terça-feira, 11 de março de 2025

VITÓRIA e SPECTATEURS!

         

 Antonio Carlos Egypto

 



VITÓRIA.  Brasil, 2024.  Direção: Andrucha Waddington.  Elenco: Fernanda Montenegro, Alan Rocha, Linn da Quebrada, Thawan Lucas, Laila Garon.  112 min.

 

“Vitória” trata de uma surpreendente história real, a de uma mulher idosa que, filmando da janela de seu apartamento em Copacabana, desafiou o crime organizado, revelando uma trama de traficantes e policiais corruptos.

 

As mudanças urbanas do Rio de Janeiro através dos tempos fizeram com que D. Nina, de seu pequeno apartamento, antes cercado do verde do morro, ficasse cara a cara com uma favela, de onde partiam tiros, brigas que terminavam em morte, crianças portando armas, consumo e venda de drogas a céu aberto.

 

Com muita coragem, determinação e de forma resiliente, Nina, que depois se chamaria Vitória, foi à luta e acabou por contar com o apoio de um jornalista, detonando uma investigação que levou muitos à prisão, mas colocou em risco a vida dos denunciantes.  Marcada de morte, ela teve de desaparecer por muitos anos, ostentando nova identidade, em um novo lugar.  Quem eram os personagens reais ficou em segredo, até que acontecesse a morte de Nina/Vitória, quando já estavam em andamento as filmagens deste longa-metragem.

 

O roteiro de Paula Fiúza se baseou no livro Dona Vitória da Paz, do jornalista Fábio Gusmão.  A trama do filme é muito bem construída, é uma história que prende a atenção o tempo todo, porque tem uma personagem fascinante e conta com o desempenho de ninguém menos do que Fernanda Montenegro, aos 95 anos.

 

Nenhum adjetivo que eu possa escolher para aderir a Fernanda Montenegro dá conta do que ela é.  Ela é o máximo!  Acho que basta isso para revelar que “Vitória” é ela, dominando a cena, do princípio ao fim do filme, tornando-o uma peça de rara beleza.  Sim, ela é a protagonista full time, não um pequeno papel ou participação especial.  Ela é a dona e razão de ser do filme.  O elenco que interage com ela está muito bem.  Alan Rocha em destaque no papel do jornalista, Linn da Quebrada como Bibiana, amiga e vizinha trans que a ajuda, Thawan Lucas, o menino Marcinho da favela, que carrega pacotes, ganha uns trocados, comida e o afeto dela, enquanto se insere no tráfico, consumindo drogas e portando armas.

 

O filme tem como um dos produtores Breno Silveira, que seria o diretor, mas faleceu de mal súbito no início das filmagens de “Vitória”, que acabou sendo dirigido, com muito talento, pelo genro de Fernanda, Andrucha Waddington.  Mais um belo produto do cinema brasileiro atual, que cresce a olhos vistos.

 

  


 

  

LOUCOS POR CINEMA! (Spectateurs!).  França, 2024.  Diretor: Arnaud Desplechin.  Elenco: Mathieu Amalric, Salif Cisse, Sam Chemoul, Sandra Laugier, Françoise Lebrun.  88 min.

 

Os cinéfilos, frequentadores habituais das salas de cinema, geralmente gostam de assistir a filmes que tratam de cinema. Por que a cinefilia é uma paixão, um encantamento com a magia da imagem em movimento projetada numa tela grande. “Loucos por Cinema!” é um desses filmes que celebram a sétima arte, do ponto de vista dos espectadores.

 

O que é essa paixão?  Como ela se estabelece?  O que é importante no ato de ver os filmes no cinema?  Qual o seu significado para os diferentes tipos de espectadores, com diversas inclinações e preferências?  O lugar na sala é muito importante?  Por quê?

 

Questões como essas vão aparecendo, enquanto um personagem, Paul Dedalus, espectador, avança na experiência de frequentar as salas de cinema, entender e se aprofundar na arte cinematográfica, ao longo do tempo e nas diferentes idades. Inspirado pela própria experiência do diretor Arnaud Desplechin enquanto espectador, ao menos como referência geral, não como paradigma.

 

A descoberta da sala de cinema, que sempre foi arrebatadora para as crianças, hoje é precedida pela oportunidade de ver filmes na TV, no computador, no celular.  Mesmo assim a experiência é outra, não se compara. É por aí que “Loucos pelo Cinema!” caminha, mencionando, citando filmes, comentando alguns, entrevistando espectadores. Abordando, inclusive, o hábito de ver cinema na TV.  Produz assim um híbrido de ficção e documentário.

