quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

CONCLAVE e KASA BRANCA

Antonio Carlos Egypto

 



CONCLAVE (Conclave).  Reino Unido/Estados Unidos, 2024.  Direção: Edward Berger.  Elenco: Ralph Fiennes, Isabella Rossellini, Stanley Tucci, John Lithgow, Sergio Castelito, Carlos Diehz.  120 min.

 

Conclave é o evento antigo e cheio de segredos que marca a escolha de um novo papa, pelos cardeais da Igreja Católica, após a morte do que estava em atividade (ou a sua renúncia, o que também pode acontecer).  O filme “Conclave”, baseado em livro de Robert Harris, é uma ficção, que incorpora fatos e situações possíveis, prováveis de ocorrer, numa situação de disputa de poder, frequentemente negada pelos envolvidos, e a escolha, que tem de ser por ampla maioria, quase unanimidade, atribuída à inspiração do Espírito Santo.  O filme explora esses meandros com foco totalmente na figura do cardeal decano do Vaticano, Lawrence (Ralph Fiennes), que tem a responsabilidade de conduzir o conclave. É ele quem, genuinamente, tem de administrar os problemas que surgem envolvendo os possíveis escolhidos, cujos erros e “pecados” do passado vêm à tona, sua avidez pelo poder se evidencia ou suas ideias preconceituosas e ultrapassadas incomodam seus pares.  As diversas votações e suas variações, às vezes enormes, vão acontecendo, sem que se esteja conseguindo chegar ao veredito final, marcado pela saída da fumaça branca.  “Conclave” é um filme bem realizado, na forma tradicional, com uma história contada linearmente no tempo, em que acompanhamos os passos, dúvidas, hesitações e decisões do decano, e que nos levará a surpresas muito eloquentes.  É um filme que mexe no vespeiro da Igreja Católica, com um roteiro muito bem concebido, que é um dos seus pontos altos.  O outro é o elenco, muito forte. E uma coisa importante: num filme tão marcado pelos homens, o papel da mulher na Igreja ganha relevo.  O diretor Edward Berger se concentra na história e no suspense do enredo, mas tem algumas sequências que inserem beleza e leveza no filme, em alguns momentos.  No geral, são os bastidores do poder da Igreja os elementos centrais e definidores da narrativa.  “Conclave” concorre ao Oscar de melhor filme, ator, atriz coadjuvante, roteiro adaptado, montagem, direção de arte, figurino e trilha sonora.

 




KASA BRANCA.  Brasil, 2024.  Direção: Luciano Vidigal.  Elenco: Big Jaum, Teca Pereira, Diego Francisco, Ramon Francisco, Babu Santana, Otávio Muller.  95 min.

 

“Kasa Branca”, dirigido por Luciano Vidigal, é o primeiro lançamento de 2025 da Seção Vitrine Petrobrás, a preços reduzidos.  O filme trata da cada vez mais frequente dificuldade da doença de Alzheimer na vida das famílias, em tempos de maior longevidade das pessoas.  Se essa doença causa tantos problemas a qualquer família, isso se torna muito mais dramático diante da pobreza.  No caso de “Kasa Branca”, o protagonista é o jovem negro Dé (Big Jaum), que mesmo sem recursos, com o pai ausente, dedica-se à sua avó, D. Almerinda (Teca Pereira) com muito afeto.  Mais do que isso: tentando aproveitar os poucos momentos que lhes restam juntos, já que ela vive em estado terminal da enfermidade.  Ele a leva a lugares que podem lhe ser estimulantes, trazerem elementos de memória e laivos de felicidade.  Para isso, conta com a ajuda de dois amigos, Adrianinho (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco), que o acompanham em tudo, com muita solidariedade.  A pobreza, no entanto, é um drama.  Chega uma hora em que não há mais nenhuma condição de arcar com o custo dos medicamentos de D.Almerinda. A solução encontrada é assaltar a farmácia, quando fechada, para roubar o remédio.  Interessante notar que nada mais foi roubado pelos meninos, nenhum dinheiro do caixa. O que mostra a ação por desespero, de luta simplesmente pelo bem-estar no fim da vida.  O filme mostra não só essa relação de neto, avó e amigos, mas as dificuldades econômicas que são a regra da vida desse pessoal, as agruras por que têm de passar, a fragilidade e a vulnerabilidade aí envolvidas.  Enfim, um retrato da realidade da pobreza, que acaba tornando tudo mais difícil, mesmo contando com a solidariedade das pessoas em volta, da ajuda que sempre aparece, do espírito comunitário.  Por melhores que sejam as pessoas e as intenções, na pobreza a vida é sempre dura.  Mesmo assim, há os momentos de festa, de música, da dança, da celebração da vida.




segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

GOLPES DE ESTADO

 

                    Antonio Carlos Egypto

 



TRILHA SONORA PARA UM GOLPE DE ESTADO (Soundtrack to a Coup d’Etat). Bélgica, 2024.  Direção: Johan Grimonprez.  Documentário.  150 min.

 

O documentário “Trilha Sonora para um Golpe de Estado”, indicado ao Oscar 2025, é um trabalho cinematográfico de peso.  Manipula um número impressionante de imagens dos fatos, dos personagens, das situações e dos significados envolvidos numa história incrível.  A edição, extremamente ágil, trabalha um sem-número de questões, valendo-se de ironia, sarcasmo, humor e realidade factual, interagindo o tempo todo.  Acrescente-se, trazendo à baila expoentes do jazz norte-americano, utilizados pela CIA e pelo governo estadunidense, para ganhar corações e mentes dos congoleses, e africanos em geral, escondendo um golpe de Estado que estava em andamento. 

 

Vejam só quem chegou ao Congo recém-independente, para tocar por lá: Louis Armstrong.  Mas também passaram por lá Thelonious Monk, Dizzy Gillespie, John Coltraine, Nina Simone e até Ella Fitzgerald.  Além deles, Abbey Lincoln e Max Roach, que invadiram o Conselho de Segurança da ONU, em 1961, para protestar pelo assassinato do líder Patrice Lumumba.

 

Esse foi o início e o coroamento da história, mas ao longo do filme são mostrados o processo de colonização do Congo Belga, a luta por sua independência, incrivelmente manipulada para torná–la sem efeito e minimizá-la desde os primeiros dias.  Doze semanas após ser eleito primeiro ministro, Patrice Lumumba foi deposto pelo Coronel Joseph Molutu.  Em resposta, Lumumba destituiu Molutu da presidência e acabou sendo sequestrado, preso e exilado dentro do próprio país, na região de Catanga, um enclave antirrevolucionário, dominado por belgas, norte-americanos e do Reino Unido. 

 

Enquanto isso, a figura de Nikita Kruschev, líder da União Soviética, aparece ativo, falante, risonho, batendo punho na mesa, nas sessões da ONU, em apoio a Lumumba.  E, consequentemente, incomodando fortemente o outro lado e fortalecendo os motivos para a intervenção contra a independência do país. Malcolm X também tem presença marcante nessa história.

 

Enfim, toda essa barafunda que envolveu a República Democrática do Congo, a liderança ampla e determinante de Patrice Lumumba, que alcançou toda a África, acabou no assassinato dele.

 

O documentário joga esses elementos todos em cena, de tal forma que chega a aturdir o espectador não familiarizado com o período histórico abordado.  Mas, ao mesmo tempo, provoca tanto, deixa tudo claro e brinca com toda aquela situação, pelo seu despropósito, pelos seus jogos de cena e de poder, que nos mobiliza a pensar sobre o que significou e significa tudo isso para cada um de nós.  O filme é bem longo para um documentário histórico-político como ele é, mas vale cada minuto de projeção.

