terça-feira, 31 de julho de 2018

CAFÉ

Antonio Carlos Egypto






CAFÉ (Caffè).  Itália, 2016.  Direção: Cristiano Bortone.  Com Hichem Yacoubi, Dario Aita, Fangsheng Lu, Ennio Fantastichini.
 

“Café”, o filme, não deixa de ser uma homenagem ao nosso sofisticado hábito de tomar café com algum requinte.  Seja sendo uma produção super especial, única, seja sendo servido num bule valiosíssimo, seja lendo a sua borra na xícara.  Ou, ainda, discorrendo sobre os seus três sabores básicos: amargo, azedo e perfumado.

Outra constatação muito importante, o café é um hábito planetário, alcança todo o mundo.  A prova disso é que o filme, do diretor italiano Cristiano Bortone, conta três histórias passadas em países distintos: Itália, Bélgica e China ( é uma coprodução dos três países) e envolve personagens árabes. Uma trama permeada pelo café, como elemento simbólico e econômico, que pode vir a frequentar o noticiário policial e mexer de forma intensa com a vida das pessoas.




As histórias têm um fio tênue que as liga, como, de algum modo, todos nos ligamos enquanto seres humanos, ainda que longe uns dos outros, mundo afora.

Um precioso bule de café roubado leva um árabe pacífico a se envolver com violência na Bélgica, para recuperá-lo.  Questões políticas, manifestações de rua em Bruxelas, insatisfações com a situação econômica, falta de empregos e de opções para os jovens e conflitos familiares imbricam-se num relato policial, a partir de um ladrão imaturo e inepto.  A mesma questão do colapso das políticas de austeridade europeias encontra em Trieste, na Itália, uma fábrica e um museu de café que serão objeto de um assalto que põe em evidência a combinação entre a questão ética e o desespero numa sociedade de consumo que não se sustenta.

Na China, não é diferente.  Uma fábrica de café põe em risco o meio ambiente e a comunidade, pela ganância e rigidez de seus donos, insensíveis ao sofrimento humano que podem causar.  E faz-se um chamamento para a revalorização do cultivo romântico e tradicional do café.  Isso entremeado por uma história de amor e, claro, pela redescoberta de um sabor artesanal da bebida.

Cada uma das histórias de per si  teria condição de alimentar um longa, porque havia muito ainda a explorar.  O resultado encontrado, no entanto, é bom pela dimensão globalizada em que situa o café e os dramas que podem cercá-lo.  Considerando que os maiores produtores, como o Brasil e a Colômbia, estão fora da trama, tem-se a dimensão da representatividade do café no contexto mundial.




“Café” é um bom produto cinematográfico global, que se vale da força simbólica da bebida que o mundo aprecia para contar histórias envolventes que dialogam com a realidade econômica atual.  A narrativa salta de uma história a outra, ao longo de todo o filme, sem chegar a cansar ou a confundir o espectador, pela mão segura de um bom cineasta e de um bom e diversificado elenco.

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8 ½. FESTA DO CINEMA ITALIANO

De 02 a 08 de agosto de 2018 São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Florianópolis, Goiânia, Porto Alegre, Recife, Salvador e Vitória apresentam nos cinemas a tradicional 8 ½. Festa do Cinema Italiano.   São 11 longas-metragens da produção italiana recente, que merecem ser conferidos.  Já vi e recomendo “Uma Questão Pessoal”, dos irmãos Taviani (o último filme de Vittorio Taviani, falecido em abril último) e “Fortunata”, de Sergio Castellitto.  Voltarei ao assunto depois de ver outros filmes dessa mostra.
 


quinta-feira, 26 de julho de 2018

ALGUMA COISA ASSIM



Antonio Carlos Egypto




ALGUMA COISA ASSIM.  Brasil, 2017.  Direção e roteiro: Esmir Filho e Mariana Bastos.  Com Caroline Abras, André Antunes, Clemens Schick, Juliane Elting.  Participações de Lígia Cortez e Vera Holtz.  80 min.


