no cinema com recheio, entre as matérias dedicadas à Mostra 43, outubro de 2019.

O documentário “A Grande Muralha Verde” foi o que conquistou o público na categoria, e com razão.  O trabalho de Jared P. Scott, do Reino Unido, com produção de Fernando Meirelles, trata de algo espetacular.  Um projeto que já está acontecendo na África e pelo qual todos devemos torcer pelo seu sucesso e apoiar como pudermos.  Uma muralha de árvores e plantações que se estende por 8 mil quilômetros, atravessando Senegal, Mali, Nigéria, Níger e Etiópia, na região do Sahel, abaixo do Saara.  A cantora Inna Modja, ativista do Mali, percorreu toda a região para conhecer e apoiar essa iniciativa espantosa de defesa da vida e do meio ambiente, que já revelou enorme sucesso econômico na sofrida Etiópia, que havia vivido episódios de fome inacreditáveis em passado recente.  Vale a pena conhecer melhor isso, até para acreditar mais no mundo e nas pessoas.


A GRANDE MURALHA VERDE

A ficção nacional “Pacificado” e o documentário brasileiro “Chorão: Marginal Alado”, escolhidos pelo público, eu não consegui ver na Mostra.  O prêmio Abraccine para o filme brasileiro de novos diretores, ainda em seu primeiro longa, foi para “Currais”, documentário de David Aguiar e Sabina Colares, que vai em busca de informações e vestígios de um campo de concentração para flagelados da seca, aprisionados como escravos em 1932, em Fortaleza.  Memórias, relatos, documentos e fotos, que vão sendo encontrados, resgatam uma situação política e social importante, que foi varrida da história oficial e virou tabu.  Por meio dela, muita coisa importante desse período vem à tona, ilumina e esclarece o nosso presente.  Começo promissor da dupla de cineastas.

O Júri Internacional, além de premiar “Honeyland” como documentário, escolheu dois filmes de ficção: “Dente de Leite”, de Shannon Murphy, da Austrália, que não alcancei ver, e “System Crasher”, ótimo trabalho de Nora Fingscheidt, da Alemanha, que é o filme mais forte e pesado de toda a Mostra.  Aborda o caso de uma menina de 9 anos de idade tomada pela raiva, pelo descontrole e por explosões que põem em risco a vida dela e a dos outros.  É um caso extremo, que parte de uma situação traumática, alimentada por camadas sucessivas de rejeição, em que a mais decisiva é a da própria mãe.  É um filme pessimista, que não vislumbra saída.  Mandar a menina da Alemanha para o Quênia ou deixá-la se destruir?  Ou seja, um absurdo que só poderia ser transformado se o empenho colocado no atendimento à criança se direcionasse para a mãe, por meio de um tratamento longo e penoso que, quem sabe, pudesse conduzir a alguma coisa.  O filme apresenta com muito talento esse mundo hostil, de gritos, histeria e agressão, com todos os recursos que pode, da câmera agitada, da correria, da fusão de cores e gritos, dos cortes abruptos que assustam, e de um desempenho infernal da atriz-mirim, que faz a difícil personagem Benni.


ELIA SULEIMAN no Cinesesc

Quanto à minha lista pessoal de favoritos da Mostra, gostaria de destacar que o grande filme desta edição, para mim, foi o palestino “O Paraíso Deve Ser Aqui”, do grande diretor Elia Suleiman, que esteve em São Paulo, recebeu o prêmio “Humanidade”, concedido a quem se dedica ao cinema humanista com ênfase nas questões sociais e políticas e nos direitos humanos.  Prêmio mais do que merecido, pelo que já havia realizado.  Mas ele nos trouxe o filme mais original e criativo dessa edição.  Não percam, se tiverem oportunidade de ver.  Já postei crítica do filme aqui, assim como já abordei todos os demais que estão na minha lista.  Faltou falar de “Sinônimos”, um filme francês surpreendente na forma como expõe uma questão identitária, a partir de um personagem judeu, israelita, que quer deixar de lado essa origem e se tornar um autêntico francês.  Para isso, ele precisa, no mínimo, dominar a língua e seus sinônimos.  Será que um dicionário resolve isso?  A questão é muito mais profunda, claro.  E é disso que trata esse belo filme, que mexe no vespeiro das identidades neste combalido mundo contemporâneo.

