domingo, 28 de julho de 2024

3 MOSTRAS DE CINEMA

Antonio Carlos Egypto

 

Em São Paulo tem tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo que se torna difícil escolher o que fazer.  E não é preciso muito dinheiro para isso, não.  Vou falar de três mostras importantes de cinema que ocorrem simultaneamente, com ingressos a preços ultra promocionais ou gratuitos.

 


Pela primeira vez, o cine Reag Belas Artes vai promover uma mini-mostra internacional de filmes de todas as partes do mundo.  Estão previstos 20 filmes de 20 diferentes países para o Festival Filmes Incríveis (FFI), que ocorre naquele cinema de 1º a 14 de agosto.  Já estão confirmados o Irã, Camboja, Geórgia, Costa Rica, Índia, Nepal, Arábia Saudita, Tunísia, Cuba, Macedônia do Norte, Romênia, Coreia do Sul, Polônia, Japão, França, Bélgica, Canadá, Estados Unidos e Brasil.  São filmes inéditos, escolhidos por características de produção que escapam ao padrão comercial e não necessariamente têm obtido grandes prêmios em festivais internacionais ou pertençam a diretores já consagrados.  Fazem parte daquele espírito cinéfilo de encontrar pepitas de ouro cinematográficas.  Já vi alguma coisa em cabines de imprensa.  Por exemplo, o filme indiano A NUVEM E O HOMEM, de 2021, que estabelece o vínculo surrealista entre os substantivos do título, valendo-se de uma inesperada abordagem realista, é, no mínimo, curioso.  CAFÉ TEERÃ, do Irã, 2023, mostra a vida e as desventuras pelas quais passa um cineasta impedido de filmar e que espera por uma sentença para passar anos na cadeia.  Enquanto isso, cuida de um café na cidade, homenageando cineastas, como Kieslowski, Woody Allen e Kiarostami, que dão nome e imagem às mesas do estabelecimento.  Em tempos de inteligência artificial e fake News, nada mais surpreende, nem mesmo um filme encontrado, supostamente de 1941, que conta uma história da guerra em Londres, por meio da descoberta, por duas irmãs, de equipamentos de comunicação que são capazes de captar emissões no futuro.  Isso é LOLA, do Reino Unido, 2022, em que se vê, por exemplo, Hitler desfilando em Londres.  Nem sei o que dizer.  Melhor recomendar o filme de Karim Aïnouz, MOTEL DESTINO, que concorreu em Cannes e que ainda não vi.  E o filme do grande diretor Rithy Panh, do Camboja, que é tiro certo na qualidade: o documentário ENCONTRO COM O DITADOR, 2024.  Sessões a R$10,00 e R$5,00, a meia.  Para quem dispõe de tempo, dá para ver dois ou três filmes no mesmo dia.

 


No Cinesesc, ocorre, de 31 de julho a 14 de agosto, a 2ª. edição da Mostra Amor ao Cinema, que traz três filmes inéditos importantes: o indiano A ÚLTIMA SESSÃO, de Pan Nalin, de 2022, COUPEZ! (Corta!) de Michel Hazanavicius, 2023, e principalmente FECHAR OS OLHOS, do diretor espanhol Victor Érice, um dos melhores da 47ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.  O Festival, que focaliza o cinema como tema e fonte de amor, tem vários clássicos restaurados, cursos e debates abordando o cinema atual e, ainda, uma programação na plataforma Sesc Digital, streaming gratuito do Sescsp.  Os ingressos no Cinesesc custam R$10,00 e os cursos são gratuitos.  Mais informações e programação completa em sescsp.org.br/amoraocinema

 


Como se não bastasse, a 13ª. Mostra Ecofalante de Cinema, que discute a emergência climática, traz 122 filmes de 24 países sobre as questões ambientais e ocorre de 1º. a 14 de agosto, em diversos cinemas de São Paulo, em sessões totalmente gratuitas.  Os cinemas são o Reserva Cultural, o Bijou (Satyros Bijou), o Centro Cultural São Paulo e o circuito SpCine, em vários CEUs, pela cidade.  As questões urgentes do desarranjo climático que estamos vivendo estão em destaque nesse ciclo de filmes.  Veja a programação em www.ecofalante.org.br .

