terça-feira, 29 de abril de 2014

GETÚLIO

Antonio Carlos Egypto



GETÚLIO. Brasil,  2013.  Direção: João Jardim.  Com Tony Ramos, Drica Moraes, Alexandre Borges, Tiago Justino, Adriano Garib, Michel Berchovitch, Marcelo Médici, Clarice Abujamra.  100 min.



Getúlio Vargas foi a figura política mais relevante do Brasil, no século XX, e uma das maiores de toda a nossa história.  Governou o país por quase vinte anos, como revolucionário, presidente constitucional, ditador e presidente eleito por voto direto.

Ideologicamente contraditório, participou de avanços revolucionários modernizadores, mas instituiu um regime fascista no Brasil, com o Estado Novo, em 1937, e chefiou uma ditadura terrível.  Pragmaticamente, trocou o nazifascismo pelo apoio aos aliados norte-americanos, tendo Volta Redonda como moeda de troca, mas seu governo não resistiu ao fim da II Guerra Mundial. Em 1945, após 15 anos no poder, Getúlio foi deposto.



Voltaria com todas as glórias, ao vencer as eleições de 1950, nos braços do povo.  Com direito à famosa marchinha de carnaval, que cantava: “Bota o retrato do velho outra vez. Bota no mesmo lugar...”.  O trabalhismo, assim chamado porque organizou e legalizou os direitos trabalhistas hoje existentes, foi um dos seus maiores e mais permanentes legados.

Como todos sabemos, seu fim foi trágico.  Ao mesmo tempo, foi um gesto político cujas consequências repercutem até os dias de hoje, decorridos 60 anos do fatídico 24 de agosto de 1954.  Ou seja, foi um ato corajoso que fez mudar radicalmente o rumo dos acontecimentos. Um gesto de grande perspicácia política, também. 



Os 19 dias que antecederam a morte de Vargas estão relatados no filme de João Jardim, “Getúlio”, estrelado por Tony Ramos, no papel título.  Um filme político, evidentemente.  Mas com uma pegada forte de suspense.  As tensões desse período da vida nacional, o golpe que se preparava para apear o presidente do poder, a partir do famoso atentado da rua Toneleros ao inimigo político Carlos Lacerda, então jornalista, dono de jornal, e que resultou na morte do Major Vaz, de fato, produziram um clima pesadíssimo.  De que se vale o filme, para manter o interesse no assunto, apesar de a história ser muito conhecida.  Ou será que os mais jovens a desconhecem?

Seja como for, é um filme que merece ser visto.  Pelo resgate histórico que proporciona, pela produção muito bem cuidada, a reconstituição de época e o elenco de grandes atores e atrizes que aparecem até nos pequenos papéis da trama.  E, ainda, pelas reflexões que pode nos induzir a fazer sobre a nossa história recente e a atualidade.

O golpe que Getúlio Vargas frustrou em 1954 procurou se rearticular logo em seguida, com a tentativa de “melar” a eleição de Juscelino Kubistchek. Depois, ao buscar impedir a posse do vice, na renúncia de Jânio Quadros. E, por fim, em 1964, com a destituição do presidente João Goulart para a instalação da ditadura militar que nos amordaçou por 21 anos, cujas consequências ainda estão aí, à vista.  Avançamos muito na democracia, mas precisamos resgatar a história, para que a opressão não encontre mais espaço na vida institucional do país.



Um filme bem feito como “Getúlio” dá sua contribuição a esse objetivo e nos revela um cineasta inspirado.  Sua experiência anterior com documentários deve ter contribuído fortemente nesta ficção tão colada à realidade dos fatos.  João Jardim já havia realizado “Pro Dia Nascer Feliz”, em 2006, “Amor?”, em 2010.  Bons filmes, mas meu favorito é “Janela da Alma”, de 2002, sensível documentário que já mostrava o que se poderia esperar desse realizador.