“Alguma Coisa Assim” é um longa brasileiro, com coprodução alemã, que retoma os personagens de um curta homônimo, premiado em Cannes em 2006.  Os realizadores, o ator e a atriz protagonistas, são os mesmos, a trama incorpora a história original e a amplia, para ser experimentada dez anos depois.

Essas explicações não importam muito, são apenas referências para situar o trabalho.  O que conta é o resultado do longa atual, independentemente da sua história passada.  Eu não vi o curta e não senti nenhuma falta de vê-lo.

“Alguma Coisa Assim” é um filme moderno na forma e nas questões temáticas que propõe.  A partir das baladas das casas noturnas da rua Augusta e seu clima transgressivo e colorido, o neón invade a tela, mesmo constatando que a cidade mudou e os jovens estão diferentes.  A história dos dois personagens, Mari (Caroline Abas) e Caio (André Antunes) vai ser retomada em outro contexto urbano, também aberto a experimentações: a vibrante e pulsante cidade de Berlim.  Os jovens estão em busca de algo novo.  O que poderia ser isso?  Basicamente, a ideia de um viver sem rótulos, para além das convenções sociais.

O que significa namorar hoje?  E a amizade que chamávamos de colorida?  Que tal o casamento, em especial, o casamento gay?  Como se define hoje a família, com suas novas formas?  Como se pode entender a sexualidade, em suas múltiplas e plásticas formas?  E os gêneros?  Os cisgêneros e os transgêneros?  Os relacionamentos afetivos e amorosos contemporâneos jovens desafiam convenções e tentativas de enquadrá-los.  Rejeitam e superam os rótulos.




Por que queremos tanto classificar, enquadrar, rotular as coisas?  Em princípio, isso seria preciso para tentar entendê-las.  Mas quase nunca ajuda nos relacionamentos humanos.  Porque, por trás disso, está a noção do controle social e da busca de impor uma visão conservadora do mundo aos jovens e à sociedade como um todo.

“Alguma Coisa Assim” é um jeito mais livre de ser, de experimentar, de arriscar, de viver.  Também com muitas frustrações e incompreensões.  Mas isso é do jogo, está sempre presente.  São personagens se descobrindo, se redescobrindo, percebendo-se mutantes, em transformação constante.

Um filme que vem em boa hora para o nosso Brasil, que anda para trás em tanta coisa, em que os fundamentalistas querem brecar os avanços conquistados nos costumes, atacando a questão de gênero, a diversidade sexual, as novas famílias, o feminismo e o direito mais amplo ao aborto.  No caso do aborto, “Alguma Coisa Assim” é de uma clareza e de uma honestidade que merecem aplausos.  Não faz qualquer proselitismo, mas toca no ponto.  Todo o clima do filme respira uma modernidade digna e bonita.  Esmir Filho e Mariana Bastos fizeram um belo trabalho.




Os atores Caroline Abras e André Antunes vestem a camisa dos personagens com muita sinceridade e força.  Estão muito convincentes.  Caroline já na estrada como atriz, se saindo muito bem e sendo premiada.  André, tentando sair da profissão de ator, abraçando a psicologia como profissão, mas sem conseguir fugir do personagem que começou a interpretar dez anos antes.  Que tal acumular as duas coisas?  Destaque também para a trilha musical de Lucas Santana e Fábio Pinczowskit.

O que eu sei é que está mais do que na hora de alguma coisa assim poder se afirmar na vida das pessoas.  Menos rótulos, mais autenticidade. Isso me faz lembrar de “Jules e Jim”, de François Truffaut, de 1962, e de “As Duas Faces da Felicidade’, de Agnès Varda, de 1965, filmes icônicos de uma fase que revolucionou os costumes nos anos 1960 e que tem muito a nos dizer hoje.  Sabendo ou não seus realizadores, o filme “Alguma Coisa Assim” segue essas pegadas, com competência.





domingo, 22 de julho de 2018

BERGMAN - 100 ANOS



Antonio Carlos Egypto




BERGMAN – 100 ANOS (Bergman – Ett Ar, Ett Liv).  Suécia, 2018.  Direção Jane Magnusson.  Documentário.  117 min.