 




12.12: O DIA (12.12:The Day).  Coreia do Sul, 2024.  Direção: Kim Sung-soo.  Elenco: Hwang-jung-min, Jung Woo-sung, Lee Sung-min, Park-Hae-joon, Kim Sung-kyun.  141 min.

 

Outro filme que trata de golpe de Estado é o coreano “12.12: O Dia”, que está previsto para chegar aos cinemas brasileiros em breve e representou a Coreia do Sul no Oscar de filme internacional.

 

O dia 12 de dezembro de 1979 ficou marcado como aquele que deu início a um golpe militar, após muitos confrontos internos nas Forças Armadas e acabou pondo fim a uma “primavera” coreana, uma situação em que a abertura política e uma visão mais aberta e liberal do poder sucumbiu à força das armas.  Isso iria mudar ao longo dos anos 1980, mas o momento relatado no filme foi aquele que pôs em confronto as forças do Comandante Chum-Doo-gwang com as forças de resistência do Comandante Lee-Tae-shin, após o assassinato do presidente Park e da decretação da lei marcial.

 

O impressionante desse filme, dirigido por Kim-Sung-soo, é que ele reconstrói, passo a passo, com alguns elementos ficcionais, os eventos de ação e reação dentro das Forças Armadas que foram ocorrendo até a consumação do golpe de Estado.  Vemos as forças em ação, avanços e recuos, a incerteza de cada decisão, de lado a lado, os dilemas morais e os confrontos pessoais, no meio das ações políticas e, principalmente, das  militares.

 

Acaba sendo um belo filme de ação, que se vale do substrato de uma realidade política, que deixa muito claro que a democracia só sobrevive se for defendida e, ainda assim, qualquer percalço pode colocá-la em risco.

 

“12.12: O Dia” foi o filme de maior sucesso de público na Coreia do Sul no ano passado e chega em hora decisiva e oportuna, nos momentos em que, em dezembro de 2024, o presidente Yoon Suk-yeol tentou um golpe, ao declarar lei marcial, fechar o Parlamento e restringir a liberdade de imprensa.  Acabou sofrendo impeachment e foi preso.  Ou seja, a história se repete a todo instante.  Às vezes com sucesso, às vezes, sem.  É preciso estar atento, por isso filmes como esse são importantes de serem vistos e comentados.




quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

OLHA O OSCAR AÍ, GENTE!

       Antonio Carlos Egypto

 


Hoje pela manhã me deparei com a melhor notícia que poderia esperar.  Sim, AINDA ESTOU AQUI foi indicado entre os 5 como melhor filme internacional.  Foi também indicado entre os 10 como melhor filme, um fato inédito e consagrador.  E Fernanda Torres, entre as 5 indicadas como melhor atriz.  É o reconhecimento internacional a um grande filme brasileiro, já um dos mais importantes da nossa história.  E que vem na hora certa para celebrar a democracia, no mesmo momento em que o país investiga e pune uma tentativa de Golpe de Estado e de combate ao Estado Democrático de Direito.  É também um momento em que a memória da ditadura militar está menos presente e sua lembrança é distorcida pela extrema-direita, que chega ao disparate de louvá-la e defender a tortura e a morte como métodos políticos.

 

A família de Rubens Paiva, engenheiro e deputado cassado, viveu o que muitas famílias viveram no período ditatorial.  O sequestro, prisão sem reconhecimento, tortura, morte e ocultação do cadáver dos que eram chamados “subversivos”, simplesmente por discordarem ou lutarem contra aquela opressão toda, com as armas que pudessem. A ditadura não foi branda e não agia somente contra os que a enfrentaram por meio da luta armada, como algumas narrativas pretendem afirmar.

 

O caso do ex-deputado Rubens Paiva é emblemático por ser uma pessoa branca, de classe média alta, de pensamento progressista, com mulher e cinco filhos em sua família constituída, que tinha uma casa aberta aos amigos e familiares e que nenhum mal poderia causar à sociedade ou ao país.  Certamente, contribuiu para ajudar, proteger os perseguidos do regime, em atitude humana e digna.

