domingo, 30 de outubro de 2016

O CINEMA COMO FOCO EM FILMES DA 40a MOSTRA

       
Antonio Carlos Egypto


Cinéfilos costumam gostar de filmes que falam de cinema.  Na 40ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, encontramos alguns exemplos.

BENCH CINEMA, de Mohammad Rahmanian, do Irã, apresenta um personagem improvável, que decora filmes inteiros para apresentá-los ao público, como teatro, tendo em vista restrições e censura na circulação de produtos audiovisuais, como os VHS, no Irã dos aiatolás. E, com isso, homenageia grandes clássicos e sucessos do cinema comercial. É divertido, dá bem para curtir, embora o recurso canse, ao longo do tempo.


MIFUNE:O ÚLTIMO SAMURAI

Linda homenagem faz Steven Okazaki, do Japão, àquele que pode ser considerado um dos maiores e mais talentosos atores do cinema japonês e mundial: Toshiro Mifune (1920-1997).  Quem aprecia a obra de Akira Kurosawa (1910-1998), o diretor com quem o ator mais trabalhou, vai relembrar cenas antológicas de filmes, como “Rashomon”, “Yojimbo”, “Os Sete Samurais”, “Trono Manchado de Sangue”, entre muitos outros. MIFUNE: O ÚLTIMO SAMURAI  também aborda outros aspectos da vida do ator, como a sua paixão por carros e bebida, às vezes simultânea, o que é problemático.


PITANGA

Outra bela homenagem prestam Beto Brant e Camila Pitanga ao nosso grande ator Antonio Pitanga, de uma vasta contribuição ao cinema brasileiro, em obras de grande porte e importância, duas delas exibidas nessa Mostra, “A Grande Cidade”, de Cacá Diegues, e “Barravento”, de Glauber Rocha.  O documentário PITANGA revela as características de uma personalidade forte, mas sedutora, firme, mas negociadora, e, sobretudo, de um bom humor contagiante.  Aliás, eu nunca ri tanto assistindo a um documentário como aconteceu com PITANGA.  Parecia uma comédia.

Relembrar o grande Abbas Kiarostami (1940-2016) foi o mérito do documentário 76 MINUTOS E 15 SEGUNDOS COM KIAROSTAMI, resgatando gravações feitas com o cineasta iraniano fotogrando, filmando, escrevendo e convivendo com pessoas no trabalho.  Quem gosta de cinema e sente a perda de sua arte inovadora vai apreciar o esforço de compilação de imagens de Seifollah Samadian, amigo e colaborador do cineasta, para nos trazer Kiarostami de volta à telona.  Oportuno e emocionante.


76 MIN.E 15 SEG. COM KIAROSTAMI

O CINEMA, MANOEL DE OLIVEIRA E EU, do português João Botelho, conterrâneo e contemporâneo do mestre Oliveira, com quem conviveu, é um prato cheio, em especial para os cinéfilos da Mostra, que já conhecem o diretor João Botelho (de “Os Maias – Cenas da Vida Romântica”, de 2014, por exemplo) e acompanharam a trajetória de Manoel de Oliveira (1908-2015), ao longo de muitos anos, vendo seus filmes sendo lançados aqui .  Ainda não vi o filme, mas já tirei ingresso para vê-lo.  Não iria perdê-lo por nada.



quarta-feira, 26 de outubro de 2016

ANIMAIS NOTURNOS

Antonio Carlos Egypto




ANIMAIS NOTURNOS (Nocturnal Animals).  Estados Unidos, 2016.  Direção e roteiro: Tom Ford.  Com Amy Adams, Jake Gyllenhaal, Michael Shannon, Aaron Taylor-Johnson, Isla Fisher.  115 min.



O filme “Animais Noturnos” focaliza a personagem Susan (Amy Adams), sua galeria de arte e seu marido, com quem visivelmente ela mantém um relacionamento distante e conturbado.  Pouco afeto e pouco interesse em investir na relação parecem existir ali.  Ela tenta algo, mas não encontra ressonância nele que, uma vez mais, parte para uma viagem.

Enquanto isso, Susan recebe de seu ex-marido Edward (Jake Gyllenhaal) os originais de um romance chamado Animais Noturnos, dedicado a ela. Ele costumava chamá-la assim. O romance será lido por ela e visto pelos espectadores em partes, progressivamente, como um livro é lido.

