quarta-feira, 28 de março de 2018

ELLA & JOHN


Antonio Carlos Egypto






ELLA & JOHN (The Leisure Seeker).  Estados Unidos, 2017.  Direção: Paolo Virzì.  Com Helen Mirren, Donald Sutherland, Kristy Mitchell, Dick Gregory, Janel Moloney.  112 min.



O diretor e roteirista italiano Paolo Virzì tem uma larga trajetória no cinema, com muitos prêmios importantes pelo caminho.  “Ella & John” é seu 13º. filme.  Entre os seus trabalhos anteriores estão “A Primeira Coisa Bela”, de 2010, “Capital Humano”, de 2013, e “Loucas de Alegria”, de 2016.  São bons filmes, realizados visando a atingir boas fatias de público, em produções comerciais bem cuidadas, com bons atores e atrizes.  E com equívocos, também.

“Ella & John” é, desta vez, um filme holywoodiano, um road-movie, protagonizado por uma dupla de veteranos notável: Helen Mirren (Ella) e Donald Sutherland (John).  Eles vão atravessar os Estados Unidos, indo de Boston até a casa de Ernest Hemingway, em Key West. 

Um detalhe: eles farão isso com um velho trailer, antigamente usado para viagens familiares, que foi mantido na garagem de casa.  Serviu muito no passado, mas estava sem uso e superado.  Apelidado de caça lazer – leisure seeker – que dá o nome original ao filme, era visto como uma relíquia de família.

Outro detalhe: os dois são um casal bem idoso, ela, com câncer, ele, com uma espécie de alzheimer, que vai corroendo sua memória progressivamente, reduzindo a lucidez.  No entanto, ele é capaz de dirigir na estrada muito bem, ainda.  Só que pode tomar decisões esdrúxulas, se for deixado sozinho. 




Terceiro detalhe: ambos resolvem fazer essa viagem de trailer sozinhos, sem avisar os filhos ou informar para onde vão.  É uma espécie de última viagem de suas vidas, para comemorar uma longa jornada juntos, embora ele, às vezes, esqueça quem ela é. 

O destino a alcançar tem tudo a ver com a vida universitária de John, professor e profundo conhecedor de literatura, em especial, da obra de Hemingway, que ele sabe em grande parte de cor, tantas vezes foi visitada, consultada, ministrada aos alunos.  Uma verdadeira paixão.

As peripécias vividas durante a viagem podem ser facilmente imaginadas.  Coisas de um passado remoto, que já deveriam estar enterradas, vêm novamente à tona.  Ao mesmo tempo, o afeto se renova, o companheirismo, a cumplicidade e a tolerância.  Pelo menos, sempre que as sinapses cerebrais dele  não falhem.  Ella comanda tudo com firmeza, mas com o corpo vulnerável.

Personagens em idade avançada e tendo de encarar a morte próxima crescem significativamente nos roteiros cinematográficos.  O mundo envelhece, a medicina prolonga a existência com melhor qualidade de vida, o mercado pede.  Bom para os atores e atrizes, que também envelhecem, encontrando bons papéis, e de protagonistas.  É uma oportunidade para vermos em cena talentos como os de Helen Mirren e Donald Sutherland em primeiríssimo plano.  Só por aí já vale a pena ver “Ella & John”.  A situação criada é bem desenvolvida, de modo geral.  A produção é boa, o diretor, competente e experimentado.  O resultado não é brilhante, mas é bem bom.



domingo, 25 de março de 2018

SOLDADOS DO ARAGUAIA


Antonio Carlos Egypto




SOLDADOS DO ARAGUAIA.  Brasil, 2017. Direção: Belisário Franca.  Documentário.  73 min.


A historiografia brasileira tem muitos esqueletos no armário.  Aspectos importantes são deixados de lado, relegados ao esquecimento, como se nunca tivessem existido.  O diretor Belisário Franca já havia mexido numa ferida antiga, no documentário “Menino 23”, acompanhando a investigação do historiador Sidney Aguiar, que descobriu tijolos confeccionados com suásticas nazistas, numa fazenda no interior de São Paulo.  E acabou revelando a escravização de crianças nos anos 1920 e 1930, promovida por empresários de pensamento eugenista.  O vínculo entre elites brasileiras e crenças nazistas se revela por inteiro, no depoimento de uma vítima sobrevivente: menino 23, já que eles tinham que abdicar de seus próprios nomes.  Belo documentário.

