sábado, 31 de maio de 2014

MALÉVOLA

Antonio Carlos Egypto



MALÉVOLA (Maleficent).  Estados Unidos, 2013.  Direção: Robert Stromberg.  Com Angelina Jolie, Sharlto Copley, Elle Fanning, Sam Riley, Imelda Stauton.  97 min.



Ao que parece, a história da Bela Adormecida, que se tornou um conto de fadas, tanto de Perrault quanto dos Irmãos Grimm, remonta a um romance francês de autor desconhecido de mais de 400 anos atrás.  Já o filme “Malévola” toma como referência e inspiração o desenho animado da Disney, de 1959.

Na história original, há uma fada contrariada por não ter sido convidada para o batizado da filha do rei que, por vingança, lhe oferece uma predição maldosa: a de que ela iria morrer ao espetar o dedo numa roca de fiar.  As fadas boas, ao contrário, haviam lhe dado dons como a beleza, a graça, um jeito angelical e os dons da música.



A fada que vaticinou o mal ganhou o nome de Malévola no desenho da Disney e agora ganha um filme inteiro para ela. Um personagem secundário vira protagonista.  E na pele de ninguém menos do que Angelina Jolie.  Ganhou chifres charmosos, enormes e atordoantes asas negras e, o mais interessante, boas doses de piedade e humanidade.  Deixou de ser uma simples encarnação do mal para viver num mesmo personagem, assim como acontece com outros da trama, a alternância e a relatividade entre o que podemos chamar de bem e de mal.

Para agradar à garotada não faltam cenas de ação e muitos, muitos efeitos especiais, como convém a uma história fantasiosa como essa.  Só que o filme modifica inteiramente a trama tradicional e até o desenho animado que lhe serviu de inspiração.  Na verdade, ele reconta, reinventa o conto de fadas da Bela Adormecida.


E aí é que fica a questão: por que ficar reinventando contos de fadas, personagens de histórias em quadrinhos ou relatos bíblicos, como Hollywood faz hoje com tanta frequência?  isso é coisa de quem não é capaz de criar coisas novas ou estratégia de mercado para se garantir com o já consagrado.  E acaba no mesmo de sempre: muita tecnologia, poucas ideias.  Essa é a síntese da maior parte da produção do cinema norte-americano atual.

É bem feito, é divertido, é entretenimento escapista de qualidade e em 3D.  Se isso basta para você, aproveite.  Se é um jeito de se esquecer momentaneamente das agruras da vida, por que não?  Não tenho nada contra, mas não me venha dizer que isso é grande cinema.  É muito dinheiro para pouca coisa.


quarta-feira, 28 de maio de 2014

HELI

                                           
Antonio Carlos Egypto



HELI (Heli).  México, 2013.  Direção: Amat Escalante.  Com Armando Espitia, Andrea Vergara, Linda González, Juan Eduardo Palacios.  105 min.


O que você faria se encontrasse escondida na caixa d’água da sua casa pacotes de cocaína que, certamente, valem um bom dinheiro?  Chamaria a polícia?  Tentaria vender a droga e embolsar uma grana?  Procuraria encontrar o dono da droga, para entregar-lhe a mercadoria?  Se livraria do produto, jogando-o fora?  É uma decisão complicada, principalmente considerando-se que a tal cocaína não caiu do céu, foi colocada ali por alguém.  Quem e por quê?

Até que você descobrisse o que aconteceu, poderia já ser tarde demais.  O jovem Heli não sabia do namoro de sua irmã menor, Estela, de 12 ou 13 anos, com um soldado do exército e que a droga fora roubada do próprio exército, que teria de incinerá-la.  Quem a guardou vai querer tê-la de volta, a qualquer custo e pode causar muitos danos não só ao Heli e à irmã, mas ao resto da família. 



Esse mote serve ao diretor Amat Escalante para mostrar as relações do narcotráfico com a polícia, o exército e a população, num ambiente amplamente minado pela droga, onipresente e ilegal.  E não vacila em adotar um hiperrealismo em todas as cenas do longa, que mostram muita violência, tortura e requintes de crueldade capazes de mexer com qualquer um.  Incomoda, e muito.  Mas o que revela da sordidez humana, da miséria, da diluição dos poderes institucionais de um país como o México, é certamente instrutivo, conscientizador e... desolador.