O cineasta sueco Ingmar Bergman (1918-2007) é, indubitavelmente, um dos maiores talentos revelados pela história do cinema, em todos os tempos.  Um dos poucos que merece, genuinamente, ser chamado de gênio.  Seu trabalho no cinema inclui uma obra tão densa, rica e sofisticada, que não pode ser esquecida e merece ser sempre revista, principalmente na tela grande.  Isso tem acontecido por conta do centenário de Bergman neste 2018.  Algumas de suas obras-primas têm sido reexibidas em cópias restauradas nos cinemas.  É o caso de “Gritos e Sussurros” (1972), “Persona” (1966), “Fanny e Alexander” (1982), “Cenas de um Casamento” (1974), “Face a Face” (1975), entre outras.

O documentário recém-lançado “Bergman – 100 Anos”, de Jane Magnusson, reconhece esse talento todo e enfatiza a espantosa produtividade de Bergman, apontando para o ano de 1957.  É incrível constatar que duas das maiores obras-primas do cinema tenham sido realizadas por ele nesse mesmo ano: “O Sétimo Selo” e “Morangos Silvestres’.  Ainda em 1957, ele faria o filme “No Limiar da Vida”, montaria duas peças importantíssimas no teatro sueco, “Peer Gynt”, de Ibsen, e “Fausto”, de Goethe.  Faria, ainda, duas outras peças teatrais e um telefilme.  Isso aos 38 anos, já com seis filhos de três mulheres diferentes.  Nesse ano, e nos seguintes, essa produtividade se manteve, em meio a dores estomacais que faziam com que ele se alimentasse basicamente de bolacha Maria e iogurte, tendo tido episódios de internação hospitalar por conta disso.




O filme de Jane Magnusson está interessado em compreender como esse homem lidou com essas coisas simultaneamente e de que modo vida e obra se imbricam.  Com isso, celebra a genialidade do trabalho que Bergman realizou, mas se debruça no lado negro da força, ou seja, nos problemas e defeitos pessoais que marcaram o diretor.

Aborda, por exemplo, seu gênio difícil, sua competitividade com lances de crueldade, sua infidelidade em relação às mulheres e seu descaso em relação aos filhos.  E sua condição de  workaholic,  indispensável para explicar tal produtividade.  Lembra que Bergman chegou a ser um admirador de Hitler na juventude, e outras coisas mais. Uma homenagem nada chapa branca, portanto.

Confesso que não me agradou muito essa “humanização” do artista, que se comporta como desconstrução de sua figura mítica.  Ele próprio tratava de questões como essas em seus escritos, reconhecendo defeitos, admitindo erros e falhas de caráter.  Mas, segundo o documentário “Bergman – 100 Anos”, ele mentia frequentemente.  Muitas histórias que ele conta que viveu na infância, segundo seu irmão mais velho, não foram vividas por ele, mas pelo irmão. Enfim, não se poderia confiar nem no que ele escreveu a respeito de si mesmo.  Pode ser, mas que importa isso agora?




Tudo que ele viveu ou observou serviu de base para suas histórias, seus questionamentos, e habitou alguns dos personagens mais complexos de sua filmografia, com destaque para as mulheres.  Um grande criador se vale de tudo isso, mescla e retrabalha lembranças, modifica, amplia, inventa.  Além do que, a memória é seletiva, para todo mundo.  Quantas vezes a gente acredita que viu e viveu coisas que, de fato, não aconteceram.  Ou não desse modo, pelo menos.  A obra de Ingmar Bergman é tão grande que tudo isso parece pouco relevante e não explica muita coisa, não. 