 

Marcelo Rubens Paiva, ao escrever essa história terrível de sua família, no livro que inspirou o filme “Ainda Estou Aqui”, focalizou em sua mãe, Eunice. Ela é o centro da narrativa do belíssimo trabalho de Walter Salles, numa interpretação brilhante de Fernanda Torres, que já recebeu todo o reconhecimento internacional pelo seu desempenho no filme. Selton Mello foi seu grande parceiro, excelente na criação que fez de Rubens Paiva. Foi a perda progressiva de memória de Eunice, por conta do Alzheimer, que motivou Marcelo a recuperar as memórias do país, que não poderiam se perder. Os efeitos estão aí, visíveis, e ainda há muito o que contar e resgatar, papel que esse filme notável está desempenhando em nível mundial.

 


Os prêmios que “Ainda Estou Aqui” vem acumulando nos festivais em todo o mundo, coroados pelo de atriz no Globo de Ouro, são importantes para o Brasil e para o cinema brasileiro.  O Oscar, tradicional prêmio da indústria do cinema norte-americano e, por extensão, da língua inglesa, tem papel muito relevante no mercado e na imagem e carreira dos artistas agraciados. Repara, de algum modo, a injustiça cometida com Fernanda Montenegro há 25 anos.  É entusiasmante ver que um grande filme brasileiro consegue alcançar essa meta também.

 

A conquista já se deu, é hora de comemorar.  Não custa torcer por uma vitória ainda maior, quando as estatuetas do Oscar estiverem sendo distribuídas em 02 de março de 2025, domingo de Carnaval.  Afinal, tudo é possível.  Por que não?



segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

OS 10 MAIS

 Antonio Carlos Egypto

 

Os melhores filmes de 2024 lançados nos cinemas.  Talvez seja melhor dizer, aqueles filmes que eu mais gostei de ver, que me satisfizeram, já que é inevitável que as listas sejam marcadas pela subjetividade, pelo gosto pessoal.  Por exemplo, ao completar minha lista de 10 nacionais, constatei que incluí 5 documentários, o que provavelmente será incomum se comparada à lista de outros críticos.  Documentários muito bem feitos como esses que eu listei me conquistaram, especialmente por resgatarem figuras culturais importantes.  Bem, aí está minha opinião, baseada em muitas e muitas horas de frequência aos cinemas, em cabines e em sessões normais.  As de festival não entram nas indicações do ano, porém, sessões de festival de anos anteriores frequentemente chegam ao cinema um ano depois, ou mais tempo ainda.  Aí vale recuperar o que foi visto e também escrito naquele momento.  Se revisto, o filme pode crescer ou perder força, na avaliação de cada um, não é?  Confiram as listas e, se quiserem comentar, concordar, discordar, fiquem à vontade.

 


Ainda Estou Aqui


TOP 10

Brasileiros

 

AINDA ESTOU AQUI – Walter Salles

O DIABO NA RUA, NO MEIO DO REDEMUNHO – Bia Lessa

RETRATO DE UM CERTO ORIENTE – Marcelo Gomes

OTHELO, O GRANDE – Lucas H. Rossi

FERNANDA YOUNG – FOGE-ME AO CONTROLE – Susanna Lira

GRANDE SERTÃO – Guel Arraes

LUPICÍNIO RODRIGUES, CONFISSÕES DE UM SOFREDOR – Alfredo Manevy

DORIVAL CAYMMI, UM HOMEM DE AFETOS – Daniela Broitman

NADA SERÁ COMO ANTES – A MÚSICA DO CLUBE DA ESQUINA – Ana Rieper

MOTEL DESTINO – Karim Aïnouz

 




Internacionais

 