Sempre que um produto artístico escolhe um viés, no caso, crítico e pessimista, sabemos que existem outros lados nessa desgraça.  Nem tudo é assim, não pode estar tudo assim.  Do contrário, o México não subsistiria como nação.  Mas que há um povo despossuído, que sofre na carne as maiores brutalidades e paga um preço alto pela guerra do narcotráfico, não há como negar.

O que se pode perguntar é se é mesmo preciso ser explícito a esse ponto, na violência e crueldade que se mostra no filme, para que as pessoas possam entender o que se passa.  Afinal, trata-se de uma terapia de choque.



Nem todo mundo vai aguentar ou querer se submeter a esse retrato cruel da realidade.  O Festival de Cannes, em 2013, aprovou e o longa “Heli” foi vencedor do prêmio de melhor direção.  Amat Escalante também levou o troféu de melhor direção, na primeira edição do Prêmio Platino, dedicado ao cinema ibero-americano, na cidade do Panamá, em abril de 2014.

Eu creio que existem outras maneiras de abordar essa dura realidade que o filme se propôs a mostrar.  A sutileza, a ironia, o humor, podem ser armas tão ou mais eficientes do que a denúncia agressiva.  Mesmo num mundo em que as pessoas podem parecer anestesiadas diante de tanta coisa que veem.

O que é muito chocante pode produzir também o efeito contrário: o da rejeição do assunto ou da forma apresentada.  O que é muito assustador pode, ainda, produzir impotência e paralisia.  Quando a dose é excessiva, a receita pode desandar, por melhores que sejam as intenções e os ingredientes utilizados.


sábado, 24 de maio de 2014

O QUE OS HOMENS FALAM

Antonio Carlos Egypto




O QUE OS HOMENS FALAM (Una Pistola En Cada Mano).  Espanha, 2012.  Direção: Cesc Gay. Com Ricardo Darín, Javier Cámara, Eduard Fernández, Alberto San Juan, Candela Peña.  95 min.



O filme “O Que os Homens Falam” trata da crise da identidade masculina nos tempos atuais.  Tempos de dúvidas, inseguranças, insucessos e perdas para os homens.  O que os distancia do papel heróico do provedor, machão, corajoso, que não teme, nem chora.  Isso sempre foi uma bobagem, mas cultivada também pelo cinema, como lembra o próprio filme, ao citar a figura de John Wayne.

Aqui, não.  O filme começa com um homem na faixa dos 40 anos, que chora ao fundo do elevador e, por acaso, se depara com um amigo de tempos passados.  Se a fragilidade de um, ainda que financeiramente bem sucedido, precisa do apoio de um psicoterapeuta, ao outro faltam emprego, dinheiro, mulher e filhos.  E esse segue sendo o espírito do filme, que não reluta em tratar de temas, como o ser enganado pelas mulheres, se dar mal com elas, o peso dos divórcios, as oportunidades perdidas, a agressão doméstica dirigida a elas, todas as inseguranças afetivas e até a disfunção erétil.




Contando assim, “O Que os Homens Falam” parece um tratado psicólogico, mas não é nada disso.  O filme é profundo, sim, porque vasculha a vulnerabilidade masculina dos dias de hoje, mas o faz com muito humor e leveza.  Basta dizer que o gênero do filme é a comédia.  Evidentemente, não se trata de nenhuma comédia maluca, destrambelhada, incontrolável.  É tudo muito sutil e muito bem construído, com talento e simplicidade.

O diretor catalão Cesc Gay, do também ótimo “Krámpack”, de 2000, é um craque em climas de relacionamento.  Sabe como introduzir uma estranheza, uma surpresa, um desapontamento.  Trabalha com o inesperado e as reações que daí decorrem, em cenas marcantes, algumas bem engraçadas, outras que podem comover, mas que, de qualquer modo, nos levam a refletir sobre o que se está vendo.  Para isso, conta com um roteiro, do qual é coautor com Tomás Aragay, muito bem escrito e com um grande trunfo: os diálogos.  Não há nada melhor no filme do que os diálogos inteligentes e afiados, que sustentam todas as situações e personagens muitíssimo bem.