Que tal experimentar o dom da ubiquidade para ver tudo isso nesse período de 15 dias de agosto de 2024?

 

terça-feira, 16 de julho de 2024

TRANSEXUAIS NO CINEMA

Antonio Carlos Egypto

 

A questão transexual adquiriu importância e relevância maior nos últimos tempos, com a derrocada de tabus e o reconhecimento do valor da diversidade, pela maioria das pessoas.  O cinema tem refletido muito isso, com filmes que destacam personagens trans na ficção e dando voz e vez às pessoas chamadas não-binárias no registro documental.  Três filmes, que estão em cartaz nos cinemas, têm a questão transexual no centro de suas narrativas. 

 


ORLANDO, MINHA BIOGRAFIA POLÍTICA (Orlando ma biographie politique), documentário francês, de 2023, dirigido pelo filósofo, ativista e escritor trans, Paul B. Preciado, que agora é também cineasta, homenageia o personagem Orlando, de Virginia Woolf, de 1928.  Esse romance teve o primeiro personagem mudando de sexo no meio da história.  Preciado apresenta no filme 26 pessoas trans ou não-binárias, de 8 a 70 anos de idade, que se apresentam como representando o papel de Orlando.  Na verdade, estão falando de si próprias, se dando a conhecer, atuando no cotidiano de suas vidas e interagindo com suas vivências, o que não deixa de ser representação.  O filme é um documentário, poético e visual, muito interessante de se ver e que consegue até mesmo esclarecer didaticamente aqueles que ainda não se situam direito nesses novos conceitos.  E o faz sem restringir. Ao contrário, amplia as perspectivas de compreensão social e política desse universo, digamos, queer.  Seria interessante que justamente as pessoas com mais dúvidas ou resistências fossem ver o filme, para entender melhor o que se passa nessa realidade ainda desafiadora para nós, para eles, para todos.  98 min.

 


CAMINHOS CRUZADOS (Crossing) é um filme da Georgia e Turquia, de 2023, dirigido pelo georgiano radicado na Suécia, Levan Akin (de “E Então Nós Dançamos”, 2019).  No elenco: Mzia Anabuli, Lucas Kankava, Deniz Dumanli.  105 min.  A narrativa do filme foca na figura da senhora Lia, que está em busca de sua sobrinha Tekla, que ela não vê há muito, mas que prometeu à irmã falecida, mãe de Tekla, resgatá-la e trazê-la de volta.  Para isso, tem de, partindo da Georgia, ir à vizinha Istambul, onde presumivelmente a sobrinha estaria.  Sem falar turco ou inglês, aceita a companhia de um jovem para ajudá-la.  Nessa viagem, vão ficando claras as coisas.  Tekla está ligada ao mundo transexual da cidade, o que tenderia a aproximá-la da prostituição e das drogas.  Mas nesse meio há também sucessos, como o da trans Evram, advogada e defensora dos direitos humanos, que vai colaborar nessa busca.  Enfim, trata-se de penetrar no submundo de Istambul, para conhecer a realidade dos transexuais, suas rejeições, sofrimentos, abandonos, transgressões e fantasias.  Ao mesmo tempo, Lia estabelece uma relação difícil com seu acompanhante, que poderia ser seu filho e que está bem necessitado de apoio e de afeto.  A jornada de Lia levará a uma compreensão mais profunda desse universo tão palpável e tão desconhecido da transição de gênero, ou da eliminação da necessidade dessa escolha.  Uma mensagem escrita na abertura do filme informa que em georgiano e em turco não existe uma palavra diferenciadora de gênero para pessoas.  Destaque para a trilha sonora com canções locais muito bonitas.