O desafio ao ator a quem caberia encarnar a emblemática figura de Getúlio Vargas seria enorme.  Tony Ramos, completando 50 anos de carreira, sem ser uma figura física semelhante ao retratado, nem tendo a baixa estatura que ele tinha, deu conta do recado com grande competência.  Capitaneou um elenco talentoso, com brilho.  Uma surpreendente e ótima escolha.




segunda-feira, 28 de abril de 2014

Eu, Mamãe e os Meninos

Tatiana Babadobulos


Eu, Mamãe e os Meninos (Les Garçons et Guillaume, à Table!). França e Bélgica, 2013. Direção e roteiro: Guillaume Gallienne. Com: Guillaume Gallienne, André Marcon, Françoise Fabian. 85 minutos


Vencedor de cinco prêmios César 2014, incluindo melhor filme e melhor ator, para Guillaume Gallienne ("Maria Antonieta", o recente "Yves Saint Laurent"), também diretor e autor do roteiro, "Eu, Mamãe e os Meninos" ("Les Garçons et Guillaume, à Table!") lembra a comédia brasileira de grande sucesso "Minha Mãe É Uma Peça", na qual Paulo Gustavo interpreta a sua própria mãe. Os dois, aliás, viraram filmes depois de terem feito sucesso no teatro. Na França, o filme vendeu três milhões de ingressos.
No filme francês, Gallienne interpreta dois papéis: o da mãe e o do filho, ou seja, ele mesmo. E, lá pelas tantas, ambas produções homenageiam as respectivas mães.

As semelhanças entre os dois filmes terminam aqui, já que Gustavo faz comédia com as imitações da mãe e o francês faz um dramalhão intercalando cenas de teatro e do cinema. Vale lembrar que Gallienne é ator da Comédie Française, a mais importante instituição de artes cênicas naquele país.


Na trama, o rapaz, desde pequeno, acredita que não é um menino tal como os seus irmãos. Isso porque a mãe faz questão de tratá-lo diferente. Mais próxima de Guillaume, a mãe confidencia a ele suas preocupações, ele copia seus trejeitos, mas a mãe faz, conscientemente, diferença no tratamento. Talvez tenha a ver com a vontade de ela ter tido uma filha e só gerou meninos, mas isso é problema para ser discutido no divã, com psicólogos, e não vou entrar na seara alheia.

A mãe tem o hábito de separar o garoto dos demais filhos. Quando chama todo mundo para a refeição, chama à mesa os meninos e Guillaume, como se esse também não pudesse entrar no plural de "meninos". É daí, aliás, que sai o nome original do filme: Les garçons et Guillaume, à table! (Em tradução e adaptação livre: "meninos e Guillaume, a comida está na mesa").

Fazendo assim, a mãe faz o rapaz acreditar que ele, na verdade, tem porte de moça, se comporta como tal e, portanto, deveria amar homens. Mas, durante a vida escolar, ele vai para internatos em outros países, obrigado pelo pai.

O ator Guillaume Gallienne mostra versatilidade ao atuar e interpretar o homem e a mulher, se sente à vontade no papel, e o espectador, como consequência, se convence tanto do papel da mãe como do próprio garoto.


"Eu, Mamãe e os Meninos" fala não apenas de preconceito, mas também trata da responsabilidade que os pais têm na criação dos filhos. É preciso respeitar a natureza de cada um e não impor qualquer opção, seja ela homo ou heterossexual.

O longa-metragem, que passou pelo Festival Varilux de Cinema Francês que aconteceu este mês em 45 cidades brasileiras e está em pré-estreia nos cinemas de São Paulo. A estreia nas demais cidades do país e também na capital está apontada para quinta-feira, 1º de maio.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

TSAI MING LIANG E CÃES ERRANTES


Antonio Carlos Egypto

Tsai Ming Liang


CÃES ERRANTES (Jiao You).  Taiwan, 2013.  Direção: Tsai Ming Liang.  Com Lee Kang Sheng, Yang Kuei Mei, Lu Yi Ching.  138 min.


O trabalho do cineasta Tsai Ming Liang reflete com originalidade o mal estar da vida contemporânea nas grandes cidades.  Ele nasceu na Malásia, mas fez toda a sua carreira como realizador na China, em Taiwan.  Faz um cinema que tira o espectador do confortável, do conhecido.  Para começar, não conta histórias, mostra personagens que vagueiam pelos espaços urbanos em busca de algo que eles mesmos parecem desconhecer.

Os seres humanos estão perdidos e incomunicáveis, vivendo uma angústia existencial digna dos grandes filmes de Michelangelo Antonioni (1912-2007), inspirador confesso do diretor malaio.  Sentem-se inadaptados em seu ambiente de vida, ignorados, invisíveis, excluídos.  Não costuma haver encontros, embora possa surgir alguma afetividade e a perspectiva de busca do desejo sexual e do amor, que, no entanto, parecem ora distantes, ora insatisfatórios.