Agora, Belisário Franca volta à carga, remexendo na proscrita guerrilha do Araguaia, que aconteceu entre 1967 e 1975, na selva amazônica.  Foi um movimento de resistência armada à ditadura militar no campo, visando a atingir comunidades ribeirinhas e rurais na organização da resistência.

Acabou sendo dizimada por forças do exército, que recrutavam soldados da própria região, que se apresentavam para o serviço militar e eram treinados para enfrentar a guerra, desconhecendo por completo suas reais motivações.




O tal treinamento, revela-se no filme, era de uma crueldade incrível para aqueles recrutas, que sofriam verdadeira tortura física e psicológica, para aprenderem a endurecer com os “subversivos” comunistas, que seriam capturados e barbaramente torturados, mortos, jogados ao mar de helicópteros e todo tipo de excessos.  Não havia lei nem nenhum tipo de garantia constitucional ou dos direitos humanos.  Tudo podia, na ditadura civil-militar que vigorou por 21 anos no Brasil, especialmente contra a resistência armada, no campo ou na cidade.

A partir de um trabalho de apoio aos ex-soldados do Araguaia, que vivem traumas permanentes, relacionam-se com fantasmas e culpas por toda a vida, o documentário “Soldados do Araguaia” resolve ouvi-los, contar suas agruras, suas impressões, suas memórias, os medos que persistem, a opressão que ficou dentro deles, como agentes e vítimas de uma violência inaudita. 

O que se ouve e se vê é estarrecedor.  Quem ainda hoje pensa em restaurar dias como aqueles só pode ser um louco desumano ou um completo desinformado sobre aquele período.  Daí a importância de um filme como esse, para que não desejemos repetir atrocidades como aquelas.




Quando se quer apagar da história os eventos que não interessa recordar, que comprometem pessoas e instituições de poder, o que nos resta é um limbo perigoso, que pode nos levar a reviver barbaridades, desumanidades, que não se justificam em nome de nenhuma ideia política, seja à direita, seja à esquerda.  Combater a opressão ao ser humano se sobrepõe a todas as ideologias ou sistemas de poder.

Para que isso seja possível, encarar a verdade dos fatos é essencial.  O documentário é um meio, um dos caminhos de concretizar isso e alcançar o público.  O problema é a distribuição e exibição dos filmes, que acaba relegando-os a poucos e raros espaços, por pouquíssimo tempo.  Os serviços de TV paga, streaming e a disponibilização na Internet podem ajudar.  Pode ser incômodo, mas é importante saber dessas coisas.



quinta-feira, 22 de março de 2018

POR TRÁS DOS SEUS OLHOS


Antonio Carlos Egypto




POR TRÁS DOS SEUS OLHOS (All I See is You).  Estados Unidos, 2017.  Direção: Marc Foster.  Com Blake Lively, Jason Clarke, Danny Huston.  110 min.



No filme “Por Trás dos Seus Olhos”, o diretor Marc Foster aproveita a trama, que diz respeito a uma mulher que ficou cega num acidente de infância, em que perdeu os pais, mas pode voltar a enxergar de um olho, com as novas possibilidades da medicina atual, para realizar uma experimentação visual bem interessante.  Mais do que a história, que também tem seus méritos, as imagens é que fazem a força do filme.  Em excesso, até.

A câmera de Foster nos leva a enxergar embaçado, desfocar, nublar, sofrer variações e desequilíbrios, que tentam mimetizar a experiência da cegueria, com sua vulnerabilidade, inseguranças e medos.  A percepção das luzes, da água, do vento, do movimento e dos ambientes traz grandes sensações e induz à imaginação.  Retomar a visão ou parte dela, recuperando a magia das cores e o colorido da vida, produz um efeito deslumbrante.  Para isso, é especialmente favorável a vida em Bangkok, naTailândia, onde o personagem James (Jason Clarke), marido de Gina (Blake Lively), a portadora da deficiência visual, trabalha no ramo de seguros.  A variedade de flores por lá é uma festa!