O QUARTO AO LADO -- Pedro Almodóvar

ERVAS SECAS – Nuge Bilge Ceylan

O MELHOR ESTÁ POR VIR – Nanni Moretti

AINDA TEMOS O AMANHÃ – Paola Cortellesi

CONTO DE FADAS – Alexandr Sokurov

O ÚLTIMO PUB – Ken Loach

O SEQUESTRO DO PAPA – Marco  Bellochio

EU, CAPITÃO – Matteo Garrone

A GRANDE FUGA – Oliver Parker

RIVAIS – Luca Guadagnino

 

 

  

quinta-feira, 16 de janeiro de 2025

2 FILMES DO IRÃ

              Antonio Carlos Egypto

 



A SEMENTE DO FRUTO SAGRADO (Dãne-ye anjir-e ma’ãbed).  Irã/Alemanha, 2024.  Direção: Mohammad Rasoulof.  Elenco: Missagh Zareh, Mahsa Rostami, Soheila Golestani, Setareh Maleki, Niousha Akhshi.  166 min.

 

O título poético “A Semente do Fruto Sagrado” é uma metáfora para se referir àquilo que as pessoas internalizam, aderem, que as destrói e contamina o ambiente em que elas vivem.  E a referência ao sagrado não é aleatória.  É em nome de Deus que se cometem os crimes mais cruéis. Aqui, o contexto coletivo é o da teocracia que vigora no Irã.  O personagem central da trama é Iman (Missagh Zareh), que alcança a condição de Juiz de Instrução nos processos da Polícia da Moral, no mesmo momento em que pipocam manifestações populares nas ruas de Teerã e outras cidades do país, por conta da morte de uma jovem relacionada ao uso inadequado (ou ausente) do véu obrigatório.  E o filme se vale de imagens reais, captadas nas ruas.  A narrativa, então, focaliza a família de Iman, sua mulher e duas filhas, dentro de casa, oprimidas pela situação e tendo de se comportar estritamente segundo as regras do regime, para não prejudicar a carreira do pai.  Ocorre que a revolta invade a casa e atinge uma amiga das meninas, que é fortemente agredida pela polícia, o que era a regra das ruas.  Nesse momento, uma sequência longa e detalhada faz questão de mostrar os ferimentos que afetam seriamente o rosto da moça, sendo cuidada pela mãe das meninas, Najmeh (Soheila Golestani).  Não era necessário esse alongamento, não é isso que convence alguém de que o autoritarismo e a violência vigoram em regimes como esse.  Em seguida, a narrativa vai se concentrar na perda da arma de Iman e nas relações familiares que refletirão, reproduzirão, a opressão e as injustiças da teocracia dominante.  Aí também há um alongamento da situação, mas novos elementos serão revelados.  E sequências que exploram amplamente os espaços externos e os internos até chegar ao labiríntico final são recursos cinematográficos bem empregados.  Assim como a câmera explora o conjunto, também é bastante criativa nos detalhes, como os pingos de uma chuva ou objetos que têm significado na história.  O elenco formado pelas três mulheres da casa, pela amiga e por Iman é muito eficiente, e na contenção expressa o medo.   O medo é o grande mote de toda a ação do filme, na minha visão.  O que bloqueia, o que paralisa, o que move, o que oprime e o que destrói é o medo.  “A Semente do Fruto Sagrado” é a denúncia da opressão pelo medo.  Não surpreende que o cineasta Mohammad Rasoulof tenha fugido do Irã e o filme esteja proibido de ser exibido no país.  Da mesma forma, não chega a ser estranho que esse filme tenha sido o escolhido pela Alemanha para representá–la no Oscar de filme internacional.  O Irã jamais o indicaria.  É um filme corajoso, que toca na ferida, o que nenhum regime opressor pode admitir.  Uma boa razão para que a gente continue cultivando a nossa democracia.

 



MEU BOLO FAVORITO (Keyke Mahboobe Man).  Irã, 2024.  Direção: Maryam Moghadam e Behtash Sangeeha.  Elenco: Lili Farhadpour, Esmaeel Mehrabi, Mansore Ilkani.  96 min.