Há incomunicabilidade, o que se reflete na quase ausência de diálogos, como acontece na maior parte do tempo nos filmes de Tsai Ming Liang.  Também não há emocionalidade, é tudo austero, seco.  Numa palavra, minimalista.  Mas essa economia de meios de expressão pode, subitamente, dar lugar a uma performance kitsch, um grito lancinante de dor, um excesso visual.  Com isso se produz estranhamento, o que só reforça o mal estar que está sendo mostrado.

Além disso, Tsai Ming Liang tem uma constante obsessão com a água, que inunda casas, locais de repouso ou trabalho das pessoas, pode estar contaminada, chover torrencialmente ou, por outra, estar em falta.  Como ele mesmo diz : “ ... quanto mais água você vê em meus filmes, mais os personagens precisam preencher o vazio em suas vidas, para hidratá-las novamente ... A água representa uma força que invade, que destrói a família” (catálogo da retrospectiva do cineasta, em mostra do Centro Cultural do Banco do Brasil, 2010).



Longuíssimos planos, em que não há ação evidente, são outra característica do trabalho do diretor.  Em “Cães Errantes”, ele torna essa experiência contemplativa habitual em experimento radical.  Há uma cena estática, que se estende por intermináveis treze minutos ao final do filme.  Como a nos dizer que o cinema acabou.  Ou terá acabado para ele.

Não é exatamente uma ideia nova no seu trabalho.  Em um de seus filmes, “Adeus, Dragon Inn”, de 2003, o cenário básico é uma grande sala de cinema decadente e abandonada, por onde circulam personagens que não se relacionam com o filme que está sendo exibido, mas com a sala de cinema que está morrendo por falta de público.




“Cães Errantes”, como o conjunto de sua obra, aborda a temática das relações familiares inexistentes ou desgastadas, a falta de perspectivas e também a miséria na grande cidade, que desconhece os dramas humanos que nela estão inseridos.  Há os cães do título, naturalmente.  Rios, matas e ruas chuvosas compõem o ambiente.  Na cidade, circula, por exemplo, um outdoor humano que vende apartamentos de luxo.  Uma cena que os habitantes de São Paulo ou do Rio conhecem muito bem.  Não será preciso contextualizar Taipei como local.

O cinema de Tsai Ming Liang é assim: universal no registro de uma situação que, aparentemente, seria específica, não só do ambiente cultural a que ele pertence, mas até dos elementos da sua experiência pessoal.  Comprovação do talento e perspicácia do realizador.



Para quem não conhece o cineasta, “Cães Errantes” não seria uma boa introdução ao seu cinema, já que ele radicaliza alguns elementos, o que tende a afastar o espectador desavisado.  No entanto, é difícil indicar outro caminho dessa iniciação por meio do cinema.  Seus filmes não costumam ser exibidos regularmente, pelo caráter nada comercial de um trabalho que não faz concessões.  Não há outra opção em DVD que não seja o filme “O Sabor da Melancia”, de 2005, em que ele explora o universo da pornografia em meio a uma crise de água.  O resto é garimpar pela Internet à procura de filmes como “O Rio”, de 1997, (que chegou a ser lançado em VHS), “Vive L’Amour”, de 1994, “O Buraco”, de 1998, ou o já citado “Adeus, Dragon Inn”.  São exemplos de filmes em que se pode adentrar no universo Tsai Ming Liang com um pouco menos de esforço e usufruir da qualidade de seu cinema criativo e experimental.  Ou preparar-se para a jornada cinematográfica de “Cães Errantes”, que, apesar de radical, vale a pena.


sexta-feira, 18 de abril de 2014

O GRANDE MESTRE - de Wong Kar Wai

                         
Antonio Carlos Egypto



O GRANDE MESTRE (Yi Dai Zong Shi)China, 2013.  Direção: Wong Kar Wai.  Com Tony Leung, Zhang Ziyi, Chang Chen.  120 min.


Wong Kar Wai, cineasta chinês nascido em Xangai, mas vivendo e produzindo em Hong Kong, se destacou principalmente por filmes que abordam com sutileza e complexidade o terreno do relacionamento amoroso.  Belíssimos enquadramentos, imagens requintadas, uso sofisticado da luz, da cor e de figurinos, costumam compor criações como “Amores Expressos”, de 1994, “Felizes Juntos”, de 1997, “Amor à Flor da Pele”, de 2000, ou “2046”, de 2004.  As relações humanas no romance adulto e temas como desejo e sexo, fidelidade, traição, ciúmes, fazem parte do seu cardápio fílmico habitual.