O casal formado por James e Gina, vivendo num país estrangeiro, parece caminhar muito bem, já que a dependência afetiva que ela tem dele é bem resolvida e acolhida por ambos.  Só estariam faltando filhos.  Mas, com o retorno à visão, aquilo que estava na mente, na imaginação dela, nem sempre se apresenta do modo esperado e nem de forma a ser bem recebido.  O conflito, então, tende a se estabelecer, exigindo novos comportamentos e soluções.  Um novo relacionamento tem de ser construído.  Assim como novas relações vão se estabelecer.

A atriz Blake Lively tem um desafio e tanto, no papel da mulher que, de cega, passa progressivamente a ver, e que pode ter recaídas.  A câmera se esbalda ao explorar esse universo visual inconstante.  Há um tanto de maneirismo nessa exploração visual, ela acaba se colocando à frente dos personagens e da trama.  Ou seja, a técnica se torna visível demais.  As imagens são bonitas, sedutoras.  O ambiente psicológico que se transforma com a visão também prende a atenção do espectador.  Enfim, tudo muda.  Para chegar a quê?


quarta-feira, 21 de março de 2018

A LIVRARIA


Antonio Carlos Egypto




A LIVRARIA (The Bookshop).  Espanha, 2017.  Direção: Isabel Coixet.  Com Emily Mortimer, Patricia Clarkson, Bill Nighy, James Lance, Honor Kneafsey.  113 min.



“A Livraria” é um filme espanhol, dirigido pela cineasta catalã Isabel Coixet.  Mas a verdade é que não poderia ser mais inglês.  A trama é uma adaptação do romance homônimo, de Penelope Fitzgerald, e se passa na pequena cidade litorânea inglesa de Hardborough, em 1959.  O filme nos transporta ao pequeno mundo daquela localidade, com seus hábitos, costumes, valores provincianos, vestimentas e modo de falar e se comportar com precisão, direção de arte impecável, ótima reconstituição de época.  É um charme só.  Pelo menos, na aparência. 

Na realidade, a tal localidade é marcada por um conformismo, uma acomodação e um conservadorismo nada charmosos.  Vigoram por aqui a ignorância, a inveja e a falsa moral.  Que é o que a personagem Florence Green (Emily Mortimer) vai sentir na pele, quando resolve encarar o seu grande sonho de montar uma livraria numa casa muito antiga da família, que lhe restou como herança.

Com espírito empreendedor, misturado a uma tenacidade e a uma alma sonhadora, Florence, contra tudo e contra todas as previsões, terá sucesso nessa empreitada maluca.  Aí terá de lidar com a hostilidade da mediocridade, a inveja dos acomodados e a sordidez humana que se escondem debaixo das aparências charmosas.  Por fora, bela viola, por dentro, pão bolorento, já diz o ditado.  O pior é que tudo se dá com base em argumentos ridículos e mesquinhos, mas em nome da arte.  E das verdades inventadas pela fofoca e pela maldade que ela distila.




A diretora Isabel Coixet conta que se identificou muito com a personagem Florence do romance, com seu espírito livre, capaz de transformações.  De fato, ela levanta a poeira daquela comunidade sonolenta, que se transfigura em hostilidade.  Mas  também encontra quem já amava a boa literatura, escondido no seu canto, o sr. Brundisk (Bill Nighy), a menina que a ajudará com dedicação e os que descobrem a maravilha da leitura, com trabalhos provocantes, como o de Nabokov, em Lolita, ou Ray Bradbury, em Farenheit 451.  E ela segue em frente, seguirá sempre, em busca de seus sonhos, suas utopias, que podem se resumir a ideias ingênuas e bem intencionadas.  Mas que incomodam da mesma maneira os de alma pequena, onde nada vale a pena, invertendo Fernando Pessoa.

A narrativa de “A Livraria” não resiste ao realismo, é fabular.  Florence é uma espécie de fada que encontra sua alma gêmea e combate a bruxa: a sra. Gamart (Patricia Clarkson), que personifica a mediocridade maldosa da comunidade.  O bem pode estar nos livros e o mal, na inveja e na burocracia, por exemplo.  É um bom modo de apontar para a hipocrisia do mundo.  Potencializada pelos pequenos e encantadores povoados ingleses, que se materializam no trabalho cinematográfico de uma cineasta talentosa de Barcelona, que mereceu o prêmio Goya de melhor filme, o Oscar espanhol, com “A Livraria”.



segunda-feira, 19 de março de 2018

EM PEDAÇOS


Antonio Carlos Egypto





EM PEDAÇOS (Aus Dem Nichts).  Alemanha, 2017.  Direção e roteiro: Fatih Akin.  Com Diane Kruger, Numan Acar, Ulrich Tukur.  106 min.