 O texto que Susan lê vai se tornando incômodo, por muitas razões.  Primeiro, porque se revelará um thriller violento, que se agrava aos poucos.  Segundo, porque parece uma confissão em primeira pessoa que desmerece o narrador.  Terceiro, porque parece se constituir numa vingança em relação a ela.  E vai evoluindo para uma atmosfera aterradora.





Por um lado, ela vai sendo atraída pelo livro, por outro, o contesta e rechaça.  Interrompe a leitura, mas sempre voltará a ela.  Nos intervalos da leitura, acompanhamos o que ela faz e o encontro que se dará com o próprio autor da obra, seu ex-marido.  Eles se relacionam em meio à fruição da obra literária, que mexe tanto com ela e parece ter sido feita para contar algo importante, que pode mudar muita coisa.  Com que função?  Para alcançar o quê, a essa altura, depois de muitos anos de distanciamento?

A narrativa de “Animais Noturnos” inova num jogo de ficção e realidade, presente e passado, passado que volta a ser presente, lembranças incômodas e fantasia e, afinal, amor e ódio.  Desta forma, se constrói como um thriller forte e empolgante, cheio de subentendidos, mistérios e motivações simbólicas.

Os personagens soam autênticos, mostram as fraquezas humanas, a busca por modificar a percepção do outro, escancaram frustrações e todo tipo de fragilidade, incluindo as doenças do corpo.




O elenco que dá vida a esses personagens complexos e realistas é muito bom e nos apresenta desempenhos muito convincentes.  O principal destaque é, naturalmente, Amy Adams, já que é Susan que conduz a trama.  Ao mesmo tempo, a narrativa “ficcional” do romance é que dá o tom do espetáculo e aí o grande condutor é Jake Gyllenhaal, o escritor e personagem do livro.

Tom Ford, o diretor e também renomado estilista, reafirma o seu talento neste seu segundo filme.  O primeiro, “Direito de Amar”, de 2011, já havia se constituído numa bela surpresa na apresentação de conflitos e relacionamentos amorosos que podem produzir tragédias.  Em “Animais Noturnos”, ele mantém essa linha, trabalhando no gênero suspense de forma bem envolvente.

O filme integra a programação da 40ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, como um de seus destaques.  Chegará mais tarde ao circuito comercial dos cinemas.




sábado, 22 de outubro de 2016

MAIS DICAS DA 40a MOSTRA


Antonio Carlos Egypto


Vou comentar aqui mais alguns filmes que estão sendo exibidos na 40ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

NUNCA VAS A ESTAR SOLO, o filme chileno de Alex Anwandter, aborda a questão da homofobia, não só pelo lado da dor, dos sentimentos e das relações familiares, mas também pelo lado pragmático, o do custo dos atendimentos hospitalares e dos planos de saúde, a questão da legislação e da atuação policial.  Ou seja, dos óbices à garantia de direitos e suas consequências.  Boa realização.

SEM DEUS, filme da Bulgária, dirigido por Ralitza Petrova, trabalha com a personagem Gana, cuidadora de idosos.  Mas, ao mesmo tempo, ela é dada a ilegalidades, falcatruas, maldades, e tudo parece ficar por isso mesmo.  Algo vai mudar, mas nada fica muito claro e o filme navega em emoções opacas e falta de ritmo.


EL OLIVO


O espanhol EL OLIVO, da diretora Iciar Bollain, se utiliza de uma narrativa clássica para contar uma boa história, que une uma oliveira de 2000 anos, um avô, uma neta e uma empresa que adotará a árvore como logotipo, de uma hipócrita sustentabilidade. A jovem  Alma é uma personagem forte, marcante. Vale o filme. Que tem, ainda, lindas paisagens de olivais.

EXERCÍCIOS DE MEMÓRIA, do Paraguai, é um documentário que conta uma história trágica com imagens plácidas. O desaparecido político Agustín Boigurú, médico e maior adversário político do ditador Alfredo Stroessner, é lembrado por seus 3 filhos, crianças na época do desaparecimento. Imagens de uma casa abandonada ás pressas, rio e floresta, além de fotos antigas muito bem trabalhadas visualmente, ilustram o  que se verbaliza. Dirigido pela cineasta que fez HAMACA PARAGUAYA, Paz Encina.