Ele também já havia feito pelo menos uma incursão no terreno dos épicos de artes marciais, em “Cinzas do Passado”, de 2008.  Espadachins, assassinos de aluguel e luta pelo poder, se associaram, assim, à relação amorosa, gerando um novo tipo de espetáculo, do gênero cultivado também por outros diretores chineses, como o ótimo Zhang Yimou, o mestre das cores.



O novo filme de Wong Kar Wai, o décimo longa de sua carreira, “O Grande Mestre”, vai na linha do super espetáculo, um novo drama épico de artes marciais, passado na tumultuada China dos anos 1930.  Inspira-se na vida do lendário Yip Man (Tony Leung), considerado mentor de Bruce Lee.  E mostra o kung-fu como uma peça de importância fundamental na história da China, enquanto arte e instrumento de poder.  O que dá margem a lutas muito bem encenadas, de grande beleza plástica, em meio à chuva, à neve e à arquitetura chinesa tradicional.  É tudo muito bonito, espetacular.

Nem por isso, o diretor abandonou suas tramas complexas.  Os elementos da história envolvem guerras, em especial, o domínio japonês sobre a China, as questões familiares, o desejo, a memória e, como não poderia deixar de ser, o amor.  Wong Kar Wai não se perde na superprodução.  Procura dar substância à narrativa, investindo numa dimensão histórica e na de relações pessoais intensamente vividas.  Não há lutas em excesso, as coisas estão devidamente equilibradas.



Os espectadores acostumados à sua abordagem mais intimista podem estranhar o tema principal de “O Grande Mestre” e sua concepção de espetáculo.  Há quem não se interesse por kung-fu ou por Bruce Lee, por exemplo.  Ou não tenha apreço especial por artes marciais.  Quem gosta de cinema, no entanto, não vai se decepcionar.  É um espetáculo que enche os olhos, se destaca pelo som, pela direção de arte, pelas interpretações e tem muitos elementos para prender a atenção, além do kung-fu.

Os mesmos enquadramentos de beleza plástica, as imagens requintadas, o uso sofisticado da luz, das cores e dos figurinos, além da complexidade narrativa, estão lá, como sempre.  É mais um grande filme de Wong Kar Wai.  Num gênero capaz de amealhar, quem sabe, um público maior para as salas de cinema do que aquele que tem acompanhado e curtido a obra do diretor até aqui.  “O Grande Mestre” estreou na 37ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e agora chega ao circuito comercial dos cinemas.




segunda-feira, 14 de abril de 2014

O PASSADO

Antonio Carlos Egypto




O PASSADO (Le Passé).  França, 2013.  Direção: Asghar Farhadi.  Com Bérénice Bejo, Ali Mosaffa, Tahar Rahim, Pauline Burlet.  131 min.


“A Separação”, grande filme de Asghar Farhadi, venceu o Oscar de filme estrangeiro, representando o Irã, em 2012, além de um monte de prêmios internacionais.  Foi apontado como um dos melhores filmes daquele ano, em praticamente todas as listas de destaques da crítica no Brasil, e escolhido como o melhor filme estrangeiro do ano, pela Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema).




O cinema iraniano já havia brilhado intensamente com cineastas como Abbas Kiarostami, Moshen Makmalbaf e Jafar Panahi, os dois primeiros vivendo agora fora do país e o terceiro, em prisão domiciliar, impedido de trabalhar e, mesmo assim, produzindo clandestinamente.  Asghar Farhadi se mostra à altura de seus colegas desde “Procurando Elly”, de 2009, com seu realismo que surpreende a cada passo e introduz dilema sobre dilema, fazendo pensar.  Mas também ele acabou na França.  Seu novo filme, “O Passado”, já não é iraniano, mas francês.  Integra até o Festival Varilux do Cinema Francês, em cartaz em várias cidades brasileiras.  No entanto, o Irã deseja que o filme represente o país novamente nas indicações ao próximo Oscar.  É verdade que há um protagonista iraniano que constituiu família com uma francesa e vem de Teerã para assinar o divórcio em Paris. O personagem é simpático e equilibrado. Quem vive o papel é um ator iraniano.  Mas é só.