“O Que os Homens Falam” é um filme com diversas histórias independentes, autônomas.  Poderia sofrer com isso, porque sempre uma situação é mais interessante do que a outra, ou o desempenho dos atores, num episódio, é mais convincente do que em outro.  Mas o fio condutor comum da crise da masculinidade une tudo e valoriza cada uma das histórias mostradas.  Aliás, todas muito boas.  O diretor até reuniu a maior parte dos personagens numa festa ao final, mas absolutamente não precisava disso para dar sentido ao seu filme.




De todo modo, a narrativa não seria tão convincente se não pudesse contar com um elenco de peso.  E aí não há dúvida, o talento dos atores e atrizes faz com que o filme tenha um brilho especial.  O argentino Ricardo Darín é destaque num elenco espanhol que tem Javier Cámara, Luís Tosar, Eduardo Noriega, Alberto San Juan, Leonardo Sbaraglia, Eduard Fernández, Jordi Mollá, além do time feminino, que tem as ótimas Candela Peña, Leonor Watling e Clara Segura.  Não se pode pedir mais.  É vida inteligente no cinema contemporâneo.  Sem firulas, efeitos mirabolantes ou grande orçamento.  Desta vez, proveniente da Espanha.



terça-feira, 20 de maio de 2014

OLHO NU

Antonio Carlos Egypto




OLHO NU.  Brasil, 2013. Direção: Joel Pizzini.  Com Ney Matogrosso.  Documentário.  101 min.


Ney Matogrosso chega aos 70 anos de idade como um dos maiores e mais importantes artistas brasileiros.  Cantor de timbre e extensão de voz originais, dançarino, ator, iluminador de palco, grande figura.  Talento colocado a serviço da provocação, da contestação, da diversidade e da resistência à tirania.  Sem se vincular a grupos ou tendências artísticas ou políticas, Ney marcou presença constante e relevante na cena brasileira das últimas quatro décadas.

Natural que essa vida e obra mereçam um filme para lembrá-las, celebrá-las, deixar registro para a história.  Esse registro está feito: é o documentário “Olho Nu”, dirigido por Joel Pizzini.  O filme mostra as diversas facetas e performances de Ney Matogrosso ao longo do tempo, desde o conjunto “Secos e Molhados” até interpretações mais sóbrias de clássicos da música popular brasileira.



O material de que se valeu o diretor é vastíssimo, já que garimpado do arquivo pessoal do cantor, pelo jeito uma pessoa organizada e com percepção real do valor do seu trabalho.  Está tudo lá, de um modo ou de outro.  Sem pretensões didáticas, mas sem deixar nada de lado.  Ou seja, tendo muito presente o sentido amplo e simbólico do trabalho do artista.

Estão lá a libido exposta de Ney nos palcos, a clareza do enfrentamento da censura e da ditadura, pela fantasia, pela festa, pelo deboche.  E a opção pelo caminho multifacetado, aberta pelo chamado movimento tropicalista, incluindo o resgate da rica música brasileira que precedeu a bossa nova, sem esquecer essa última.



Diversas declarações de Ney ao longo do filme exibem um artista maduro, consciente e que dialoga com seu tempo, enquanto o reflete e procura fazer avançar.  Um artista e um homem livres, tanto quanto isso é possível, especialmente se considerarmos os anos de chumbo vividos por ele, no exercício de seu fazer artístico.

“Olho Nu” tem um olhar vivo, ativo, inteligente, que faz jus ao protagonista que retrata e ao que ele simboliza.  Tem ainda a vantagem de ser eminentemente musical.  Ney canta e se exibe o tempo todo, em seus mais diversos momentos da carreira.  Pouco fala, mas quando fala o que aparece é relevante, esclarecedor.  Ou provocador, como sempre foi a sua obra.


quinta-feira, 15 de maio de 2014

PRAIA DO FUTURO

Antonio Carlos Egypto



  
PRAIA DO FUTURO.  Brasil, 2013.  Direção: Karim Aïnouz.  Com Wagner Moura, Clemens Schick, Jesuíta Barbosa.  106 min.