INTERRUPÇÃO


O filme grego INTERRUPÇÃO, um tanto intelectualizado, vai para um terreno experimental. Como se pode interagir com os mitos e alterar o rumo das decisões para o nossa realidade? Como o teatro pode incorporar a plateia na encenação e nas decisões? Se ela entra na peça o que é real e o que não? Qual é o papel do coro e o que ele representa hoje? O mito de Orestes, que matou a própria mãe, é o mote da encenação. Uma ambivalência constante toma conta da narrativa. Primeiro longa de Yorgos Zois. Se fosse um pouco menos pretensioso poderia funcionar melhor.

A GAROTA DESCONHECIDA, dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, mais uma vez põe em evidência um dilema moral. Desta vez o de uma médica que não atende a campainha após o expediente e fica sabendo que a pessoa que procurou o consultório morreu. A partir daí o filme vai pouco a pouco moldando as ações movidas pela culpa. É um belo trabalho, mas tem problemas com a verossimilhança e com a solução do caso, que acontece em desacordo com o clima do filme.


A GAROTA DESCONHECIDA


Quem puder ver ou rever O QUARTO HOMEM, de Paul Verhoeven, produzido na Holanda em 1983, vai constatar que o filme continua ótimo e atual. Só que hoje não escandaliza tanto quanto na época de seu lançamento. Está sendo apresentado em película, o que atualmente também é raro.

  

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

BELOS SONHOS

  
Antonio Carlos Egypto




BELOS SONHOS (Fai Bei Sogni).  Itália, 2016.  Direção: Marco Bellocchio.  Com Valerio Mastrandrea, Bérénice Bejo, Guido Caprino, Nicolò Cabras, Emmanuelle Devos.  134 min.



Filme de abertura da 40ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, “Belos Sonhos”, de Marco Bellocchio, é um trabalho forte, intenso e honesto.  É baseado no romance autobiográfico do jornalista e dirigente do jornal La Stampa, Massimo Gramelline. 

A trama começa por nos mostrar o trauma original da vida do menino Massimo: a perda, aos 9 anos de idade, de forma súbita, da mãe tão amada e tão próxima.  Companheira de brincadeiras, dança e medo diante dos filmes de terror clássicos, figura jovem e cheia de energia.




Essa morte se torna misteriosa para ele, que se recusa a aceitá-la.  Chega o período da adolescência e Massimo ainda sente de forma dolorida aquela perda tão absurda e incompreensível.  Só na vida adulta, trinta anos depois, é que o jornalista Massimo resolve ir a fundo para tentar entender o que se passou.  O filme trabalha alternadamente nos três tempos da história do personagem, enfatizando o menino que vive no coração do adulto.

O drama de uma vida, uma história marcante, que assume dimensões trágicas, mesmo na aparente placidez da vida de classe média e do convívio com gente abastada.  Um trauma que rege uma existência, mesmo diante do reconhecimento e do sucesso profissional.  Sucesso que se potencializa quando uma carta de resposta a um leitor expõe os sentimentos do escriba com franqueza.




Tudo que é vivido, lembrado, reconstituído, passa pelo crivo não só da memória seletiva, que nos protege dos sentimentos ou desejos sombrios ou degradantes, mas também da torrente de emoções do momento que provoca o abalo.  Às vezes, como no caso de Massimo, são necessários trinta anos para que se possa encarar os fatos.  Eu diria, até, conhecê-los pela primeira vez.  De que outra forma podemos preservar nossos belos sonhos?  Bellocchio encontrou o clima certo para nos provocar e nos fazer olhar para a história desse personagem com mais profundidade e humanidade.  O que poderia se converter num dramalhão lacrimoso resulta num drama psicológico denso e consistente, nas mãos desse cineasta que extrai de seu elenco desempenhos que trazem à tona os sentimentos e sofrimentos mais fortes, sempre num tom contido.  Às vezes, preso, sufocado. 