Um thriller assustador, provocador, que faz pensar... e muito.  “Em Pedaços”, trabalho do cineasta alemão de ascendência turca Fatih Akin, mexe fundo na ferida do preconceito, no papel da justiça, na violência que gera mais violência, no dilema moral que se apresenta em situações desesperadoras.

Muito bem realizado, com um diretor que não só sabe filmar bem, mas sabe o que quer e que debates impulsionar.  Foi reconhecido pelo Globo de Ouro e pelo Critics’ Choice Awards como o melhor filme estrangeiro do ano e Diane Kruger foi premiada como atriz em Cannes.  Foi, ainda, o indicado pela Alemanha para entrar na corrida do Oscar, mas ficou de fora da lista final.

A personagem Katja, em brilhante desempenho de Diane Kruger, vê o mundo desabar aos seus olhos quando concretiza que perdeu tudo o que dava sentido à sua existência.  Alemã, casada com um turco e com um filho de 7 anos que adorava, vê a vida deles ceifada por uma bomba, colocada no escritório do marido no dia em que o menino foi lá com o pai.





A morte brutal ela saberá que não veio de nenhum muçulmano radical, como se pretendia, não tinha a ver com imigrantes ou com bandidos vindos de fora.  Era um produto genuinamente alemão, tão loiro quanto ela: um grupo de neonazistas.  Envolvia até uma bela jovem alemã, que ela havia visto estacionar sua bicicleta no local do escritório.

Como Katja lidará com essa situação demolidora é o que o filme desenvolverá, numa narrativa pra lá de envolvente e que mantém o suspense até o final.  Provoca reações na plateia, que convidam a uma conversa daquelas de pensar na vida, nas sociedades do mundo atual, nos rumos da própria humanidade, nas nossas escolhas e nos nossos destinos.  Nas contingências da existência, enfim.

O fato de abordar crimes praticados por neonazistas é muito oportuno, num momento em que o mundo parece fazer uma inflexão pela extrema direita e as diversas expressões do fascismo têm sobressaído de onde menos se esperava.  Se muitos países enveredarem por esse caminho, a intolerância e as guerras, com certeza, recrudescerão.  Tomara que seja só um pesadelo passageiro.  Continuo querendo acreditar que a humanidade ainda tem jeito.  Nem que seja ocupando o espaço e encontrando a Terra 2, como indicava o gênio de Stephen Hawking que, infelizmente, acabou nos deixando, mas após ter cumprido uma fantástica missão na terra.


           

quarta-feira, 14 de março de 2018

DAPHNE


Antonio Carlos Egypto





DAPHNE (Daphne).  Reino Unido, 2017.  Direção: Peter Mackie Burns.  Com Emily Beecham, Geraldine James, Tom Vaughan-Lawlor, Nathaniel Martello- White.  88 min.



Daphne é uma mulher jovem, que chega aos 30 anos de idade bastante perdida, com relação a si mesma e ao mundo.  Apesar de viver em Londres, uma cidade cheia de opções e possibilidades, sua vida é medíocre, de uma mesmice sem fim.  Não tem planos claros de vida ou de carreira e a experiência amorosa inexiste.  Resume-se a noitadas regadas a álcool, cocaína e outras drogas e sexo casual, sem compromissos.  Um quadro de desencontros e alienação.

Apesar de tudo, ou talvez por isso mesmo, a personagem Daphne, encarnada com brilho pela atriz Emily Beecham, é muito interessante e envolvente.  Estar desconectada de si e dos outros nos deixa numa espécie de suspense por algo que pode surgir e como ela lidará com a nova situação.

Quando a novidade aparece, a sensação do espectador é de frustração, já que Daphne é obrigada a se envolver num assalto que presenciou e em que alguém atirou, ferindo outro, mas ela não se compromete, nem demonstra intensidade de sentimentos.  Tenta passar ao largo, mais uma vez.  O registro do incidente, porém, trará resultados.