Muita luminosidade.  Sol.  Água.  Estamos na Praia do Futuro, em Fortaleza.  Bela e perigosa.  Um salva-vidas, Donato (Wagner Moura), tenta em vão evitar o afogamento de um banhista.  A cena que abre o filme e mostra essa luta no mar, entre a vida e a morte, nos indica que muita tensão e muita dor podem vir por aí.

Virá, também, uma história de amor homossexual, que nos remeterá da ensolarada Praia do Futuro para o colorido acinzentado de Berlim no inverno.  E conhecemos Konrad (Clemens Schick), piloto alemão, objeto de amor do brasileiro Donato.



Há mais.  Em busca não só do amor, mas do risco, da aventura e da liberdade, Donato abandona sua família, deixa para trás o irmão menor, que tinha nele um ídolo: Ayrton (Jesuíta Barbosa).  E que, mais crescido, vai cobrar a fatura do abandono que teve de amargar.

Gente que ama.  Gente que perde.  Gente que se aventura.  Gente que cobra.  Gente que se enraivece.  Frustrações, decepções, surpresas, arrependimento.  É de tudo isso que se trata.  O novo filme do conceituado diretor Karim Aïnouz é um trabalho autoral, que penetra nos sentimentos mais fortes e nas relações mais intensas.  Valendo-se de uma câmera que invade e escancara a intimidade.  Também dos corpos, mas principalmente das emoções.  Com interpretações viscerais de atores que nem sempre falam a mesma língua (é uma coprodução brasileira-alemã) ou que juntam muita experiência com o vigor da juventude em que a experiência começa a aflorar.  Com muito ensaio, o resultado sai muito bom.



De Wagner Moura nem é preciso dizer, é um dos grandes atores da atualidade brasileira.  No cinema, ficou famoso como o Capitão Nascimento, de “Tropa de Elite 1 e 2”, pelo menos para o grande público.  Na verdade, é um ator versátil, que dá credibilidade a qualquer papel: aqui, como salva-vidas e gay, ele, mais uma vez, brilha.  Até quando emite algumas falas decoradas em alemão, ele é capaz de convencer.

O mesmo se dá com Clemens Schick, que atuou com um elenco brasileiro sem falar português.  Mas teve poucas falas decoradas aproveitadas.  O filme tem pouco diálogo, é muito visual.  Ficou com ainda menos diálogos porque nem sempre as falas decoradas passaram pelo crivo do diretor.  Melhor assim: é um cinema que mostra, não fica explicando.



Jesuíta Barbosa, que faz o irmão menor do protagonista, é um ator muito talentoso.  Já havia demonstrado isso em “Tatuagem”, de Hilton Lacerda, de 2013.  Tem lugar garantido na nova geração de atores brasileiros que começa a se destacar.

É mais um filme brasileiro que ousa sair do que o chamado “mercado” possa esperar.  Que está mais interessado em cutucar vespeiros emocionais, refletir sobre caminhos e escolhas e que não se satisfaz em oferecer o conhecido, o já assimilado, o que vende.  Busca expressar o que lhe parece importante e relevante.  É por aí mesmo.


sábado, 10 de maio de 2014

LONGWAVE - NAS ONDAS DA REVOLUÇÃO

Antonio Carlos Egypto





LONGWAVE – NAS ONDAS DA REVOLUÇÃO (Les Grandes Ondes [À L’Ouest]).  Suíça, Portugal, França, 2013.  Direção: Lionel Baier.  Com Valérie Donzelli, Michel Vuilermoz, Patrick Lapp, Francisco Belard, Jéan-Stéphane Bron.  85 min.



O Festival Internacional da Francofonia tem trazido a produção artística em língua francesa, para melhor difusão em nosso país.  E filmes não só da França, mas da Bélgica, do Canadá (de Québec) e da Suíça têm sido exibidos.  Alguns chegam ao circuito comercial dos cinemas em seguida.  Esse é o caso da produção suíça (em coprodução com  França e Portugal), que está sendo lançada com o título de “Longwave – Nas Ondas da Revolução”.