 


A FILHA DO PESCADOR (La estrategia del Mero) é um filme da Colômbia, de 2023, dirigido por Edgar De Luque Jácome, filmado na República Dominicana, que conta, além desses dois países, com Porto Rico e o Brasil, na produção e distribuição.  É o primeiro longa do diretor colombiano.  No elenco: Roamir Pineda, Nathalia Rincón, Henry Barrios, Jesús Romero, Modesto Lácen.  78 min.  Numa ilha isolada do mar do Caribe, numa aldeia, vive um pescador tarimbado na pesca submarina em mergulho livre.  Convive com as alterações do mar e com ele tem uma relação de amor e domínio em sua solidão.  Até que aparece na ilha seu filho Samuelito, uma mulher trans, renomeada de Priscila, que está fugindo de uma confusão em que se meteu e que resultou numa morte.  Ela e o pai pescador são água e vinho, ele a hostiliza e rejeita, do mesmo modo que ela não o aceita por conta do passado, das relações rompidas dele com a mãe.  Será preciso que o pescador adoeça e se torne vulnerável para que as relações possam tomar outras proporções e caminhos.  Assim como o mar, os relacionamentos e emoções são sujeitos a ondas, revoluções, tempestades, furacões.  O filme é um tanto esquemático, nessa evolução narrativa, falta um tempo de elaboração para que os fatos se processassem como acontece.  Algumas mudanças de atitude são bruscas e inconvincentes.  No entanto, o conjunto se sustenta e as filmagens no mar dão um toque de beleza à realidade dura da transexualidade num ambiente conservador, que o filme mostra com clareza.




sábado, 13 de julho de 2024

O SEQUESTRO DO PAPA

           

 Antonio Carlos Egypto

 


O SEQUESTRO DO PAPA (Rapito). Itália, 2023.  Direção: Marco Bellocchio.

Elenco: Paolo Pierobon, Fausto Russo Alesi, Barbara Ronchi, Enea Sala, Leonardo Maltese.  135 min.

 

Vamos começar pelo título em português: “O Sequestro do Papa”.  Ele sugere o quê?  Que o Papa, um Papa histórico, tenha sido sequestrado. Mas, e se o fato histórico, que deu origem ao filme, é sobre um Papa que atuou como sequestrador ou mandante de um sequestro?

 

O título original “Rapito” significa raptado ou sequestrado.  E a que se refere?  Ao menino judeu Edgardo Mortara, que vivia com sua família em Bolonha e que, em 1858, aos seis anos de idade, foi retirado de seus pais e passou a viver no Vaticano, sob a responsabilidade da Igreja Católica, em especial, do Papa Pio IX (1792-1878), que o tratava como se fosse seu pai.

 


O motivo para o sequestro da criança seria o fato de que uma empregada doméstica da família Mortara realizou o batismo do menino em uma situação de doença e risco real de morte, quando bebê, visando livrá-lo do limbo, sendo ela católica.  À revelia da família, naturalmente. A lei proibia aos não-cristãos educar uma criança cristã, definida assim pela condição de batizado. Ainda que quem a pretendesse educar fossem seus pais biológicos.

 

Uma situação vista hoje como esdrúxula e de um autoritarismo absurdo.  Até então o poder do Papa extrapolava o modelo religioso, realizando-se também como chefe de Estado, uma espécie de Rei com poderes absolutos.

Na época vigorava um reinado Papal que se opunha à unificação da Itália e a Roma como capital do novo país, o que ocorreu em 1870.  O Papa vivia em conflito com os maçons, que inclusive tentaram jogar o caixão com os restos mortais do pontífice no Rio Tigre.

 

A situação que gerou o Vaticano como Estado independente dentro da Itália só seria resolvida pelo modelo atual por Benito Mussolini, em meados do século XX.

 


Essa história real resgatada pelo filme do grande diretor Marco Bellocchio é forte, é um libelo contra o autoritarismo, numa sucessão de sequências de impacto e beleza que nos levam a refletir sobre um bom número de questões.

 

Ao tomar como referência a vida do menino sequestrado e de tudo o que se passa com ele ao longo do tempo, não deixa dúvidas sobre o caráter opressor, não importa de quem parta.  Também nos revela o papel da manipulação de corações e mentes, ainda que envelopados pela aparente bondade e doçura.