Do nada, o serviço de saúde liga para o celular de Daphne, oferecendo psicoterapia para que ela possa lidar com a situação supostamente traumática.  Ela, a princípio, nem quer saber do que se trata, depois, rejeita.  Mas acaba aparecendo, mostra resistência ao tratamento e tudo o mais que se pode esperar desse tipo de personagem.  No entanto, a verdade é que uma porta se abre e, mesmo a contragosto, pode se constituir numa saída para o impasse que era a sua vida.

O que me parece importante ressaltar aqui é o  quão valioso é um atendimento coletivo de saúde de qualidade.  Proporcionado e, mais ainda, oferecido, até com insistência, a uma população que, de outro modo, não teria acesso a isso.  Com as condições econômicas precárias da personagem e sem dar valor nem desconfiar do que poderia lhe trazer de benefícios, ela jamais buscaria esse tipo de ajuda, ou gastaria algum dinheiro nisso.  Repetiria a busca pela via da droga, gastando seu dinheiro lá, ou numa opção religiosa fundamentalista, talvez.  Reencenaria o círculo vicioso em que sempre esteve.

O filme do diretor escocês, estreante em longa-metragem, Peter Mackie Burns, escrito por Nico Mensinga, trabalha bem, com uma personagem sem clichês ou estereótipos, que tem complexidade e vai além das aparências.  Põe em evidência a realidade psíquica de uma camada feminina da juventude.

Espera aí.  Mas são dois homens falando pelas mulheres?  Pode isso?  Eu acho que pode, sim.  A ideia de que só quem vive o problema de dentro seja capaz de entendê-lo é falsa.  São ricos os diversos pontos de vista que podem oferecer-se para se compreender um determinado problema ou camada da realidade.  Não se trata de falar por, sem dar espaço privilegiado aos maiores interessados por estarem dentro da situação, no caso, as mulheres jovens, de classe média das grandes cidades, por exemplo.  Mas de oferecer uma visão complementar, alternativa.  Bom trabalho o desses homens que se propuseram a prescrutar o universo feminino, no filme “Daphne”.



sábado, 10 de março de 2018

UMA MULHER FANTÁSTICA



Antonio Carlos Egypto




UMA MULHER FANTÁSTICA (Una Mujer Fantástica).  Chile, 2017.  Direção: Sebástian Lelio.  Com Daniela Vega, Francisco Reyes, Luís Gnecco, Aline Kuppenheim.  104 min.


O filme chileno “Uma Mulher Fantástica”, dirigido por Sebástian Lelio, que também fez o ótimo “Glória”, de 2013, foi o grande vencedor da disputa pelo Oscar de filme estrangeiro, agora em 2018.  O filme já havia acumulado prêmios importantes, no Festival de Berlim, entre eles, o Urso de Prata de melhor roteiro, depois de haver sido indicado ao Globo de Ouro.

A conquista do Oscar de filme estrangeiro, no entanto, abre muitas portas no mercado  exibidor mundial, o que permite supor que o filme já está sendo visto por um público bem amplo.  No Brasil, voltou aos cinemas, já saiu em DVD, certamente estará em streaming.  Isso é muito importante para o cinema chileno e para a temática que o filme aborda, a transexualidade.




A trama, centrada na garçonete transexual que perde abruptamente seu parceiro de vida e passa a enfrentar um inferno junto à família do morto, às leis e às autoridades, pelo simples fato de ser transexual, é muito competente.  Mostra uma realidade que é negada e incomoda a sociedade, ou boa parte dela.  Abre perspectivas para que o assunto seja encarado como deve: revendo-se as leis que, por tabu e omissão, produzem fortes sofrimentos e injustiças flagrantes.

A premiação do filme já está impulsionando a revisão da legislação chilena, com o apoio de Michelle Bachelet, que pode bancar esse avanço, embora esteja de saída do governo.  Parece que ainda dá tempo.  E, com a exposição mundial do Oscar, outros estímulos mundo afora para a revisão da legislação podem aflorar.  No Brasil, a questão da transexualidade está sendo progressivamente melhor compreendida e alguns avanços acontecem.  Em que pese esta insuportável onda conservadora que, frequentemente, se expressa num festival de ignorância e grosseria.