Temer a morte, ou as dores e sofrimentos que podem vir antes dela, todo mundo teme.  Mas quantos, em função disso, produziram obras de arte significativas para nos fazer refletir sobre o tema, como Bergman fez em muitos de seus filmes?

Bergman viveu 89 anos e deixou uma marca inconfundível na produção artística mundial.  Seus filmes estão aí para testemunhar.  Os livros que escreveu, também.  Das grandes montagens teatrais restaram fotos e depoimentos.  Celebrar os 100 anos do seu nascimento deve ser motivo de orgulho para toda a humanidade.





quinta-feira, 19 de julho de 2018

EGON SCHIELE - MORTE E DONZELA


Antonio Carlos Egypto




EGON SCHIELE – MORTE E DONZELA (Egon Schiele - Tod und Mädchen).  Áustria, 2016.  Direção: Dieter Berner.  Com Noah Saavedra, Maresi Riegner, Valerie Pachner, Marie Jung, Elisabeth Umlauft.  110 min.


Egon Schiele (1890-1918) viveu pouco, apenas 28 anos, mas produziu uma obra pictórica grande, importante e inovadora.  O pintor austríaco do começo do século XX é considerado um nome de destaque do expressionismo.  Os desenhos e pinturas em que efeitos distorcidos são explorados foram, na grande maioria dos casos, nus femininos.  E ele tinha como modelos garotas muito jovens, a começar por sua própria irmã, sua primeira modelo.  A ênfase não só na nudez, mas, principalmente, na expressão erótica das jovens parece indicar tendência a  pedofilia, não no sentido de abuso sexual, mas de atração por meninas novas.

O convívio com essas meninas que frequentavam sua casa, seu ateliê, ao lado do erotismo do trabalho, acabou lhe valendo um processo e uns dias de cadeia, em 1912, pela acusação de imoralidade e inadequação da obra, como ofensiva para as crianças que a ela estavam expostas, quando não eram os próprios modelos.  O desfecho poderia ter sido bem pior se a suposta perda da virgindade delas tivesse sido provada, o que não aconteceu.



A obra vigorosa e provocativa, para alguns francamente pornográfica, aí está, permanecendo para a posteridade.  O talento é evidente.  Já era no seu curto tempo de existência para os que conheciam as artes plásticas.  Caso de seu contemporâneo Gustav Klimt (1862-1918), o grande pintor simbolista austríaco, que teria sido incentivador de Schiele, comprado seus trabalhos, lhe apresentado pessoas influentes e lhe arranjado algumas modelos.  Quase trinta anos mais velho, Klimt já era um artista de peso, a essa altura.  Curiosamente, Schiele e Klimt vieram a falecer no mesmo ano, que marcava o fim da Primeira Guerra Mundial.

O filme austríaco “Egon Schiele – Morte e Donzela”, dirigido por Dieter Berner, é uma boa cinebiografia do pintor.  Tenta recriar o clima de sua vida e mostra um pouco da sua obra.  Tem sequências muito bonitas e bem filmadas, um elenco jovem que não chega a brilhar, mas atua com empenho, e explora a nudez e o erotismo que combinam com o trabalho do pintor.  Não vai mais fundo nos questionamentos que a vida e a obra de Egon Schiele suscitam, mas traça um retrato razoável disso.

Um filme anterior sobre o mesmo pintor, “Excesso e Punição”, de Herbert Vesely, de 1981, com Mathieu Carrière e Jane Birkin, era mais forte e sombrio, no retrato de Egon Schiele.  Não chegou a obter sucesso, talvez por ser menos sedutor e de ritmo lento.  Eu diria que os dois filmes se complementam, ao tentar trazer para um público mais amplo a história e o trabalho do jovem Schiele, que se despediu da vida por conta da gripe espanhola.  O pai dele morrera de sífilis.  Tempos em que a medicina ainda podia pouco e a inevitabilidade da morte em idade precoce se impunha.