No filme, vemos o interesse de uma rádio suíça em mostrar os investimentos de seu país que contribuem para o bem-estar de outros povos, como seria o caso de Portugal.  É preciso cobrir a ajuda que recebem da Suíça e dar divulgação a isso, para agradar os patrocinadores.  É o tal do jornalismo chapa-branca, que, justamente por essa característica, é mais do que desinteressante, é claramente tedioso.  Mas, se a missão é essa, vamos reunir uma pequena equipe de jornalistas, encontrar um intérprete e ver, in loco, em que resultaram alguns dos investimentos suíços em Portugal, a bordo de uma kombi. 



As descobertas que vão aparecendo são um verdadeiro vexame.  Para citar só uma delas: uma escola em Portugal recebeu, como apoio educacional suíço,  um relógio e uma pequena verba para sua manutenção.  O que seria até dispensável, já que os relógios suíços são os melhores do mundo, não é mesmo?  O relógio, naturalmente, estampa, entre o rodar dos ponteiros, a contribuição da Suíça para a educação.

Já estava na hora de desistir de tal lamentável cobertura jornalística e voltar à Suíça, quando o grupo de jornalistas, em plena 25 de abril de 1974, é envolvido por um evento extraordinário, que não estava no programa: a Revolução dos Cravos, que pôs fim à longa ditadura portuguesa, em forma de festa e com intensa participação popular nas ruas.  Com direito a canhões empunhando cravos.  O que seria um evento jornalístico sem propósito resulta numa reportagem inédita, espetacular, histórica.  E que envolve cada um dos responsáveis pela tal missão de modo absoluto e permanente.  Como é incrível estar no lugar certo e na hora certa, com o equipamento necessário.  Nem que isso tenha se dado por mero acaso e completo desconhecimento do que estava por vir.



O tom de comédia é muito apropriado para contar essa história e o estilo crítico que perpassa toda a ação não faz apenas rir.  Denuncia pela chacota um certo tipo de jornalismo, assim como os tais investimentos, em contraste com algo pulsante e real: uma revolução popular.

A equipe de cobertura rádiojornalística e os tipos que com ela convivem caracterizam uma comédia que tem excessos e clichês, além de situações absurdas, em busca de fazer rir.  Funciona, até certo ponto.  Mas, mais do que as piadas ou a performance cômica do elenco, é o viés crítico de gozação o que o filme tem de melhor.


quinta-feira, 8 de maio de 2014

ENTRE VALES

Antonio Carlos Egypto


ENTRE VALES.  Brasil, 2012.  Direção: Philippe Barcinski.  Com Ângelo Antônio, Daniel Hendler, Melissa Vettore, Inês Peixoto.  80 min.


“Entre Vales” começa nos mostrando um grande lixão e catadores que tentam chegar logo ao que vai sendo lá despejado, para obter as coisas mais aproveitáveis.  Uma situação suja e degradante.  Entre os sem-teto e catadores de lixo, está Vicente (Ângelo Antônio).

Mudança de vida e de cenário e conhecemos Vicente (Ângelo Antônio), um engenheiro cuidando de obras sanitárias ligadas ao lixo, com sua mulher e um filho, numa confortável vida de classe média.

As duas situações vão sendo mostradas paralelamente, o nome do personagem e o ator são os mesmos, mas, na verdade, serão dois personagens distintos?  O engenheiro terá decaído a tal ponto que virou catador de lixo?  Ou o contrário, o catador acabou como engenheiro?  Por que e como isso teria acontecido? 



Ao longo do filme, essa questão estará colocada e a dúvida a respeito da situação dupla ajudará a segurar o interesse pela história que o filme quer contar.  Mas não é só isso.  O desempenho do ator Ângelo Antônio, excepcional nos dois papéis, é um trunfo evidente de “Entre Vales”.  Ele segura o filme do princípio ao fim.