 

Bellocchio se vale de um elenco de grande talento, que dá vida a personagens multifacetados, que não estão enquadrados na galeria dos bons ou dos maus.  São figuras mais complexas, reais.  A partir do próprio garoto estreante, Enea Sala, que faz muito bem o papel de Edgardo criança, o jovem Leonardo Maltese, como Edgardo adulto, o pai Momolo, interpretado por Fausto Russo Alesi, a mãe, Marianna, por Barbara Ronchi, e o Papa Pio IX, vivido por Paolo Pierobon. A reconstituição de época é muito boa e a beleza da cidade de Bolonha com a Basílica de São Petrônio e suas construções medievais se evidencia no filme.



terça-feira, 2 de julho de 2024

TESTAMENTO

                       

 Antonio Carlos Egypto





TESTAMENTO (Testament).  Canadá, 2023.  Direção e roteiro: Denys Arcand.  Elenco: Remy Girard, Sophie Lorain, Guylaine Tremblay, Caroline Néron, Robert Lepage.  115 min.

 

Denys Arcand, um dos mais importantes cineastas do Canadá, da região de Québec, foi sempre um diretor antenado com as questões da contemporaneidade.  Como atestam filmes como “Declínio do Império Americano”, de 1986, “Jesus de Montreal”, de 1989, e “Invasões Bárbaras”, de 2003.  Em “Testamento”, ele, aos 83 anos de idade, se debruça sobre o chamado campo do politicamente correto, da postura anticolonialista e das questões identitárias, totalmente relevantes e prevalentes no momento atual.

 

Não deixa de se referir aos extremos climáticos que tanto preocupam, mas o faz só ao final, na forma de blague.  Aliás, o filme todo se vale da piada, do comentário irônico e até do deboche.  Aí é que mora o perigo! 

 

Claro que os exageros são demonstrativos de que há algo a condenar por aí.  Exemplo no filme: um homem que faz muitos exercícios, alcança muitos quilômetros em maratonas na bicicleta, tem uma vida ultrassaudável, alimentação balanceada e tudo o mais, em torno dos 60 anos de idade.  Sua mulher critica os que não fazem como ele e acaba por se desesperar ao constatar que ele morre de morte súbita, ao chegar de uma dessas maratonas, em que exigia de si mesmo muito esforço.  OK.  Mas a prática de exercícios equilibrados e controlados, em qualquer idade, feita moderadamente é desejável.  Ou não?

 

Fazer piada depreciativa de quem já está vulnerável ou desprestigiado na escala social, objeto de preconceitos, discriminações e agressividade, se justifica?  Basta dizer que se as pessoas riem é porque é engraçado e tudo bem?  Atacar quem já está espezinhado pela palavra, pelo humor, pelo deboche, é engraçado por quê?  Revela o que está escondido, reprimido, escamoteado.  Aquilo que rejeitamos, inconscientemente, que não admitimos, não queremos ver.  Nesse sentido, dá até para invocar Freud em defesa do tal do politicamente correto.  Claro, regras e proibições são coisas chatas, incômodas, desagradáveis.  Mas, gostemos ou não, têm uma razão de ser.  Pelo menos até que possamos evoluir na compreensão e aceitação dos outros.  “Testamento” não tem essa preocupação crítica, que seria necessária, partindo de um cineasta com reconhecida lucidez política.


 



A questão mais explorada no filme é o ativismo político anticolonialista, que implica com um mural artístico de grande beleza que, supostamente, insulta as primeiras nações indígenas, os povos originários.  Diante do colonizador vestido com pompa e postura altiva estão indígenas seminus, com penas, etc..  Um pequeno grupo de ativistas, que nem são indígenas, conseguem gerar uma difusão pela mídia, que põe em risco a obra de arte.  E o que se vê é espantoso.  E ridículo.  Ninguém pode concordar.  Mas a postura colonialista merece ou não ser discutida?  Se não é essa a forma, qual seria?  E por aí vai.  

 

Estou chamando a atenção para um filme bem realizado, com um elenco excelente, a começar pelo protagonista, o ator Remy Girard, e também Sophie Lorain, intérpretes habituais do cinema de Arcand, e que funciona bem como comédia, de que o terreno é escorregadio.  É preciso cuidado para lidar com esses temas, porque eles têm um lado caricato, sim, mas são também relevantes e importantes para a sociedade contemporânea do século XXI.  Eu não gostei muito da abordagem do filme, ele ficou parcial e, em nome da ironia, simplificou as coisas.  É um pouco assim, mas não é bem assim.