O fato de o filme se passar na França e com personagens e atores franceses parece ter feito muita diferença para o cinema de Asghar Farhadi.  O seu estilo característico, fortemente realista e cheio de reviravoltas e segredos que surpreendem a cada passo, está lá, intacto.  Mas o contexto cultural do país persa não mais.  Isso esvazia um pouco as questões, remetendo-as mais à ambientação psicológica e ao relacionamento interpessoal e familiar, do que ao seu substrato sociólogico. Na verdade, o forte vínculo do psíquico com o sociocultural dos outros filmes é que lhe dava uma dimensão maior e despertava grande interesse pelo desenvolvimento da trama e das ações que engendrava.  Pelo menos, do ponto de vista de quem via os filmes de fora do Irã.




“O Passado” é, sem dúvida, um bom filme, bem construído e interpretado, que trata de compreender como as pessoas podem se enroscar, se enrolar, se perder em relacionamentos marcados por segredos do passado, coisas mal resolvidas, medos, covardias, e escolhas inconscientes, das quais não suspeitam. E que podem comprometer a vida, a felicidade, o fluir dos relacionamentos e as novas construções que se buscam.  Como se vê, não é pouco.  Mas não alcança o padrão da arquitetura fílmica de “A Separação”.

A história envolve muitas conversas face a face, entre dois diferentes personagens, boa parte do tempo.  Isso acaba sendo um problema, às vezes.  Algumas soluções para que os personagens se encontrem a sós soam forçadas. O tempo escapa ao realismo das ações, para que algumas conversas possam acontecer, enquanto alguém espera, sem poder saber o que ocorre.  O filme tem, desta vez, alguns problemas.  Ficou abaixo dos filmes iranianos anteriores.  Mas o cineasta continua merecendo todo o crédito.




Abbas Kiarostami continuou renovando fortemente o cinema, como fazia no Irã, ao filmar na França obras como “Cópia Fiel”, de 2010, e “Um Alguém Apaixonado”, de 2012.  Se Farhadi permanecer na França, poderá reencontrar o seu melhor estilo, talvez refletindo mais fortemente sobre a sociedade francesa contemporânea.  Parece que ele gostaria de voltar a viver no Irã, mas será preciso que encontre condições de trabalho para que isso aconteça.  É evidente que, quando alguém fala do seu quintal, tem maior conhecimento de causa.


sexta-feira, 11 de abril de 2014

YVES SAINT LAURENT


Antonio Carlos Egypto





YVES SAINT LAURENT (Yves Saint Laurent).  França, 2013.  Direção: Jalil Lespert.  Com Pierre Niney, Guillaume Gallienne, Charlote Le Bon, Laura Smet.  116 min.



Um dos primeiros cuidados a tomar quando se faz uma biografia, seja na literatura, seja no teatro ou no cinema, é o respeito à obra do biografado.  Afinal, se a pessoa foi lembrada para ser retratada, não há de ser pelos porres que tomou, pelas brigas que aprontou, pelas mulheres que teve ou traiu, por ser uma personalidade excêntrica ou algo assim.  Tudo isso pode ser importante e entrar na história.  Mas é a obra que a pessoa realizou o que de fato conta.  E que fez dela alguém importante para ser lembrado.  Por isso, creio que o trabalho que notabilizou a pessoa deve ser bem mostrado e colocado em primeiro plano e não ser eclipsado pelas fofocas, tramas amorosas ou tragédias de sua vida.

Dito isso, posso agora afirmar que considero “Yves Saint Laurent” uma boa cinebiografia de um dos maiores talentos da moda, no século XX.  Para quem não conhece a sua história, o filme explica.  Dá para ver a sua ascensão profissional ao longo do tempo e as suas criações em várias etapas.  Muitos vestidos são mostrados, nos vários estilos que ele foi criando, ao encenar desfiles famosos, ensaios ou eles sendo concebidos e desenhados por Yves.  É possível, até para quem não tem muito interesse ou conhecimento no assunto, avaliar a qualidade do trabalho deste criador de moda, que produziu uma grife das mais famosas do mundo.  Da alta costura ao prêt-à-porter, o seu trabalho está na tela, o que justifica plenamente a existência do filme.




Além disso, a personalidade tímida, frágil e conturbada do criador, sua homossexualidade e o papel que seu parceiro, Pierre Bergé, teve em toda sua vida e carreira,  permanecendo até nos períodos em que a relação pessoal degringolou, está bem delineada na narrativa.