“Uma Mulher Fantástica” expõe de forma dramática a questão central do problema, com realismo, mas também de forma alegórica.  Algumas das melhores sequências do filme estão no registro alegórico.  O que o torna mais belo esteticamente e mais eficiente, na batalha que trava pela cidadania e direitos dos transexuais.




A atriz Daniela Vega, que é transexual, é o grande destaque do filme, com uma atuação firme, cheia de emoção contida, e mostrando, com toda a clareza na expressão, quanto custa engolir sapos.  E o sofrimento pesado que está por trás do preconceito e da intolerância.  Além disso, exibe seu talento como cantora lírica.

Foi uma bela vitória, também, para o cinema que se faz na América do Sul.  Afinal, os concorrentes russo (“Sem Amor”), sueco (“The Square – A Arte da Discórdia”), e húngaro (“Corpo e Alma”) são filmes de alta categoria.  O libanês (“O Insulto”) agradou muita gente, alcançou inegável êxito.  Quando os concorrentes são desse quilate, o prêmio tem um sabor ainda mais intenso.





Já que estamos falando de Oscar, a cerimônia deste ano revelou uma Academia aberta à diversidade, em todos os sentidos.  Grande espaço para as mulheres, negros, diversidade sexual, étnica e cultural, expressão de nacionalidades e destaque para personagens portadores de deficiência.  Parece que as pauladas que tem levado nos últimos anos e medidas práticas adotadas surtiram efeito.  Até a cerimônia em si foi mais discreta e respeitosa do que de costume.  A expressão política se deu de forma mais moderada, menos histriônica.  O que também é um bom sinal.

Os prêmios se dividiram entre vários filmes e, embora “A Forma da Água” tenha levado o melhor filme e diretor, Guillermo del Toro, não foi uma supremacia tão grande quanto a que já aconteceu em outras oportunidades.  Foi um Oscar equilibrado o de 2018.





quarta-feira, 7 de março de 2018

TORQUATO NETO - TODAS AS HORAS DO FIM


Antonio Carlos Egypto




TORQUATO NETO – TODAS AS HORAS DO FIM.  Brasil, 2017.  Direção: Eduardo Ades e Marcus Fernando. Voz de Jesuíta Barbosa.  Documentário.  88 min.



A escolha do personagem Torquato Neto para o documentário de Eduardo Ades e Marcus Fernando não poderia ser mais feliz.  O poeta, que viveu pouco, mas teve intensa e profunda atuação cultural, estava mesmo precisando ser lembrado e resgatado em sua obra, que envolvia música, como letrista, cinema, como criador e intérprete, jornalismo, com seus textos e poemas, e a produção cultural, de modo geral.  Isso foi feito.

O filme resgata a poesia e a prosa de Torquato Neto, na voz de Jesuíta Barbosa, e compreende a sua atuação por meio de muitos depoimentos e trechos de filmes em que ele participou, com o personagem Nosferato do Brasil, sendo dirigido por Ivan Cardoso, e muitos exemplares do cinema marginal, com quem ele interagia, e do cinema novo.




Sua vida cultural envolveu trabalhos com Edu Lobo, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Jards Macalé, Wally Salomão, Hélio Oiticica, e muitos outros que compunham com ele a geleia geral brasileira do período em que ele viveu, entre 1944 e 1972. 

Esse piauiense tão talentoso, inovador e provocador, suicidou-se aos 28 anos de idade e falar da sua vida é, inevitavelmente, falar dessa escolha, que sempre o acompanhou como ideia e que ele acabou por concretizar.  Não há respostas, há tentativas de aproximação e entendimento.  O que importa hoje é a obra que ficou, que é muito relevante e merece ser revisitada.

Não faltam elementos, informações, referências visuais ao documentário “Torquato Neto – Todas as horas do fim”, mas ele seria mais interessante se tivesse se preocupado um pouquinho mais em ser didático, o que costuma ser mal visto pelos documentaristas atuais, mas que faz falta, muitas vezes.  E não é nenhum pecado mortal, convenhamos.






