Entre os quase 200 filmes que fazem
parte da 44ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo on line, acessados pelo site www.mostra.org, destaco aqui alguns importantes, que
merecem a atenção dos cinéfilos, ainda que possam gerar reações bem diversas,
de admiração ou desagrado, em função do estilo dos cineastas.
NADANDO
ATÉ O MAR SE TORNAR AZUL
é um dos grandes filmes da Mostra. Jia
Zhang-ke, um dos mais importantes cineastas em atuação no mundo, nos faz
conhecer melhor a China, partindo da sua aldeia, como se diz. Ele retornou à sua província para acompanhar
um evento literário que aconteceu por lá em 2019 e reuniu escritores
importantes, que trataram do tema de suas próprias origens. Valeu-se das memórias de um grande escritor
falecido, Ma Feng, e colheu testemunhos de três escritores de gerações
diferentes, Jia Pingwa, Yu Hua e Liang Hong.
Explorou nessas memórias a vida, a opção pela literatura, a atuação e as
questões políticas e econômicas que envolveram esse caminho, inclusive as de
ordem familiar. Por meio dessas
memórias, emerge todo um país imenso, diverso e em constante mudança. Percebe-se não só a sociedade em
transformação, mas também a influência política intensa que acompanhou a
atuação de cada um deles, moldando suas carreiras. Da China pobre e rural, passando pela
revolução cultural de Mao Tsé Tung, à China tecnológica e consumista dos dias
de hoje, o autoritarismo mostra sua face opressiva de muitas maneiras, gerando
sofrimento e produzindo criatividade. São figuras vencedoras as que falam no
filme, mostrando que, por mais difícil que seja, sempre há caminhos para alcançar
a sabedoria e realizar potencialidades.
Um documentário de grande alcance, que extrai de boas conversas,
complementadas por imagens cuidadosamente produzidas ou recolhidas, um mundo
inteiro a revelar. Se você tem interesse
em conhecer melhor a China, para além dos estereótipos, não perca esse filme.
111 minutos.
PAI, da Sérvia, dirigido por Srdan
Golubovic, trata de uma história pungente que tem por base o desemprego,
crescente no mundo. O filme tem a força
moral da solidariedade generosa dirigida aos despossuídos. Ao contrário da atuação das autoridades que
culpam o trabalhador por não ter emprego constante, não ter dinheiro para
cuidar da casa e dos filhos, viver no limite da fome. Até os vizinhos não conseguem apoiá-lo. Aqui no Brasil vemos com frequência como a
pobreza se apoia e se organiza para sobreviver melhor. Ali, não é o que acontece, o individualismo é
que dá as cartas. O personagem Nikola,
após um gesto desesperado de sua mulher, perde a guarda dos filhos, por não ter
as condições adequadas para educá-los.
Mas não se conforma, luta com o que pode, principalmente ao descobrir
que, por trás da insensibilidade das autoridades locais, há um esquema de
corrupção. Vai a pé até Belgrado, em
busca de apresentar um recurso para reaver as crianças. Mostra com seu sacrifício o que é ser
verdadeiramente pai, na base do amor e do desespero, nas condições mais
adversas. A identificação com o
personagem e a situação vivida por ele parecem inevitáveis, pelo sentido humano
e também pelo desempenho contido e equilibrado do ator que interpreta
Nikola. Impossível sair indiferente de
um filme como esse que, numa narrativa tradicional e até didática, mostra as
feridas abertas que estão pelo mundo. Um
dos melhores da Mostra, sem dúvida. 120
minutos.
DIAS, do diretor malaio Tsai Ming-Liang, é
um filme pungente sobre a solidão, mostrada por meio do cotidiano de dois
homens, de classes sociais diferentes, que um dia se encontram num quarto de
hotel. Vemos, por exemplo, Kang numa
casa grande, olhando o vento e a chuva balançando as árvores pelo reflexo da
janela, por um bom tempo, em que aparentemente nada acontece. Mas a água, um símbolo permanente nas cenas
do cineasta, invade o interior. De
outro, vemos Non, lavando hortaliças e preparando comida no seu pequeno
apartamento. Ele procura manter uma
chama fraca acesa. O elemento fogo
marcando sua presença e exigindo atenção.
O mal-estar está no corpo de Kang, que se submete a um tratamento do
tipo ventosa, mas com fios e coisas que queimam sobre as suas costas, por cima
de placas de madeira ou alumínio. Quase
tudo se passa entre quatro paredes, o ambiente externo aparece quando se
caminha pela rua, em meio às pessoas, ao movimento urbano, o que reafirma a
solidão no coletivo. Não há
contato. Um contato se dará de forma
física e afetiva entre os dois, num encontro homoerótico, em que os cuidados
com o corpo são mostrados numa massagem prolongada. Uma caixinha de música é um presente a quem
dedicou tal atenção ao corpo do outro.
Enfim, há um conjunto de situações que transmitem sensações,
sentimentos, nos dão tempo de ver até nuvens se deslocando lentamente, e
pensar/experimentar o que se vê. E
também o que não se vê. O filme não tem
diálogos e, se algo é dito no burburinho da rua, não importa. Durante duas horas, é um chamado à
contemplação do mundo. Quem é ansioso ou
se prende ao enredo dos filmes, certamente não aguentará. É preciso, antes de mais nada, se dispor a parar
para ver e ouvir os sons, perceber as pessoas e sua solidão no mundo contemporâneo,
tão cheio de gente. Quem se dispuser a
isso, perceberá que está diante de uma pérola cinematográfica.
GÊNERO,
PAN, de Lav Diaz, das
Filipinas, é um filme realizado em preto e branco, numa ilha mitológica, a de
Hugaw. Tudo começa a partir de uma mina
de ouro em que, claramente, trabalhadores são explorados, fazendo trabalho
pesado, em troca de um salário mínimo e incerto, além de restrito a alguns
períodos do ano. Para retornar de um
desses períodos, três mineradores revolvem viajar pela selva da ilha, de volta
à cidade, para reduzir gastos. Essa
viagem trará à cena mitos e crenças, como o do cavalo negro no rio, que traz a
morte. E a morte virá em forma de
assassinato, gerando uma outra narrativa que se desloca para o desvendar do
crime e suas consequências. Histórias
enterradas ou esquecidas vêm à tona e uma estranheza nas relações marca as
ações. Lav Diaz é conhecido por realizar
filmes monumentalmente longos, com duração de até cinco ou sete horas,
inviáveis para exibição sem fraciona-los. Neste caso, não, a narrativa coube em
157 minutos, em que pesem a mudança de rumo e de enfoque que acontece. A filmagem é muito bonita e expressiva, ao
mostrar tanto os personagens como a floresta e a ilha misteriosa. Há algo hipnotizante no ar. Vale a pena embarcar nessa aventura pouco
convencional desse premiado diretor filipino.
@mostrasp