Também é curioso como as diversas fases da vida de Yves Saint Laurent são mostradas relacionando-se com fatos da época, como a guerra da Argélia.  Ele era francês porque nascido na Argélia enquanto colônia francesa.  Mas isso estava mudando de forma dramática.  Sua família continuava lá, enquanto ele buscava êxito em Paris. 




Viveu em Marrakech, sua inspiração para os vestidos reflete bem a arte marroquina, suas cores e mosaicos e até o hábito islâmico de cobrir os cabelos nas apresentações, em um de seus períodos criativos.

A aparência de seminarista que ele apresentava no começo do filme sofrerá mudanças radicais de imagem nos anos 1960 da era hippie.  Barba, cabelos longos, muita loucura e drogas refletem esse período.  Tudo se rearrumará depois, quase voltando à antiga forma, assim como o mundo, que encontraria um novo equilíbrio.  Como qualquer vida intensa reflete o mundo em que vive, Yves Saint Laurent é visto como fruto do seu tempo.  Mas com interesses específicos, com um talento particular e um jeito próprio de encarar a vida e os obstáculos que lhe aparecem.  O momento em que é chamado a servir o exército, em plena guerra, é especialmente revelador de uma grande crise e de como ele lidará com ela.  A dependência de Pierre Bergé no relacionamento e nos negócios, também.  Há espaço para a contestação, a rebeldia e o descontrole no seu modo de viver.




Moda remete a sofisticação e riqueza, hábitos e comportamentos elitizados, glamour.  Mas o filme não fica nisso, explora as misérias, contradições e conflitos desse universo fashion.  O que o torna interessante para o público em geral e não apenas para as mulheres.

É uma bem cuidada produção, com narrativa linear, que não exige muito do espectador, mas funciona como entretenimento e informação sobre o assunto tratado.  O filme integra o Festival Varilux do Cinema Francês, que está nos cinemas de várias cidades brasileiras.




terça-feira, 8 de abril de 2014

HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO


Antonio Carlos Egypto



HOJE EU QUERO VOLTAR SOZINHO.  Brasil, 2013.  Direção: Daniel Ribeiro.  Com Guilherme Lobo, Fábio Audi, Tess Amorim, Lúcia Romano, Eucin Souza, Selma Egrei.  96 min.


É inegável que a adolescência é um período de grandes e pequenas descobertas, tanto sobre o mundo quanto sobre nós mesmos. Frequentemente, estão presentes os conflitos que acompanham o processo de amadurecimento e a sofrida conquista da autonomia.  Varia muito, segundo as circunstâncias históricas, geográficas, culturais e de classe social.  Mas que é um período desafiador da vida, lá isso é.

O longa brasileiro “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” se debruça sobre as questões da adolescência, no universo da classe média, a partir da amizade muito próxima de Leonardo (Guilherme Lobo) e Giovana (Tess Amorim).  Ele, por ser cego de nascença, precisa dela para voltar para casa da escola.  Esse talvez tenha sido o ponto de partida para uma amizade que se solidificou com o tempo.



A chegada de um novo garoto na classe onde ambos estudam, no entanto, vai mexer em muitos sentidos com essa amizade.  O aluno novo é Gabriel (Fábio Audi), que vai compor um trio com Leonardo e Giovana, tornando-se grande amigo e objeto de desejo de ambos, além de ser paquerado por uma outra menina da escola.

O fio condutor da narrativa é Leonardo e as suas questões da adolescência, mescladas à sua deficiência visual.  Essa limitação dificulta muito o seu processo de rompimento com a dependência dos pais, principalmente da mãe, que é, compreensivelmente, preocupada com ele e superprotetora.  O pai tenta entender o anseio de liberdade e autonomia do filho, mas também avalia os riscos.  O filme mostra como essa dificuldade se amplia, no caso de Leonardo, ao mesmo tempo em que reconhece que a necessidade do personagem equivale à de qualquer outro jovem.



Se Giovana não tem problemas para lidar com a cegueira do amigo, os demais adolescentes têm.  Gabriel, por exemplo, propõe programas como ir ao cinema ou ver o eclipse da lua.  O seu despreparo, porém, abre novas portas para a vida de Leonardo. A imensa maioria dos colegas de escola não só não consegue ter sensibilidade para se colocar no lugar do outro, como procura brincar, zoar, com a deficiência de Leonardo, exercendo aquela crueldade característica de muitos jovens nessa fase da vida. 