Esse mais recente trabalho de Marco Bellocchio está na 40ª. Mostra, ao lado de outros 11 títulos do diretor e da presença dele em São Paulo.  Um dos grandes cineastas da atualidade e um digno representante do melhor cinema italiano, especialmente o político.


Marco Bellocchio

Bellocchio merece toda a atenção dos cinéfilos e só se tem a ganhar com a revisão de alguns de seus grandes trabalhos, como “Bom-Dia, Noite”, de 2003, ou “Vincere”, de 2009, por exemplo.  O cartaz que ele fez para a Mostra é um dos mais bonitos da série histórica de cartazes concebidos pelos cineastas que aportaram por aqui no evento. 


Quem não conseguir assistir a “Belos Sonhos” durante a Mostra, poderá fazê-lo no circuito comercial, no final de dezembro, às vésperas do Ano Novo, quando o filme está previsto para estrear.  Mas aproveite a oportunidade da 40ª. Mostra para ver outros filmes de Marco Bellocchio.  Vale muito a pena conhecer ou revisar essa obra.



sábado, 15 de outubro de 2016

DICAS DE FILMES DA 40a. MOSTRA


Antonio Carlos Egypto


Quem pretende acompanhar a 40ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo terá de fazer uma programação do que mais lhe interessa ver, em dias, horários e salas de cinema mais acessíveis.  A dificuldade é grande, porque a oferta é enorme: 322 filmes em inúmeros cinemas.  Nesse sentido, alguma indicação inicial pode ser útil, mesmo sabendo que escolhas aleatórias também possam se revelar muito interessantes, embora envolvam riscos.  Dos filmes que já pude ver da Mostra, aí vão algumas dicas.

O REI DOS BELGAS – um filme sobre a concepção de um documentário, que vai se desenrolando à nossa frente, partindo de um registro “chapa branca” da viagem do rei belga à Turquia, que se transforma numa odisseia.  Nela, o monarca se descobrirá e ao seu mundo próximo.  Em tom leve, de comédia, com ótimos diálogos e uma trama inteligente, o filme do diretor belga Peter Brosens é um belo trabalho.


O REI DOS BELGAS


EU, OLGA HEPNAROVÁ – o filme tcheco, dirigido por Petr Kazda e Tomás Weinreb,  nos envolve no mundo interno de uma jovem antissocial, agressiva, com comportamento paranóico, que aprofunda suas incapacidades de se conectar com as outras pessoas e se integrar à sociedade, ao não encontrar apoio ou estímulo para isso.  Belas sequências, fotografia em preto e branco, enquadramentos e ângulos de filmagem caprichados, em ambientes esfumaçados pelos cigarros, denotam a bruma em que está envolvido o tema.

ELLE – novo filme do diretor Paul Verhoeven, de quem a Mostra também reexibe “O Quarto Homem”, que vale a pena ver ou rever.  Em ELLE, o que está em jogo é uma sexualidade violenta e complexa. Há muitas surpresas e uma estrutura bem montada de suspense.  E ainda tem Isabelle Huppert como protagonista.

O filme francês O IGNORANTE, de Paul Vecchiali, trata da complexa questão afetiva que envolve pai e filho, as mulheres à volta do pai, uma obsessão, desejos incompreendidos, incapacidade de se colocar no lugar do outro.  Um bom trabalho na temática psicológica das relações.

Da Colômbia vem um excelente filme, LA CIÉNAGA, ENTRE EL MAR Y LA TIERRA, sobre um rapaz acamado, que sofre de uma desordem neurológica, e das paupérrimas condições de vida que limitam suas possibilidades de acesso a um tratamento mais adequado.  Mas ele tem o afeto da mãe e de uma amiga de infância e uma história que envolve seu pai e o mar.  Narrativa forte e bem desenvolvida, que desemboca numa decisão polêmica.  Filme concebido por Manolo Cruz e dirigido por Carlos Del Castillo.


LA CIÉNAGA


NASCIMIENTO, também da Colômbia, é um bom filme, mas de outro tipo, que pode agradar ou desagradar, dependendo do espectador.  Quem aprecia filmes contemplativos, rarefeitos, sem história, imersos numa bela natureza de rio e floresta, vai curtir.   O filme também mescla o documental e o encenado, tendo como centro a gravidez em estado avançado e o nascimento.  A direção é de Martin Mejía. 