O subtítulo do filme de Dieter Berner: “Morte e Donzela” faz referência a um quadro famoso, de 1915-16, assim denominado, incluindo os artigos..  A morte e a donzela   é um motivo renascentista, aqui explorado com um casal entre lençóis, visto de cima, envolvido por formas que parecem agitadas, remetendo à ideia de morte.

O filme, bem realizado, é uma oportunidade para que, quem não conhece, entre em contato com a arte de Egon Schiele.  E quem já o admira possa conhecer algo mais de sua vida e obra.  Vale por isso.  

         

sexta-feira, 13 de julho de 2018

PRIMAVERA EM CASABLANCA



Antonio Carlos Egypto




PRIMAVERA EM CASABLANCA (Razzia).  Marrocos/França, 2017.  Direção: Nabil Ayouch.  Com Mariam Touzani, Arieh Worthalter, Abdelialah Rachid, Dounia Binebine, Younes Bouab.  119 min.


Casablanca, Marrocos, uma cidade de contrastes, oposição, diversidade.  E também de opressão e violência.  Além disso, uma cidade de fantasia.  Afinal, é o título de um dos maiores clássicos do cinema, aquele que reuniu Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, ao som de “As Time Goes By”.

Nabil Ayouch, o diretor e também roteirista, ao lado de Mariam Touzani, de “Primavera em Casablanca”, vive lá, sente de dentro o que acontece na cidade.  Tem um olhar especial para os que são criticados, enquadrados, oprimidos, excluídos.  E para a imposição de valores, em nome da tradição ou da religião. Por meio de diversos personagens, o filme fala desse conflito, ora, explicitado, ora, surdo, que compõe um caldo de cultura que não tem outro caminho que não seja desandar em violência.




Um professor de província, dedicadíssimo às suas crianças e por elas amado em seu vilarejo, onde o que se fala é o idioma berbere, recebe um ultimato e a presença de um inspetor, porque a nova lei educacional obriga que o ensino no país seja só em árabe.  Ocorre que as crianças não entendem outra língua e só poderão decorar coisas sem significado, sem saber o que estão repetindo.  A frustração leva o mestre a escolher se perder no anonimato de Casablanca.

No ambiente urbano, há uma personagem feminina que se produz, se veste com sensualidade, explora sua beleza e tenta construir sua identidade, dispensando os modelos que lhe são impostos, e sofre com isso.

Quem busca se expressar pela modernidade, se identifica com o rock  que contesta, em vez da música tradicional, que tem papel conservador, encontra resistência.  Viver de música, mesmo bem remunerado, é inaceitável na ótica dos pais.  Não há espaço para a homossexualidade e as formas diversas de viver a masculinidade.  Mas elas estão lá.  Para a mulher, a questão da virgindade até o casamento e a condenação do aborto se escoram na noção de pecado, produzindo sofrimento e desespero.  Falta emprego para a juventude e os ares da liberdade buscam expressão.

2011, a primavera árabe movimenta a região, aparentemente trazendo novos ares e possibilidades.  Revoluções, queda de regimes, a imperiosa necessidade de encontrar novos caminhos e também a produção de respostas individuais, revoluções pessoais.  A tradição autoritária e o controle em nome de valores religiosos sufocam essas revoluções e as saídas políticas revelam-se outra face da mesma moeda.




O protesto e a violência tomam conta das ruas e as festas acabam em pancadaria e agressões desmedidas.  “Primavera em Casablanca” mostra o que está acontecendo, com preocupação.  Preocupação que também deveria ser a de uma direita brasileira, que insiste em pregar liberalismo na economia e conservadorismo nos costumes.  Uma fórmula para oprimir, abalar direitos e produzir mais violência, onde já há tanta desigualdade e tanta divisão.