Todas essas questões e outras tão típicas desse período são contempladas com sutileza, delicadeza e humor, ao longo da narrativa de “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”.  Como se não bastasse, o roteiro do próprio diretor, Daniel Ribeiro, coloca Leonardo na condição de lidar com um desejo homossexual, o que introduz uma nova e forte variável, que, no caso, só poderia complicar mais a história.



Como os três adolescentes – Leonardo, Giovana e Gabriel – vão lidar com tudo isso e com os colegas da escola?  Que papel exercerão os pais de Leonardo e os professores que estarão envolvidos nisso? 

Daniel Ribeiro consegue dar um fluxo tão positivo e envolvente a seu filme, extraindo o melhor de seus jovens e dedicados atores, que o resultado é emocionante.  A dimensão humana que brota daí é admirável e vai além da discussão do desejo homossexual ou da deficiência visual.  Eles aparecem como elementos de uma dimensão maior, que são o desenvolvimento humano, a capacidade de encarar e promover mudanças e o combate aos preconceitos.



“Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, entusiasmante trabalho desse jovem cineasta que é Daniel Ribeiro, já foi exibido, reconhecido e premiado no Festival de Berlim.  Sua origem vem do curta “Eu Não Quero Voltar Sozinho”, em que o diretor trabalhou com esses mesmos três personagens principais e seus respectivos atores, em 2010, filme que está disponível na Internet e já teve mais de 3 milhões de visualizações.




quinta-feira, 3 de abril de 2014

PARA VER CINEMA ANTES DA COPA


Antonio Carlos Egypto

Eventos culturais em São Paulo é o que nunca falta.  Em especial, os cinematográficos, que se sucedem nos mais diversos espaços – da Cinemateca Brasileira ao Centro Cultural Banco do Brasil ou ao Museu da Imagem e do Som, Centro Cultural São Paulo, nas unidades do SESC, além de cinemas que promovem mostras, como o Reserva Cultural e as salas do shopping Frei Caneca, entre outros.

Com a aproximação da Copa do Mundo de Futebol no Brasil, que deverá atrair todas as atenções, o calendário cultural fica comprimido e as coisas se encavalam.  É o caso de dois importantes festivais que já estão ocorrendo simultaneamente: o 19º. Festival Internacional de Documentários “É Tudo Verdade” e o 40º. Festival SESC Melhores Filmes.




No “É Tudo Verdade”, que acontece simultaneamente também no Rio de Janeiro, estão previstos 77 títulos, vindos de 26 países, sendo 19 deles fazendo sua première mundial, entre longas e curtas-metragens.  E duas retrospectivas importantes: a dos documentários do diretor japonês Shohei Imamura, muito conhecido pelo seu trabalho ficcional, e os da diretora brasileira Helena Solberg.  Tudo em sessões gratuitas até 13 de abril, em São Paulo e Rio.  Depois, o Festival vai a Campinas, Brasília e Belo Horizonte.





O Festival Melhores Filmes do Cinesesc chega aos 40 anos, mantendo o espírito de apresentar o que foram os destaques do cinema no ano anterior (2013) pela votação da crítica e do público.  Será possível ver e rever ao longo de todo o mês de abril o que de melhor se produziu no Brasil e em todo o mundo.

Quem não viu os brasileiros “O Som Ao Redor”, “Tatuagem”, “Repare Bem”, “Hoje”, “Flores Raras”, “Abismo Prateado”, “Faroeste Caboclo”, “Elena” e outros mais, tem agora nova chance.  E quem perdeu filmes estrangeiros do gabarito de “Era Uma Vez na Anatólia”, “Além das Montanhas”, “Amor”, “O Estranho Caso de Angélica”, “Pais e Filhos”, “Um Toque de Pecado”, “La Jaula de Oro”, “Las Acácias” ou “Caverna dos Sonhos Esquecidos”, vale a pena correr atrás do prejuízo e vê-los na excelente qualidade de imagem e som do Cinesesc, a preços acessíveis.  Quem tiver tempo e disposição para ver 15 filmes, pode adquirir o passaporte para o festival, o que barateia ainda mais os custos de cada sessão. O SESC levará o festival para todas as suas sedes no litoral e interior de São Paulo contemplando mais doze cidades.  