As falas, os depoimentos, são ouvidos quase o tempo todo, enquanto as imagens mostram filmes e fotos.  Algumas vezes, aparece o nome da pessoa que fala, outras, não.  Quem não identificar o tom de voz, fica sem saber quem está falando.  Caetano, Gil, Tom Zé, têm timbres bem conhecidos e divulgados, outros, nem tanto.  É possível dizer que o importante é o que se diz, não quem disse.  Mas, sem dúvida, o espectador quer saber e tem esse direito.

Outro aspecto que me incomodou foi a ausência de Edu Lobo, no filme.  A música de Torquato Neto que mais se ouve ainda hoje é “Pra Dizer Adeus”, parceria com Edu, tocada duas vezes no filme.  Porém, a única referência a Edu Lobo na vida de Torquato é uma foto, junto com outras pessoas, e o crédito na música citada, ao final.  Enquanto isso, Caetano e Gil aparecem prodigamente no filme.  Nada contra.  Mas há um descompasso que poderia ter sido pelo menos compensado por alguma citação, se é que Edu não pôde ou não quis dar depoimento para o filme.  Ficou faltando a sua presença, que certamente é menos provocadora, mas não menos importante.

O tropicalismo, movimento que Torquato Neto ajudou a criar e militou culturalmente, tem grande destaque no documentário e as imagens dele, no papel de vampiro, perpassam todo o filme.  As palavras que ele manejava como poucos inundam a tela.  Um resgate bonito e necessário.



sábado, 3 de março de 2018

CARTAS PARA UM LADRÃO DE LIVROS



Antonio Carlos Egypto





CARTAS PARA UM LADRÃO DE LIVROS.  Brasil, 2017.  Direção: Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros.  Documentário.  96 min.



O cidadão Laéssio Rodrigues de Oliveira, considerado o principal ladrão de obras raras no Brasil, é o foco do documentário “Cartas Para um Ladrão de Livros”, de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros.

Os feitos desse ladrão, que começou roubando revistas antigas com Carmen Miranda na capa e objetos relacionados à antiga cantora, a quem ele adorava, chegaram a atingir dimensões impressionantes.  Ele praticou furtos em bibliotecas públicas de, pelo menos, cinco estados brasileiros, incluindo fotos da corte brasileira, mapas antigos feitos a mão, gravuras de artistas europeus icônicos, como Rugendas, e todo tipo de livro valioso e raro, ou de partes extraídas deles.




Antes de mais nada, isso revela que o então estudante de biblioteconomia Laéssio era um cara bem informado, culto, que sabia o valor das coisas e também encontrou um meio de vendê-las a pessoas muito ricas que topavam pagar fortunas por esses roubos.  Certamente, sabendo que seriam produto de roubo tais preciosidades.

Como sempre acontece no nosso país, o ladrão está preso e já havia cumprido dez anos de detenção, anteriormente.  Os muito ricos são desconhecidos e usam de seus poderes para permanecerem à sombra, sem qualquer consequência.  Alguns, que teriam sido citados em depoimentos, utilizaram seus meios de pressão para que permanecessem desconhecidos e não pudessem ser investigados.  Muito menos, punidos.

Para além da audácia do ladrão sofisticado e de seu público comprador, há a questão da preservação da memória e do patrimônio nacional.  É inacreditável a facilidade com que ele atuou nas bibliotecas e museus, sem que ninguém se desse conta do que estava acontecendo, sem registros filmados, sem controle de acervo periódico.  Só quando, finalmente, ele foi indiciado e condenado é que alguns logradouros culturais se deram conta do desaparecimento das obras, ou de parte delas.  Inacreditável!




O filme foca nos depoimentos de Laéssio, de quem com ele conviveu ou dele foi furtado, além dos agentes públicos e policiais que o investigaram.  Destaca, também, a correspondência do ladrão com os diretores do filme, nos períodos em que ele esteve preso.  E, ainda, as cartas que ele trocou com um rapaz, seu amante, que acabou sendo também envolvido na questão dos roubos.

“Cartas Para um Ladrão de Livros” ajuda-nos a refletir sobre diversas questões ligadas à nossa educação e cultura, nossos valores e flagrantes desigualdades, a partir da figura retratada no documentário.  Entre as pérolas de Laéssio, está algo assim: Não sei o que é melhor, estar livre pobre ou estar preso rico.