Da Argentina, dois documentários que podem ser vistos com prazer.  O FUTURO PERFEITO, um doc. encenado, em que uma chinesa sem saber uma palavra do idioma vai viver na Argentina e constrói sua vida lá, a partir das palavras em espanhol que começa a aprender.  Chegará a vez do futuro perfeito?  Filme de Nele Wohlatz.  O outro é AS RUAS, que mostra numa pequena cidade da Patagônia um trabalho escolar, revelando a história, as peculiaridades e os personagens daquela aldeia.  E que acabará por nomear suas ruas, democraticamente, homenageando figuras da localidade. O processo de aprender a entrevistar, a construção da pesquisa, o papel da professora e o progresso dos alunos são o que mais interessa no filme.  Direção de María Aparicio.

Do Chile, vi um filme que não para em pé.  É fragmentação e cenas gratuitas, que não chegam a nada: AS PLANTAS.  Esse, claro, não recomendo.  Passe ao largo, não vai perder nada.

O filme estadounidense O PLANO DE MAGGIE,  de Rebecca Miller, interessa pelo modo como lida com a questão de controlar as coisas.  Quem faz planos detalhados, para si e para os outros, pode se complicar e quebrar a cara.  Afinal, nada costuma sair como o previsto.  Mas há quem não se emende e insista em novos planos e controles.


OS HEDONISTAS


Indico também dois importantes curta-metragens, trabalhos de dois grandes diretores: o iraniano Abbas Kiarostami, já falecido, fez ME LEVE PARA CASA, 16 min, e o chinês Jia Zhang-Ke, OS HEDONISTAS, 26 min. Procure incluí-los nos seus programas, se possível.  São, para dizer o mínimo, curiosos nas suas concepções: quem deve ser levada para casa é uma bola e a ironia dos hedonistas é um trabalho num parque de diversões surreal, que aparece como esperança derradeira a desempregados.
  


quarta-feira, 12 de outubro de 2016


40ª. MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO
20 de outubro a 02 de novembro de 2016
 
Antonio Carlos Egypto


O evento cinematográfico anual mais importante do país chega à sua 40ª. edição.  Incrível!  A Mostra Internacional de Cinema de São Paulo completa 40 anos.  E pensar que eu vi o evento nascer, modestamente, mas já chamando muita atenção pela ousadia, no MASP.  Ao longo de todos esses anos, a Mostra foi responsável por moldar meu gosto cinematográfico e me mostrar a relevância da diversidade do cinema que se produz em todos os cantos do mundo.  De onde menos se espera, podem vir arte e criatividade em abundância, novas tendências estéticas, novos questionamentos, muita informação e conhecimento.

Ao trazer para o Brasil os destaques dos festivais mundiais e, regularmente, produções de países muito diferentes dos que habitualmente chegam ao circuito comercial, a Mostra criou público e espaço para um tipo de cinema mais reflexivo e inovador e alternativas para escapar à mesmice.



Um pouco dessa história será revisitado na 40ª. Mostra que, por exemplo, reapresenta “O Decálogo”, de Krzysztof Kiéslowski, uma obra-prima inspirada nos dez mandamentos bíblicos, de 1988, que veio da Polônia.  O país, por sinal, é foco nessa edição, traz a homenagem ao grande diretor polonês Andrzej Wajda, que acabou de falecer, aos 90 anos.  Uma retrospectiva de sua obra poderá ser vista agora, incluindo os trabalhos “Walesa”, de 2013, e “Wróblewski segundo Wajda”, de 2015.  Mas vale a pena assistir novamente (ou pela primeira vez) a filmes como “Cinzas e Diamantes”, “Danton – O Processo da Revolução”, “Kanal”, “O Homem de Mármore”, “O Homem de Ferro” ou qualquer outro dos 17 títulos que serão exibidos.

Outra homenagem será ao cineasta norte-americano William Friedkin, de “Operação França”, “O Exorcista” e “Parceiros da Noite”, entre outros.

O nosso grande ator Antonio Pitanga é homenageado com o prêmio Leon Cakoff e a exibição de “Barravento”, de Glauber Rocha, “A Grande Cidade”, de Cacá Diegues, além, é claro, do documentário “Pitanga”, de Beto Brant e Camila Pitanga. Há a exposição “Por Trás da Máscara – 50 anos de Persona”, que é uma celebração do grande clássico de Ingmar Bergman.