 

Um filme iraniano simples, de baixo orçamento, consegue alcançar um alto grau de sensibilidade ao tratar de solidão e velhice.  A rotina da solidão pode ser muito cruel, na ausência do ser amado, que se foi, ou de um passado que já ficou para trás, das amigas, amigos ou colegas de trabalho, que envelhecem, perdem força e vigor.  Mas os sonhos e os desejos continuam lá.  A cabeça sonha coisas que o corpo já não dá conta.  O espectro da doença e da morte é um desafio real e concreto.  Acomodar-se ou desistir desses sonhos gera frustração, amargura.  E nem o recurso à ironia alivia o problema.  As respostas individuais, no entanto, variam muito.  Às vezes, um gesto ousado pode gerar esperança, amor.  A repressão e o controle do comportamento feminino são fatores complicadores.  Em especial, numa sociedade autoritária, que controla do uso correto do véu às pessoas que são recebidas em casa.  É contra a lei de Deus, por exemplo, uma mulher receber um homem em casa.  Por qualquer que seja o motivo. Uma sociedade que pulsa e clama por liberdade, mas que está presa a valores arcaicos, sujeita à Polícia da Moral, torna radical a experiência do envelhecer e da solidão.  No filme “Meu Bolo Favorito”, todas essas questões se fazem presentes, bem como o revigorar da vida pela emergência do afeto, do amor e do companheirismo.  Diálogos surpreendentemente claros e diretos revelam o que está envolvido nessa temática. A personagem central da trama, Mahin, papel vivido brilhantemente por Lili Farhadpour, explora uma série de nuances da situação feminina, que remetem ao país, mas vão além dele, com certeza.  Faramarz, papel também de ótimo desempenho de Esmaeel Mehrabi, nos mostra que o poder masculino se esvai, desaparece no viver solitário.  O grupo de homens idosos do bar também remete à perda dessa força, em que pese o modelo social privilegiar tão claramente o homem, frente à liberdade e à capacidade de decidir a própria existência.  O fato é que a vida pulsa na tela com muita verdade nesse simpático “Meu Bolo Favorito”.  O bolo é aquele que é feito na espera de alguém para comer e compartilhar.

 

FILMES EM CARTAZ

Já comentei por aqui vários filmes que estão entrando na programação dos cinemas, quando da 48ª. Mostra Internacional de São Paulo: MARIA CALLAS, TUDO QUE IMAGINAMOS COMO LUZ, SOL DE INVERNO, BABY, MALU e LUÍS MELODIA, NO CORAÇÃO DO BRASIL.  Quem não viu e quiser conferir entre nas postagens da Mostra em outubro e começo de novembro por aqui:  https://cinemacomrecheio.blogspot.com 





quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

BABYGIRL

Antonio Carlos Egypto

 


BABYGIRL (Babygirl).  Estados Unidos, 2024.  Direção: Halina Reijn.  Elenco: Nicole Kidman, Harris Dickinson, Antonio Banderas, Sophie Wilde, Izabel Mar.108 min.

 

“Babygirl” é um suspense erótico, que, por meio da personagem Romy (Nicole Kidman), coloca em evidência a questão do poder e da sexualidade femininos.  Em tempos de destaques femininos nos círculos de poder, Romy faz sucesso no mundo dos negócios, dá as cartas em seu mundo corporativo e tem um casamento com Jacob (Antonio Banderas), ao que tudo indica, tranquilo e equilibrado, incluindo duas filhas.

 

Algo, porém, parecia estar faltando, porque, quando um trainée da empresa busca seu apoio para crescer profissionalmente, algo mais acontece.  Tendo todo o domínio da situação, ela se envolve sexualmente com Samuel (Harris Dickinson) e acaba por se submeter aos jogos sexuais que ele propõe, a ponto de desempenhar a função de babygirl do estagiário.  Claramente, o domínio não é dele, apesar das aparências.  No entanto, ela coloca em risco sua vida pessoal, seu casamento e mesmo sua exitosa vida profissional, num jogo de gato e rato.