Bem, e como fica a Casablanca da fantasia, do cinema de Hollywood, de Bogart e Bergman?  Serve para alienar, folclorizar, distorcer a realidade.  Fake news , para usar um termo da moda.  Acho que todo mundo sabe que em “Casablanca”, de Michael Curtiz, (1942), não há nenhuma cena filmada na cidade, ou no Marrocos.  O “Rick’s Bar” nunca existiu por lá.  Não antes de aquele filme ser feito, pelo menos.

  


domingo, 8 de julho de 2018

POR DENTRO DA OSESP


Antonio Carlos Egypto




A OSESP – Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo – tem alcançado um nível de excelência, reconhecido internacionalmente, que a situa entre as melhores orquestras de todo o mundo.  E a sala São Paulo, sua sede, é reconhecidamente uma sala de concertos primorosa, num ambiente de beleza arquitetônica e eficiência técnica, com 1500 lugares. Envolvida pelo centro da cidade, ainda bem deteriorado, em que desponta a cracolândia, acaba sendo uma ilha de arte e beleza, cercada de problemas por todos os lados.  Ainda assim, é motivo de orgulho para a cidade, o Estado e a sua população.

Registrar o trabalho criativo da OSESP, incluindo a produção necessária para a realização dos concertos na sala São Paulo, é o objetivo de uma série documental para a TV, dirigida por Diego de Godoy, que será veiculada a partir do dia 12 de julho, sempre às quintas-feiras, às 20:30 h, pelo Canal Arte 1, do grupo Bandeirantes (na Vivo, 127 ou 627, na NET e Claro, 553, na Sky, 81 e Oi, 85).

Serão seis episódios, de cerca de 50 minutos de duração cada um, que focalizarão os diversos setores criativos da orquestra, com intenção didática.  O primeiro programa, a que pude assistir, trata da regência, focalizando o trabalho de Marin Alsop, a maestrina titular da orquestra, do diretor artístico Arthur Netrovski, do diretor executivo Marcelo Lopes e como isso tudo se articula.




Em tempos recentes, o maestro John Neschling acumulou praticamente essas funções por doze anos.  A sua saída traumática e o interesse em ter regentes internacionais, vivendo fora do Brasil, exigiram um novo modelo.  Isso não está colocado desse modo no filme, mas eu acompanhei essa história como frequentador constante dos concertos da OSESP, desde 2001.

A série “Work in Progress – Por Dentro da OSESP” pretende nos levar à intimidade da orquestra, de como se faz música clássica, entrando nos detalhes, mostrando ensaios, revelando um pouco do que fazem os artistas: o maestro, os músicos, os que estabelecem e viabilizam as programações e a vinda de convidados internacionais de peso, com antecedência de pelo menos dois anos.  Enfim, o que mostra o arcabouço da criação artística de uma grande orquestra, o que está envolvido nos diferentes concertos que a OSESP apresenta na cidade de São Paulo, três vezes a cada semana, mantendo um padrão de qualidade invejável.  Além das apresentações no interior do Estado e em excursões internacionais, que costumam ocorrer anualmente.

Vale a pena conferir a série, tanto para quem frequenta habitualmente concertos quanto para quem tem interesse em aproximar-se desse universo da música clássica.  Para quem gosta de música, enfim.

Vocês devem estar estranhando esse texto aqui no Cinema com Recheio, que se dedica exclusivamente à critíca de cinema.  Fiz uma exceção porque vou quase tanto aos concertos (da OSESP, da Jazz Sinfônica, da OSUSP, etc), como vou ao cinema.  Mas não sou, nem pretendo ser, crítico musical.  E uma série de TV não deixa de ser filme, embora não esteja sendo veiculada pelos cinemas.



quarta-feira, 4 de julho de 2018

CUSTÓDIA + HANNAH

Antonio Carlos Egypto

                                               CUSTÓDIA

CUSTÓDIA (Jusqu’à la Garde).  França, 2017.  Direção e roteiro: Xavier Legrand.  Com Denis Ménochet, Léa Drucker, Thomas Gloria, Mathilde Auneveux, Mathieu Saikaly.  90 min.