Espera-se uma bela seleção latino-americana e a exibição de 60 títulos recentes da produção brasileira, além da habitual diversidade que inclui a grande maioria dos países europeus, asiáticos e norte-americanos.  Estão representados na Mostra 50 países. 

Grande destaque para o diretor italiano Marco Bellocchio, que traz a arte do cartaz da Mostra que, por sua vez, inspirou uma bela vinheta que antecederá as projeções dos filmes.  De Bellocchio, 12 títulos, que vão de “De Punhos Cerrados” a “Vincere” e “A Bela que Dorme”, passando por “Diabo no Corpo”, “Bom-Dia, Noite” e as novas produções “Sangue do Meu Sangue”, “Belos Sonhos” e o curta “Pagliacci”.

Teria muito mais a apontar, como as programações itinerantes, exibições no vão livre do MASP e com orquestra, no Auditório Ibirapuera, debates e masterclass.  Entrem no site www.mostra.org e vão se fartar de informações.  Mas quero lembrar que em 28 de outubro, uma sexta-feira, durante a Mostra, na Livraria Blooks, do Shopping Frei Caneca, ao lado dos cinemas, estaremos lançando, a partir das 19:00 h, o livro 100 MELHORES FILMES BRASILEIRIOS, da Abraccine, em parceria com Canal Brasil e Editora Letramento.  Nele, eu comento um desses 100 filmes, “Dona Flor e Seus Dois Maridos”.  Apareçam por lá.

A programação da 40ª. Mostra acontece em 42 salas de 35 locais de exibição, que vão do Auditório Ibirapuera ao circuito Spcine, que inclui 15 CEUs em diversas regiões da periferia de São Paulo.  E, evidentemente, todo o circuito em torno da avenida Paulista, com o Itaú Frei Caneca e Augusta, Cinearte, Cinesesc, Belas Artes, Reserva Cultural, Cinemark Cidade de São Paulo, Centro Cultural São Paulo, Itaú Cultural e MASP.  Tem também a Cinemateca Brasileira, o MIS e o Olido.  Serão exibidos 322 filmes. Quem puder ver 10% disso já está em grande lucro. Permanentes e pacotes de ingressos estarão à venda a partir de 15/10 no Conjunto Nacional da Paulista. Há sessões gratuitas em vários lugares.




segunda-feira, 10 de outubro de 2016

KÓBLIC


Antonio Carlos Egypto





KÓBLIC (Kóblic).  Argentina, 2015.  Direção: Sebastian Borensztein.  Com Ricardo Darín, Oscar Martinez, Irma Cuesta.  115 min.


Sebastian Borensztein, o diretor do muito competente e divertido “Um Conto Chinês”, agora nos leva ao terreno dramático da política, do suspense, da violência, dos westerns.  Uma vez mais, nos traz o grande ator do cinema argentino da atualidade, Ricardo Darín.  O filme é “Kóblic”, o sobrenome de um capitão das Forças Armadas em plena ditadura argentina, em 1977.

Tomas Kóblic (Ricardo Darín) é escalado para pilotar um dos terríveis voos da morte, que arremessavam ao mar os chamados “subversivos” ou inimigos do regime.  Lembram-se da Operação Condor, também no Brasil? 




A tarefa, muito difícil, e que abala a consciência de qualquer ser humano digno, não sai como devia e Kóblic é exortado a se esconder, numa espécie de exílio no próprio país, em uma localidade perdida no mapa, que não interessa a ninguém.

Esse lugar esquecido, porém, tem seus próprios esquemas de poder, ainda que longe de tudo e de todos.  O que alcançará o piloto militar e fará com que ele não possa ter sossego.  Por um lado, um policial que se considera dono do lugar, uma terra sem lei.  Por outro, um perigoso envolvimento romântico.  E o suspense se instala, em clima de western.  Outra forma de violência não tardará a se apresentar.  Não há espaço tranquilo para os que buscam esquecer um passado que teima em não se desfazer.