 

No filme, quando o cinema se faz história e paixão, a coisa flui muito bem.   Quando focaliza alguns filmes como “Shoah”, de Claude Lanzmann, com suas 9 horas e meia de projeção, o interesse cai, a cena se dispersa, porque a sensação de compartilhamento é mais difícil, mais específica.  Particulariza-se o que deveria continuar amplo e geral, a meu ver.  O conjunto da obra, no entanto, se salva.  Claro, especialmente para os cinéfilos.  Que também vão gostar de ver Mathieu Amalric, ainda que num pequeno papel, como participação especial.




terça-feira, 4 de março de 2025

O OSCAR DO BRASIL

 Antonio Carlos Egypto




                                   

“AINDA ESTOU AQUI”, o filme de Walter Salles, faz história, quando conquista o primeiro Oscar para o cinema brasileiro, o de melhor filme internacional.  E o primeiro Oscar a gente nunca esquece, ou esquecerá.  Mais duas indicações ao Oscar: festejamos o de melhor atriz para Fernanda Torres e a inédita indicação entre os 10 melhores filmes do ano.  Antes disso, Fernanda Torres já tinha abocanhado o Globo de Ouro e o filme já teve cerca de 40 prêmios nos festivais mundo afora.  Lembrar que tudo começou no Festival de Veneza, uma consagração para o roteiro do filme e 10 minutos de aplausos efusivos (ou seriam 14 minutos, como diz a Fernandinha num comercial?).

 

Bem, o fato é que o filme encantou todo mundo, a começar pelo povo brasileiro, que se emocionou: riu, chorou, aplaudiu nas sessões de cinema, festejou nas ruas em pleno Carnaval e torceu pelo Oscar como se fosse uma final de Copa do Mundo disputada pelo Brasil.  O maior prêmio foi a afluência aos cinemas: mais de 5 milhões de pessoas viram o filme nas telonas, em todo o Brasil.  O sucesso de “Ainda Estou Aqui”, no entanto, é realmente amplo e internacional.  Já conquistou grandes plateias nas Américas e Europa, o reconhecimento da crítica e uma mensagem de liberdade e resiliência frente ao autoritarismo, representada pela figura de Eunice Paiva, símbolo da democracia, dos direitos humanos e da diversidade.

 

Um filme nunca é só um filme.  Ele reflete o seu tempo, reflete o momento, dialoga com a realidade, ainda que de modo fantástico.  Pode falar do passado, de um passado que não foi elaborado, superado.  De um passado que assombra e alimenta o presente.  De um passado que ameaça voltar, na forma de farsa ou não, mas ameaça.  De um passado tenebroso, que também se mostra no presente e precisa ser vencido.

 


“Ainda Estou Aqui” é uma pérola de concepção cinematográfica.  Exala verdade, sem se valer de artifícios, mostra o que foi, o que é, como lidar com a opressão, o desrespeito aos mais comezinhos valores civilizatórios.  Sequestro, prisão clandestina, tortura, morte, desaparecimento do corpo (ocultação de cadáver), ausência de informações, não-reconhecimento do assassinato por décadas, inviabilizando a existência civil do cidadão.  São tão graves esses crimes perpetrados pelo Estado durante a ditadura militar que um filme que trate disso pode se tornar algo intragável.  Absolutamente, não é o caso de “Ainda Estou Aqui”.  Pela via da pessoa de Eunice é a família que vive tudo isso no seu dia-a-dia, tentando sobreviver.  E com dignidade.

 

A tentativa de destruição de uma família e o modo como ela subsiste, ainda que perdendo seu vigor e alegria em algum nível, mas ainda assim sorrindo e acreditando que a vida vale a pena, é um trunfo narrativo do filme de Walter Salles, brilhantemente protagonizado por Fernanda Torres, Selton Mello e Fernanda Montenegro.  Um filme que, mesmo com essa temática triste, consegue ter luminosidade, amor, humor.  É mesmo um filme excepcional, que até já provocou mudanças na sociedade brasileira, na política e nas leis.  O país não será mais o mesmo depois desse filme emblemático e monumental em sua aparente simplicidade.  O cinema brasileiro deu um passo gigantesco para o seu reconhecimento internacional.  Que já está acontecendo, no Oscar ou fora dele.  Viva nosso cinema!