Logo a seguir, virá o Festival Varilux de Cinema Francês, em vários cinemas, e a retrospectiva “Tão Longe, Tão Perto – O Cinema Canadense”, no Centro Cultural Banco do Brasil.  E, certamente, ainda haverá espaço para mais mostras de cinema antes de a Copa chegar.


quarta-feira, 2 de abril de 2014

Noé

Tatiana Babadobulos



Noé (Noah). Estados Unidos, 2014. Direção: Darren Aronfsky. Roteiro: Darren Aronofsky e Ari Handel. Com: Russell Crowe, Jennifer Connelly, Anthony Hopkins. 138 minutos 



Existe uma teoria (dita por um professor durante o curso de crítica de cinema na pós-graduação) de que todos os roteiros de filmes podem ser lidos na Bíblia, independentemente de a história ser acerca de temas bíblicos ou não. Não sei se TO-DOS estão lá, mas tenho certeza de que “Noé” (“Noah”) está.
O longa-metragem, que estreia nesta quinta-feira, 3, conta a história do homem (Russell Crowe) escolhido pelo Criador para salvar a vida dos inocentes, visto que um dilúvio – quando a água do céu encontrará a água da terra – está prestes a acontecer e acabar com o mundo.
Diferentemente de outras versões do filme, cuja primeira foi “A Arca de Noé”, de Michael Curtiz, mostrada em 1928, ou até mesmo da paródia estrelada por Steve Carrell, em “Todo Poderoso”, aqui a trama é levada a sério pelo diretor Darren Aronofsky (“Cisne Negro”), com roteiro escrito por ele e por Ari Handel (“A Fonte da Vida”), inspirados nas páginas do livro de Gênesis.
Quando se fala em Noé, as pessoas, obviamente, o associam à arca que ele constrói. O filme, porém, conta a história desde o início, desde quando não existia nada, e o Criador fez Adão, Eva, a maçã que eles comeram e foram expulsos do paraíso. Adão e Eva comeram o fruto do pecado e tiveram três filhos: Caim, Abel e Set. Caim matou Abel e se separou de Set, dando origem a outra linhagem e à eterna briga entre o bem e o mal.
Noé, neto de Matusalém (Anthony Hopkins, de “O Silêncio dos Inocentes”), pertence à linhagem de Set e é o escolhido para construir uma arca e salvar os animais, sempre aos pares,a fim de perpetuar a espécie após o dilúvio. Os homens (e as mulheres) estão descartados dessa salvação. Matusalém, neste filme, é retratado como mentor de Noé. É dele as ações que vão encontrar muitos desdobramentos ao longo da trama.
Religioso, Noé acredita que o Criador não quer que a humanidade seja salva. Para construir a arca, recebe ajuda dos Guardiões, anjos de luz que ganharam a forma de pedra (e lembra os personagens de “Transformers”…) como castigo para fincarem no pé na Terra por ter desobedecido a uma ordem.
Mas como existe a luta do bem contra o mal, Noé será confrontado por uma legião de humanos que também querem subir na arca. Os humanos são liderados por Tubal Caim (Ray Winstone, “Os Infiltrados”), descendente de Caim. Daí nasce o confronto e a maldade.

A construção da família perfeita de Noé é composta por sua mulher, Naameh (Jennifer Connelly, com quem Russell formou par romântico em “Uma Mente Brilhante”), e três filhos: Sem (Douglas Booth), Ham (Logan Lerman) e Jafé (Leo Carroll ). Emma Watson (a Hermione da série “Harry Potter”) é Ila, mulher de Sem. Lá pelas tantas, é ela quem protagoniza sequências dramáticas do filme, que tinha ares de, vá lá, ficção científica com um tema bíblico – com, por exemplo, a presença dos Guardiões.

Na visão de Aronofsky, Noé é religioso, segue à risca a missão que lhe foi passada e não tem compaixão, além de ser extremamente prático e confiante. “Noé” preza pelo cinema de espetáculo, com efeitos especiais, barulho e três dimensões. Erra, por exemplo, ao se levar a sério e ao fazer dramalhão quando questiona sobre “fazer justiça com as próprias mãos”.


A maior bilheteria do fim de semana passado nos Estados Unidos, “Noé” poderá ser visto no Brasil em 2D e 3D e na versão Imax. Embora a tridimensional coloque o espectador dentro da tela, não é indispensável para o espetáculo conseguido, em sua maior parte, com a ajuda da computação gráfica.