O contexto político realista dá lugar à dimensão mítica da violência que grassa perdida por este mundo de Deus.  A partir daí, predominam as referências ao próprio cinema e sua história.


O filme flui muito bem, envolve, emociona.  É um bom produto do gênero cinematográfico escolhido.  Só que terra sem lei leva, inevitavelmente, à justiça por conta própria, à vingança.  Esse é um elemento essencial e um complicador para a trama.  Afinal, o que é mesmo que a violência produz senão mais violência?  A dimensão política mais séria se perde, embora o entretenimento triunfe.


terça-feira, 4 de outubro de 2016

NO FIM DO TÚNEL


Antonio Carlos Egypto




NO FIM DO TÚNEL (Al Final del Túnel).  Argentina, 2015.  Direção e roteiro: Rodrigo Grande.  Com Leonardo Sbaraglia, Clara Lago, Pablo Echarri, Federico Luppi, Uma Salduende.  120 min.


O cinema argentino, já há algum tempo, mostra força e boa comunicação com o público brasileiro.  Tem uma produção diversificada, que vai do cinema de gênero a filmes-cabeça, com maiores pretensões artísticas e que visam a estimular a reflexão. Tem também comédias para consumo fácil.  Geralmente com tramas bem urdidas, reveladoras da qualidade dos roteiros, talvez o ponto forte do cinema dos hermanos.

“No Fim do Túnel” é um desses exemplos do bom cinema de gênero.  É um thriller que nos mantém em tensão permanente, nas suas duas horas de projeção. Mas não joga areia nos nossos olhos, não.  Mantém um clima de suspense constante, em função do que vai ou do que pode acontecer, mesmo nos instantes de calmaria aparente.  É um filme empolgante naquilo a que se propõe.

Os elementos que compõem a narrativa não chegam a ser originais.  Um quarto numa casa é alugado, enquanto um grupo de bandidos constrói um túnel para realizar um grande roubo no banco, passando por baixo da casa sem despertar suspeitas.  O morador e dono da casa é um cadeirante com uma vida solitária, porém, com talento especial para lidar com elementos tecnológicos, como aparelhos de som e equipamentos de escuta e gravação.  Condição necessária para que ele possa intervir no plano dos bandidos.




Sua condição de vida, porém, também é mexida pela personagem que aluga o tal quarto: uma mulher jovem, que trabalha como stripper, e sua filhinha, que aparentemente não consegue mais falar.  Os destinos que se cruzarão não serão apenas o do herói-cadeirante e o dos bandidos, mas o dele e o delas.  A trama se sofistica e produz um interesse extra.

A condição de herói-cadeirante que tem Joaquín (Leonardo Sbaraglia) mostra a ideia de que uma deficiência física não é capaz de limitar a ação inteligente, brilhante, de um personagem como ele.  E produz sequências de tirar o fôlego, visualmente requintadas, ao longo da trama.  Como é possível enfrentar as situações, movendo-se numa cadeira de rodas, até entrando, andando e saindo de um túnel em construção, por exemplo?  Com malfeitores ao lado e lutando contra o tempo.  Ufa!

Leonardo Sbaraglia, bastante conhecido por seu papel em “Relatos Selvagens”, está também em “O Silêncio do Céu”, em cartaz nos cinemas e objeto de postagem crítica recente no cinema com recheio.  A cada filme ele reafirma seu grande talento como ator.  Nesse, exigindo uma perícia em cenas com cadeira de rodas e sem poder movimentar as pernas, o que é notável.




Outro grande ator argentino, que é o veterano Federico Luppi, está em “No Fim do Túnel”, num papel menor, o de um policial que atua no mundo do crime (outra questão interessante de ser mostrada).  É sempre bom vê-lo em cena.

Clara Lago faz a stripper Berta, que convive com Joaquín na casa, e Pablo Echarri é o ladrão Galereto, que comanda a turma no túnel.  São muito bons seus trabalhos, assim como o da menina que faz Betty, Uma Salduende, com seu comportamento estranho e limitado em cena.


O jovem diretor Rodrigo Grande, que é também roteirista, faz um excelente trabalho, realizando um filme envolvente, tenso, instigante, e com uma trama recheada de elementos que acrescentam coisas importantes à história central e a tornam muito mais interessante, sem perder o foco.