Antonio Carlos
Egypto
ELIS. Brasil, 2015.
Direção: Hugo Prata. Com Andréia Horta, Caco Ciocler, Gustavo Machado,
Lúcio Mauro Filho, Júlio Andrade, Zecarlos Machado. 115 min.
Elis Regina (1945-1982) foi a cantora mais perfeita
que eu já ouvi. Voz, dicção, técnica e
afinação impecáveis. E uma intérprete
fabulosa da dimensão de Edith Piaf, Amália Rodrigues ou Ella Fitzgerald. Acompanhei sua trajetória artística desde
sempre, disco a disco, em festivais e
programas de TV, em shows e espetáculos teatrais. Um portento.
Nada mais justo e razoável que uma carreira como essa
seja objeto de uma cinebiografia. A
questão é alcançar a qualidade artística necessária para fazer jus ao
projeto. Isso, o filme “Elis”, de Hugo
Prata, alcança parcialmente.
Quando você em cena Andréia Horta, Elis realmente
revive na tela. A atriz fez um trabalho
notável, digno de muitos prêmios. A
figura de Elis emerge em gestos, movimentos, risos de arreganhar a gengiva,
coreografias que acompanham o canto, enfim, no seu conhecido estilo de ser,
determinado, irônico e agressivo. As
interpretações de Elis estão lá inteiras, com alta qualidade de som, já que não
é Andréia quem canta, ela dubla Elis.
Perfeito!
Bem, nem tanto.
O repertório escolhido é todo muito bom, como aliás era o repertório de
Elis Regina em todas as fases de sua carreira.
Mas há ausências inconcebíveis.
Elis foi a principal intérprete de Milton Nascimento e Gilberto
Gil. Nenhuma música deles está no filme. Como não está nada da antológica gravação que
ela fez com Tom Jobim. Nem suas
inovadoras interpretações de Adoniran Barbosa.
Problemas com os direitos das músicas? Falha grave, do ponto de vista
artístico.
O começo real da carreira dela também foi deletado. Vendo o filme, tudo parece ter começado no
Rio, com “Menino das Laranjas” (de Theo Barros), embora se faça referência à
sua origem gaúcha e trabalho em Porto Alegre.
Só que Elis Regina gravou 2 LPs na gravadora Continental: “Viva a
Brotolândia”, em 1961, e “Poema”, em 1962.
São 24 faixas gravadas, de discos escancaradamente comerciais, tentando
lançar a cantora para concorrer com Celly Campello (1942-2003), que fazia muito
sucesso na época. Elis renegou essa fase de sua carreira, rejeitou esses discos
(que não são tão ruins assim), mas é algo que teria de ser registrado numa
cinebiografia que deu relevo ao trabalho da cantora.
Da vida pessoal de Elis, não me ocupei tanto, mas sei
que o casamento com Ronaldo Bôscoli durou pouco, uns cinco anos, foi muito
conturbado, já que ele era mulherengo, infiel.
Seu papel artístico junto a ela acrescentou pouco à arte de Elis. Pelo filme, ele foi o maior amor da vida dela
e teve papel artístico muito relevante.
Uma forma de romancear e fazer uma narrativa atraente?
O fato é que o casamento com César Camargo Mariano
foi mais longo e muitíssimo mais importante, do ponto de vista artístico. No filme, ele perde essa força. Mas nunca Elis foi tão brilhante como quando
entoou canções arranjadas por César. Era
algo de arrasar quarteirão de tão bom, tão sofisticado. Quem viveu esse período sabe disso. E as gravações estão aí para comprovar. Algumas no filme, também, claro.
Os conflitos políticos que envolveram a ditadura
militar, o canto de Elis na Olimpíada do Exército, a reação fulminante de
Henfil no Pasquim, colocando-a no
cemitério dos mortos-vivos, e a evolução que a levou a entoar o hino informal
da anistia, “O Bêbado e a Equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc, onde se
pedia a volta do irmão do Henfil (Betinho), estão muito bem retratados. A cena em que ela aparece sendo vaiada em
show ao vivo me parece excessiva para ser considerada real.
Os espetáculos, muito bem produzidos para palco, com
ênfase teatral, além do show, como “Transversal do Tempo” e “Saudade do
Brasil”, não aparecem. E o grande
sucesso, “Falso Brilhante”, um ano em cartaz, não é retratado, realmente. Apenas a música cantada surge e não o frenesi
que foi aquela montagem teatralmente empolgante.
Em suma, o filme está cheio de lacunas e falhas, que
não vão passar despercebidas aos fãs de Elis, que conhecem a sua
trajetória. Ainda assim, é um espetáculo
bom de se ver, com uma atriz sensacional e uma música extraordinariamente bela. Dá muita saudade!