 

Desejo, experiência e risco fazem parte de uma trama em que não há certo e errado, vilões e mocinhas, anjos ou demônios.

 


O filme é uma oportunidade oferecida a Nicole Kidman para um mergulho em uma personagem que demanda dela entrega total, um papel que exige dela muita exposição e quebra de decoro.  Nicole se arrisca, tanto quanto Romy, nessa experiência cinematográfica, bem conduzida pela diretora e roteirista Halina Reijn.  E se sai bem da empreitada.  Não por acaso, está frequentando as listas de indicações para o Globo de Ouro (perdida para Fernanda Torres) e para o Oscar.

 

O jovem Harris Dickinson, que faz o estagiário Samuel, mostra bastante segurança e desenvoltura em cena.  É um parceiro à altura para Nicole Kidman.  E a presença de Antonio Banderas só enriquece o elenco do filme.  Aqui ele tem um desempenho sóbrio e manso (adjetivo para ser usado com cuidado, neste contexto) de um ator com grande solidez no cinema.

 

Umas tantas vezes as cenas não têm a força ou a dramaticidade  esperadas.  E nessas horas a intensidade da música empurra a cena para tentar envolver o espectador.  De qualquer modo, o que está sendo mostrado, apresentado, é importante.  É uma boa possibilidade de pensar o mundo feminino de hoje, suas necessidades, lutas e conquistas. E suas contradições, também.




segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

FERNANDA TORRES

 Antonio Carlos Egypto

 

 


AINDA ESTOU AQUI é o filme mais importante dentre os que foram exibidos por aqui em 2024.  Ele traz à luz o período histórico tenebroso que o Brasil viveu durante 21 anos, de 1964 a 1985.  Perseguições, censura, cassações, prisões arbitrárias, tortura, mortes e ocultação de cadáveres fazem parte da memória dessa época.  Que não pode ser esquecida nem minimizada.  Marcelo Rubens Paiva, ao ver que sua mãe, Eunice Paiva, perdia a memória, resolveu resgatar a memória do país em que ela viveu.  Seu livro virou um filme magnífico de Walter Salles, que, com seu reconhecido talento, produziu uma obra limpa, honesta, verdadeira, sem qualquer truque ou excesso.  Um trabalho de quem, ainda que criança, como o escritor Marcelo, conviveu de perto com a realidade daquela família.  Uma família que, pelo que viveu, mostra bem os métodos da ditadura militar.

 

A figura emblemática para nos contar essa história foi Eunice Paiva, mulher de Rubens Paiva, que enfrentou a saga familiar com altivez, incrível determinação e decisões arriscadas e polêmicas, mas encontrou seu caminho, em meio a um intenso sofrimento, que ela preservava para cuidar dos seus cinco filhos.  Lutava e não vergava.  Ao contrário, se dedicou a causas humanitárias, coletivas, que ela percebia fundamentais.

 

O livro e o filme dependem dela, dessa figura que ganhou uma relevância imensa na tela, pelo incrível desempenho de Fernanda Torres.  A atriz encontrou um caminho interpretativo que deu conta do sofrimento interno e da expressão e ações dessa mulher.  Fez o mais difícil: nos revelou o que não estava à vista.  O que Eunice sentiu e viveu, envolvida pelo tsunami que se abateu sobre sua vida e a de sua família.  Realmente aqui, como em muitas outras situações cinematográficas, menos é mais.  Contida, ela extravasou com sutileza a vida e a importância dessa mulher, homenageando-a sem glorificá-la.  Alcançou uma maturidade interpretativa admirável.  A sua vitória como atriz de cinema em drama, no Globo de Ouro, é um reconhecimento internacional importante para o nosso cinema.  O filme já alcançou no Brasil mais de três milhões de espectadores, nos cinemas, que perceberam sua importância para o nosso momento.  O que tende a se multiplicar após o prêmio conquistado.  Parabéns, Fernanda Torres!