MEUS MELHORES
O PARAÍSO DEVE SER AQUI, de Elia Suleiman, Palestina
HONEYLAND, de Ljubomir Stefanov e Tamara Kotevska, Macedônia do Norte
PARASITA, de Bong Joon-ho, Coreia do Sul
A VIDA INVISÍVEL, de Karim Ainöuz, Brasil
FILHOS DA DINAMARCA, de Ulaa Salim, Dinamarca
DOIS PAPAS, de Fernando Meirelles, Estados Unidos/Reino Unido
SINÔNIMOS, de Nadav Lapid, França
MENTE PERVERSA, de Savas Ceviz, Alemanha
SYSTEM CRASHER, de Nora Fingscheidt, Alemanha
WASP NETWORK, de Olivier Assayas, França
LA LLORONA, de Jayro Bustamante, Guatemala
CICATRIZES, de Miroslav Terzic, Sérvia





quarta-feira, 6 de novembro de 2019

BALANÇO DA MOSTRA 43

Antonio Carlos Egypto


A 43ª. Mostra de Cinema Internacional de São Paulo apresentou em sua programação mais de 300 filmes.  Eu consegui ver 60 deles, no período de um mês, se considerarmos não só o tempo oficial do evento, mas também a repescagem, além das cabines de imprensa que aconteceram antes do início da Mostra.  Ainda assim, isso representa 20% dos filmes exibidos.  Claro que procurei ver aqueles que me pareceram mais importantes, seja pelos prêmios, pelas indicações ao Oscar de filme internacional, seja pelo diretor, pela temática, pelo país de origem ou, ainda, por se tratar de um filme de destaque prestes a estrear nos cinemas.  Nem isso pode garantir muita coisa para se fazer uma avaliação global da Mostra.  Enfim, com tantos títulos, ela será sempre uma amostra parcial e personalizada do conjunto.

Dito isso, parece bem evidente na presente Mostra o crescimento da força das mulheres na criação cinematográfica.  Elas estão, crescentemente, à frente de grandes projetos, dirigindo e produzindo filmes de peso, que obtêm premiações importantes, êxitos de público e de crítica.  Se elas sempre foram estrelas de primeira grandeza diante das câmeras, como atrizes, ou com destaque em funções complementares, como figurinistas, por exemplo, não resta dúvida de que vêm conquistando todos os espaços de poder e decisão na sétima arte, como acontece em todas as áreas da sociedade.  O que é muito bom de se constatar.

Ao mesmo tempo, muitos filmes, e não só os feitos por elas, têm de reconhecer que a opressão às mulheres é ainda muito forte, em várias partes do mundo, e o machismo atávico parece estar em todo lugar.  A consciência de que a luta tem que continuar e ainda há muito a ser transformado e conquistado, no entanto, é cada vez mais clara e disseminada.  O feminismo nunca esteve tão forte e tão presente como agora.  Os resultados são perceptíveis no cinema. 





Há muito mais opressões que o cinema continua registrando.. As guerras, que recrudescem, nunca cessam, produzem sofrimentos absurdos.  O drama dos refugiados, dos imigrantes que fogem das guerras, mas também das perseguições, da fome e da falta de perspectivas.  Esse é um tema recorrente, que a Mostra de Cinema ressalta já há muitos anos.  O que mudou é que cresceram a intolerância e a rejeição à acolhida dos refugiados e ampliou-se espaço para pensamentos e ações de extrema direita, que os penalizam pelas dificuldades econômicas da atualidade.  Tudo ficou ainda mais tenso, vários filmes mostram personagens sinistros, que acabam tornando tudo cada vez mais difícil.

Questões identitárias, étnicas, raciais e da diversidade em todos os sentidos, ocupam largos espaços das tramas ficcionais atuais.  A prioridade do grave problema do meio ambiente, que põe em risco a vida no planeta, está, evidentemente, contemplada em muitos filmes contemporâneos, exibidos na Mostra.

Também há espaço para o humanismo, para as questões existenciais, para o bom humor.  E há até quem faça piada ou narrativa romântica com a própria guerra e essa intolerância toda.  Também é uma forma de resistência.  Assim como a fantasia, o non sense, o absurdo, o inconcebível.  Tem de tudo.  E é bom que seja assim.  A diversidade de existências e de expressões é uma marca do mundo que o cinema registra, ficciona, reinventa, ressignifica.  Ver tantos filmes de uma vez só, de todas as partes do mundo, ajuda a compor um quadro da atualidade, gostemos ou não do que estamos a ver.