A separação de casais com filhos não precisa ser complicada ou traumática, como a que acontece no filme francês “Custórida”, de Xavier Legrand, um dos destaques da 41ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.  Muitas vezes, o convívio das crianças com as casas e, eventualmente, famílias de pais e mães separados, pode até enriquecer ou diversificar as experiências delas, se tudo se faz de forma pacífica e civilizada. Pode até persistir um vínculo afetivo bom entre os cônjuges que decidiram, cada um, levar a sua vida em outros termos. 




Mas, quando a separação é litigiosa, resulta em brigas, violência e disputa judicial da guarda e do direito de conviver com os filhos, quem acaba suportando a maior e mais pesada carga são justamente as crianças. Para mostrar isso com clareza e intensidade dramática, “Custódia” coloca em foco o menino que vai a contragosto conviver com o pai, volta para a casa da mãe, fica no meio do conflito, passando recados de um a outro, que não querem se ver. E por aí vai.
 
A narrativa é firme, bem construída, o desempenho do garoto é espetacular, nos faz viver o que ele estaria experimentando.  A questão de gênero é bem mostrada.

A solução dramática final parece inevitável, embora esteja aqui carregada nas tintas.  Mas a sequência é muito boa, extremamente tensa, com um clímax emocionante.  O diretor demonstra um talento incrível já no seu primeiro longa-metragem. 


                                                  HANNAH

HANNAH (Hannah).  Itália, 2017.  Direção: Andrea Pallaoro.  Com Charlotte Rampling, André Wilms, Stéphanie Van Vyve, Simon Bisschop.  95 min. 


“Hannah”, do diretor italiano Andrea Pallaoro, é um filme de climas, sentimentos represados, frustrações e, no limite, perda de identidade.  A personagem título, vivida pela grande atriz inglesa Charlotte Rampling, mal se sustenta de pé, com suas ações cotidianas na casa, num curso de teatro, nadando na piscina de um clube, exercendo um trabalho que envolve cuidar de um menino cego numa instituição, numa vida familiar que desmorona.  Ela tem um marido, com quem mantém relações um tanto distantes, mas ele acaba na prisão, entregando-se voluntariamente.  Ela também tem um neto, mas está impedida de vê-lo pelo filho, que a quer longe.  Ela tem um cachorro, apegado ao marido, com quem também não consegue um vínculo de afeto.

Tudo isso é vivido de forma misteriosa, sem que se possam conhecer as razões objetivas dessas situações.  O diretor não está interessado nisso.  Ele quer nos mostrar a solidão, o declínio da existência, a depressão e a velhice.  Como isso pode ser vivido de forma dolorosa e sem perspectivas.




Para tal se vale de ambientes escuros, embrumados, esfumaçados, com falta de foco no entorno.  Ele filtra através de vidros opacos, filma em ambientes impessoais, os de transporte coletivo, como o metrô.  Lugares onde pessoas também podem expressar emoções de forma abrupta.  No entanto, a solidão parece mais forte justamente numa hora dessas.

O filme é falado em francês, mas tem muito poucas falas.  O som, entretanto, é um de seus trunfos.  O som ambiente, um rádio ligado, falas, risos, latidos, tudo o que cerca Hannah, mas que não diz respeito a ela.  Acentua-se, desse modo, sua alienação do mundo em que habita.

Um retrato íntimo de uma mulher idosa, que suporta suas perdas, que parecem só aumentar, confundindo-se no emaranhado de suas memórias, sem se conectar a elas verdadeiramente.  Tentando não ver, não saber.  Um personagem que é um desafio, vencido com galhardia por Charlotte Rampling, ganhadora do prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza 2017, com todos os méritos.