O roteiro é bom e a realização, também, na contraposição desses dois mundos aparentemente inconciliáveis.  Nada é muito previsível e o diretor trabalha com o tempo, para adiar ao máximo o deslindar do nó da questão.  Não é exatamente um filme de suspense, mas um drama familiar daqueles que as pessoas enfrentam com muita garra e luta ou sucumbem.  Vencem ou são derrotadas.  O suspense vai por conta do entendimento pleno da situação.



Lixo e reciclagem, emoções enterradas e reviradas, perdas e reconstruções estão na base da trama, que procura refletir sobre algumas das preocupações da atualidade nos ambientes urbanos, tendo o ser humano como centro.

“Entre Vales” é uma coprodução do Brasil com Uruguai e Alemanha.  O ator uruguaio Daniel Hendler, que tem trabalhado principalmente no cinema argentino, faz parte do elenco, no papel do personagem Carlos, sócio do engenheiro.  Não é uma atuação que lhe possibilite grande destaque, assim como a das atrizes Melissa Vettore e Inês Peixoto, e a do garoto, Matheus Restiffe, muito bom, que faz Caio, o filho de Vicente.  Todo o destaque da atuação fica mesmo para Ângelo Antônio.


segunda-feira, 5 de maio de 2014

7 Caixas

Tatiana Babadobulos


7 Caixas (7 Cajas). Paraguai, 2012. Direção: Juan Carlos Maneglia e Tana Schembori. Roteiro: Tito Chamorro e Juan Carlos Maneglia. Com: Celso Franco, Víctor Sosa, Lali Gonzalez. 100 minutos


O sonho de Vítor (Celso Franco) é aparecer na televisão, tal como ele costuma ver nas telas dos aparelhos espalhados em uma grande feira na cidade onde vive, Assunção, no Paraguai. Conversando com a irmã, descobre que o celular é capaz de filmar. Quando se dá conta, o tal celular, vendido por 700 guaranis, vira seu objeto de desejo, quase uma obsessão. Mas, para conseguir a peça, é preciso trabalhar e ganhar dinheiro. Seu trabalho, aliás, é carregar os pacotes das pessoas que compram na tal feira.

Assim começa o thriller paraguaio “7 Caixas” (“7 Cajas”), em cartaz atualmente em São Paulo. E são justamente sete caixas (daí o nome do filme) que o garoto terá de guardar “como se fosse sua própria vida” e entregá-las no momento certo e no local combinado. Se fizer tudo certinho, Vítor vai ganhar cem dólares, dinheiro prometido pela pessoa que fez a encomenda. Mas para garantir que as caixas chegarão ao destino, cada um fica com metade de uma nota de cem dólares: no dia combinado, elas poderão ser unidas.


Os diretores Juan Carlos Maneglia e Tana Schembori fazem analogias o tempo inteiro com o cinemão americano. É verdade que o seu país não tem tradição cinematográfica, o que o leva “imitar” as referências. Mas os realizadores vão além. Pra começar, rasgam a nota de cem dólares e fazem questão de mostrar isso em close ao espectador. Antes disso, mostra quanto vale o dinheiro, se convertido para a moeda local: compara o valor do celular e de remédios, com o valor de cem dólares, e coloca seu protagonista para correr.

Ao invés de a correria ser feita em carrões, ela é realizada com carrinhos de mão, mostrando a pobreza paraguaia. Mesmo sem necessidade, lá pelas tantas, cada personagem tem o seu. E vamos para a correria com a câmera na mão, com closes e referências a filmes americanos, mas sem deixar completamente de lado o clássico “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, já que se passa em um conjunto habitacional carioca.

O filme brasileiro fala de pobreza e do tráfico de drogas; já o paraguaio trata principalmente da violência e da pobreza, mostrando, por exemplo, a dificuldade que se tem para comprar remédio para o filho doente ou de pagar o parto do outro que vai nascer.

Se “Cidade de Deus” era contemporâneo ao seu lançamento, embora conte com diversos flashbacks, “7 Caixas” não tem muita clara a época em que o filme se passa. Uma das referências que serve como base para essa confusão é o modelo dos celulares que aparecem como objeto de desejo.