 

 



quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

ENCONTRO COM O DITADOR

Antonio Carlos Egypto

 


ENCONTRO COM O DITADOR (Rendez-vous Avec Pol Pot).  Camboja/França, 2024.  Direção: Rithy Panh.  Elenco: Irène Jacob, Grégoire Colin, Cyril Guei, Bunhok Lim, Somaline Mao.  110 min.

 

Um dos grandes cineastas da atualidade é Rithy Panh, do Camboja.  Seu trabalho mexe na ferida que insiste em ficar escondida: a do genocídio promovido pelo ditador Pol Pot, de 1975 a 1979, em nome de um regime supostamente comunista, do Khmer Vermelho, capitaneado pelo partido Angkar.  Nele, a opressão e a fome eram a regra e quem ousasse discordar era simplesmente severamente punido ou eliminado.  Dois milhões de pessoas morreram nesse período.

 

O Kampuchea Democrático, como era chamado o Camboja, enfrentava uma guerra contra os inimigos vietnamitas e isso justificava tudo o que o regime realizava de opressão.

 

O filme “Encontro com o Ditador”, baseado no livro When the War Was Over, de Elizabeth Becker, relata um evento real.  Qual seja, uma visita de três jornalistas franceses a Phnom Penh, a convite do regime, para conhecer suas virtudes e entrevistar Pol Pot.

 

Lise (Irène Jacob) era uma jornalista familiarizada com o país, que tinha gente conhecida lá, que andava desaparecida e ela pretendia reencontrar.  Alain (Grégoire Colin), um intelectual que tinha sido amigo do ditador na França, simpatizava com a causa da revolução e queria acreditar nos propósitos de seu antigo amigo.  Paul Thomas (Cyril Guei), repórter fotográfico, tinha sua máquina em punho, com a intenção de registrar a verdade dos fatos.

 


Desde o primeiro momento, no entanto, essas expectativas se frustraram.  Para começar, porque eles não desceram em Phnom Penh, mas numa localidade distante, para onde foram levados a uma hospedagem modesta.  Supostamente, essa modéstia seria também a do chamado Irmão No. 1, que algum dia aparecerá, mas está muito ocupado com os vietnamitas, os grandes responsáveis por tudo o que prejudicava o país, como informavam os integrantes do governo. 

 

Ao longo dessa estadia e da espera pela entrevista, o filme nos mostra todo o processo de ocultar a verdade sob o manto de uma propaganda fantasiosa, e a opressão sobre pobres camponeses, em nome de quem o regime dizia representar o povo.  Um coletivismo forçado, da pior espécie, que não dá lugar a nenhuma individualidade, iniciativa ou privacidade, se mostra, querendo não aparecer.

 

Aos poucos, a fome e a morte se evidenciam como as verdadeiras marcas desse período terrível da história cambojana, que o diretor Rithy Panh viveu na pele e mostrou no brilhante documentário “A Imagem que Falta”, também comentado aqui no Cinema com Recheio.

 

“Encontro com o Ditador” tem o grande mérito de ser dirigido com maestria, dando destaque ao que os jornalistas, protagonistas da história, sentem, vivem, elaboram, e como se relacionam naquela situação tão delicada e desafiadora.  A cada passo, como espectadores, vamos sucumbindo àquele drama, provocados por uma realidade asfixiante e cada vez mais perigosa.

 

Forma-se um suspense político e humano muito forte à nossa frente.  Difícil de engolir.  Até mesmo o recurso, já recorrente do diretor, de utilizar bonecos de barro e cenários em miniatura, não chega a aliviar o peso da violência.  As imagens em preto e branco, incluindo antigas gravações, acentuam o sentido da tragédia.  E as imagens filmadas no campo, da localidade, tão devastada e destituída de cores vivas pela fotografia, não deixam margem a dúvidas sobre o desolamento da situação.  Pode ser duro de se ver, mas, acredite, é excelente cinema.