A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo sempre privilegiou o cinema artístico, de reflexão, sobre a produção meramente de entretenimento.  É uma característica que ela deve, mesmo, preservar, porque cumpriu, e ainda cumpre, importante papel na oxigenação e diversificação do mercado exibidor, oferecendo alternativas qualificadas à população que frequenta os cinemas, alcançando também as demais plataformas de exibição, por consequência.






domingo, 3 de novembro de 2019

MAIS FILMES DA MOSTRA 43

Antonio Carlos Egypto

.
Na maratona cinematográfica em que a gente se mete durante a Mostra, muitos filmes interessantes passam despercebidos, não têm o apelo dos grandes projetos ou dos grandes diretores. Até mesmo a grife de um grande cineasta pode ser ignorada.  É o caso, por exemplo, do filme VIZINHOS (Neighbors), um projeto de reunião de curtas-metragens dos países dos Brics, organizado por Jia Zhang-ke, reconhecido e aplaudido diretor chinês, bem conhecido no Brasil.  Já é o terceiro filme dessa série. Aqui, questões de vizinhança, sob ângulos bem diversos, são abordados por 5 cineastas, 3 mulheres e 2 homens: Beatriz Seigner, do Brasil, Alexander Zolotukhin, da Rússia, Rima Das, da Índia, Han Yan, da China, e Jenna Bass, da África do Sul.  É um filme bem humorado e inteligente, que tem a capacidade de nos ligar a diferentes culturas, em pouco espaço de tempo.  Possivelmente inspirado no clássico canadense “Vizinhos”, de Norman McLaren, de 1952, em que uma rosa que nasce na divisa de duas casas provoca uma briga sem tamanho entre dois moradores, que até então compartilhavam pacificamente sua vizinhança.  Em tempos de intolerância , uma boa referência.  E em tempos de perda de força dos Brics, em função de atitudes do novo governo brasileiro, também.  Em VIZINHOS, diferenças e proximidades dão origem a conflitos, maiores ou menores, passando por problemas de moradia, negócios, ambiente de trabalho, restrições às mulheres e desabrigados.  Uma iniciativa que merece atenção e que, espero, chegue aos cinemas. Só não sei quando.


VIZINHOS



Também passou despercebido o filme ECOS (Bergmál), da Islândia, dirigido por Rúnar Rúnarsson.  Pense em Reykjavik e na Islândia toda, no período de festas natalinas e de Ano Novo.  Um período normalmente inexpressivo, parado, em que pouca coisa acontece.   Ainda mais num local em que a neblina e o frio tomam conta, com chuva e neve.  Aí é que nada vai acontecer, mesmo!  Pois bem, ECOS desmente categoricamente isso, ao mostrar, por meio de 56 cenas independentes, um mundo de coisas que se passam nesse período, considerado morto.  A vida segue, o mundo não para, mesmo em circunstâncias que teriam tudo para brecá-lo, ao menos temporariamente.

Filmes sobre cineastas foram exibidos na Mostra, entre eles, ANDREI TARKOVSKY: UMA ORAÇÃO DE CINEMA, dirigido pelo filho do cineasta  Andrei A. Tarkovsky revisita a obra do grande diretor, por meio de um documentário que explora a vida, as memórias e o trabalho de Tarkovsky (1932-1986), com belas imagens e um bom material de arquivo, em áudio e vídeo.  O cineasta homenageado é reconhecido como ligado à espiritualidade, tendo nela fonte importante de sua reflexão e criação.  Mesmo assim, acho que o documentário exagera na ênfase desse tema e da oração.  Até porque a espiritualidade em Tarkovsky era uma coisa misteriosa e difusa, nada óbvia.


A FERA E A FESTA


Um filme que passou quase em branco pela Mostra foi A FERA E A FESTA (La Fiera y la Fiesta), produção latino-americana capitaneada pela República Dominicana, dirigida por Laura Amelia Guzmán, dominicana, e Israel Cárdenas, mexicano.  O filme homenageia o cineasta dominicano Jean-Louis Jorge (1947-2000), ao filmar um roteiro inacabado de um musical deixado por ele.  Membros de sua equipe se reúnem, descobrem que muitos já morreram, mas seguem buscando a realização cinematográfica, que flerta com a morte, mas brinca com o espírito excêntrico do diretor homenageado. Tem no elenco Geraldine Chaplin, já bem cheia de rugas, mas com uma versatilidade corporal espantosa. O filme trata de um assunto que é um pouco distante para nós, mas é muito bonito visualmente,

BABENCO – ALGUÉM TEM QUE OUVIR O CORAÇÃO DIZER: PAROU, documentário de Bárbara Paz, em seu primeiro longa, é uma bela homenagem daquela que foi sua mulher a Héctor Babenco (1945-2016).  Em que pese o título quilométrico, extraído de uma fala do cineasta, tudo é conciso e direto no filme, que dá conta muito bem da figura e da obra de Babenco em apenas 75 minutos.  Claro que o próprio Babenco teve a ideia de filmar seu fim de vida e concebeu muita coisa do que está na tela, mas Bárbara Paz surpreende pela competência e pela equipe que montou para a realização. Como disse Babenco a ela e ao filme “Eu já vivi minha morte, agora só falta fazer um filme sobre ela”.  Não falta mais.