“7 Caixas” não para. Traz uma reviravolta atrás da outra (outro cacoete de filmes americanos), mas consegue manter o espectador vidrado em saber, primeiro, o conteúdo da caixa, e depois em como o garoto vai se livrar da perseguição e, claro, conseguir a metade da nota que lhe foi prometida no começo do filme. Uma das metas já é clara, Vítor aparece na televisão, tal como ele fazia questão de se ver.


“7 Caixas” não tem nada de falsificado: é legítimo e autêntico. O longa-metragem surpreende e é um bom começo para conhecer, quem sabe, os próximos filmes paraguaios que chegarão aos cinemas brasileiros.

domingo, 4 de maio de 2014

EU, MAMÃE E OS MENINOS

  
Antonio Carlos Egypto



EU, MAMÃE E OS MENINOS (Les Garçons et Guillaume, à Table!).  França, 2013.  Direção e roteiro: Guillaume Gallienne.  Com Guillaume Gallienne, André Marcus, Françoise Fabian.  85 min.



A identidade de gênero, ou seja, ser e se sentir homem ou mulher, depende não apenas de um corpo biológico masculino ou feminino, mas também de determinantes socioculturais.  Se as pessoas ao seu redor o veem de um modo diferente do que você se vê, o que prevalecerá?  O que é ser masculino, quando seus modelos de referência são femininos?

É possível questionar os padrões, condutas e vestimentas atribuidos ao seu gênero, sem por isso negá-lo? Ou seja, inovar no gênero?  Não é fácil, mas é possível.  Vejamos o exemplo do cartunista Laerte, que atualmente se utiliza de um vestuário caracterizadamente feminino, mas não deixou de ser visto como homem, com identidade e nome masculinos, apesar das roupas, digamos, dissonantes.  Acontece que ele já tinha uma larga história de vida, vivida e reconhecida no seu meio e pelo público.  Sua mudança surpreendeu, foi debatida e assimilada.  Se se tratasse de uma criança ou jovem desconhecidos teria sido igual?



Guillaume é um menino, ou poderia ser.  Mas não é tratado como tal.  A mãe individualiza sua pessoa, distinguindo-a dos outros meninos.  Essa é a razão do título “Les Garçons et Guillaume, à Table” ou, na versão brasileira, “Eu, Mamãe e os Meninos”.  Quem seria eu?

Há mães, como parece ser o caso da de Guillaume, que, após ter dois meninos, desejava uma menina para se espelhar, se identificar com ela.  Se a biologia não colaborar, que tal ignorá-la?  Guillaume segue o desejo materno e mimetiza de tal modo a mãe que até se confunde com ela, ocupa o seu lugar sem que outros percebam, quando fala sem ser visto. Improvisa com suas roupas de garoto, criando sempre um modelito mais feminino.  Inspira-se não só na mãe, mas em outras mulheres que observa e admira, da família ou fora dela.



Isso significa que Guillaume será gay?  Não, porque nada disso tem a ver com o desejo sexual pelo mesmo sexo.  A identificação com o gênero feminino não significa, necessariamente, a orientação homossexual ou bissexual da atração, do desejo.

O filme “Eu, Mamãe e os Meninos” lida com isso inteligentemente e cria situações divertidas e inesperadas.  O ator, roteirista e diretor Guillaume Gallienne dá um show de interpretação na caracterização desse personagem especial e, também, no de sua mãe.  O público francês adorou, mais de 3 milhões de ingressos foram vendidos por lá.  A crítica também: o filme foi indicado a dez prêmios César 2014, o Oscar francês.  Venceu cinco, inclusive o de melhor filme e melhor ator.



Divertido e inteligente o filme é.  Engraçado, nem tanto.  Há poucas cenas que provocam o riso, que podem ser capazes de levar o público às gargalhadas.  De qualquer modo, é uma boa comédia e tem um enfoque muito interessante e adequado ao tema de que trata.  Em tempos em que é raro encontrar uma comédia de qualidade, sem maiores apelações, é bem-vinda.  Se todos os prêmios e o sucesso de público se repetirão fora da França, só o tempo dirá.  Aparentemente, não é para tanto.  Mas vale a ida ao cinema.   Há originalidade nesse trabalho.