terça-feira, 24 de setembro de 2019

O FIM DA VIAGEM...

Antonio Carlos Egypto





O FIM DA VIAGEM, O COMEÇO DE TUDO (Tabi No Owari, Sekai No Hajimari), Japão/Uzbequistão, 2018.  Direção: Kiyoshi Kurosawa.  Com Atsuko Maeda, Shota Sometani, Tokio Emoto, Adiz Radjabov, Ryo Kase.  120 min.


A jovem Yoko, adulta com aparência de adolescente, é a personagem que conduz toda a narrativa de “O Fim da Viagem, O Começo de Tudo”.  Uma narrativa rarefeita, como o próprio momento de vida de Yoko.  Ela está num país que desconhece – Uzbequistão, onde o filme foi rodado – em que não entende uma palavra do que lhe dizem, mas circula por ele e prepara, com uma equipe de filmagem, matérias para a TV japonesa.  Fica sujeita a uns tantos  micos  e a uma insegurança muito grande, quando não tem o tradutor à disposição.  Ou seja, nos momentos em que não está trabalhando.

A família parece não contar muito para ela, mas ela tem um grande amor que sustenta sua disposição de viver e trabalhar.  Vai levando tudo numa boa, até que a notícia de um incêndio de grandes proporções em Tóquio, mostrada na TV, irá abalá-la.

“O Fim da Viagem...” trata de afetos, do que sustenta o nosso cotidiano, da rotina e das imposições do trabalho, do sonho de transformá-lo em realização muito mais plena, da grandeza do amor.




É impressionante a força da cena em que a jovem canta em japonês  Hino ao Amor ,  de Marguerite Monnot, clássico sucesso de Edith Piaf, em meio às belíssimas paisagens naturais do Uzbequistão.  A sensação que passa é a da universalidade da vida humana e do amor.  Algo que se impõe sobre toda a diversidade do mundo e supera as barreiras de espaço, tempo e linguagem.

 É muito interessante como o filme, em sua simplicidade, ancorado num realismo que beira a banalidade, nos transmite tantas coisas boas, sem ser ingênuo, nem meramente fantasioso.  Dispensa também os grandes dramas, a exposição da violência ou mesmo do erotismo.  Tudo está lá, mas da forma mais sutil possível.




domingo, 22 de setembro de 2019

LEGALIDADE

Antonio Carlos Egypto


LEGALIDADE.  Brasil, 2018.  Direção: Zeca Brito.  Com Cleo Pires, Leonardo Machado, Fernando Alves Pinto, Letícia Sabatella, José Henrique Ligabue.  121 min.



  
O filme de Zeca Brito, com roteiro dele e de Léo Garcia, mescla ficção e realidade para contar fatos muito importantes da nossa história contemporânea.  “Legalidade” trata da resistência coordenada pelo governador gaúcho Leonel Brizola a um golpe militar em curso, em 1961, com apoio dos Estados Unidos.  Era o que estava no horizonte com a renúncia do então presidente Jânio Quadros e as ações visando a impedir a posse do vice-presidente João Goulart, que estava em viagem à China comunista.

Na realidade, desde a morte de Getúlio Vargas, passando pela eleição de Juscelino Kubitschek, conseguiu-se impedir a eclosão do golpe.  Golpe frustrado por reações corajosas, escoradas no apoio popular, como o próprio suicídio de Vargas ou a ação decisiva do marechal Lott.  Da mesma forma, o papel heróico, em 1961, coube a Brizola, que jogou todas as suas forças na defesa da Constituição, formando a cadeia da legalidade a partir do próprio Palácio Piratini, e a formação dos grupos dos onze, país afora, prometendo resistir até pelas armas para garantir a legalidade.  Conseguiu, embora o próprio Jango tenha negociado o parlamentarismo para poder assumir, frustrando as expectativas dos que lutaram por sua posse, ao menos em parte.  Jango recobrou plenos poderes, um ano depois, por meio de um plebiscito.  Mas o golpe acabou se realizando em 1964.

A reconstrução desses fatos é fundamental para que não se perca o fio da história e por enfatizar a importância da resistência popular na democracia. O uso complementar de material de arquivo jornalístico da época dá a dimensão da extensão e do significado que esse evento político representou para o país.




No caso de “Legalidade’, o filme traz a ação também para o ano de 2004, em que Brizola morreu, a partir da retomada de uma trama ficcional, envolvendo um triângulo amoroso entre um militante e jornalistas imersos naqueles fatos históricos.  Fatos que estão sendo pesquisados pela filha da jornalista do  Washington Post,  Cecília, que foi para onde convergiu a questão amorosa, mas também política, da narrativa.

Fantasias à parte, o filme gaúcho retoma um momento importante, crucial, da nossa realidade política.  O papel central destinado a Leonel Brizola, um inegável herói no filme, foi muito bem levado pelo ator Leonardo Machado, morto precocemente no final de 2018.  Cleo Pires, Fernando Alves Pinto e Letícia Sabatella têm igualmente ótimos desempenhos. 

Um filme que merece ser conhecido, em especial quando se pretende reescrever certos fatos históricos, negando a gravidade que tiveram para o país, como a ditadura militar, que se consumou após os fatos narrados em “Legalidade’ e permaneceu por 21 longos anos de opressão, que não podem ser esquecidos.




quinta-feira, 19 de setembro de 2019

LYON E O CINEMA


Antonio Carlos Egypto




Lyon, uma das mais importantes e populosas cidades francesas, pode ser lembrada pelo rei dos animais que a simboliza e está presente em toda parte por lá. Pode ser lembrada pelo luxo de ser uma cidade banhada por dois belos rios: o Ródano e o Saône, que formam uma península charmosíssima.  Pode ser lembrada como grande centro gastronômico mundial.  Pode ser lembrada por suas traboules, passagens, caminhos estreitos entre pátios, que ligam ruas no traçado urbano, que marcam a velha Lyon, com o bairro renascentista mais extenso da França.  Pode ser lembrada pela indústria da seda, pelo progresso industrial e por muitas rebeliões dos artesãos, dos operários que, no século XIX, forjaram o lema “Viver trabalhando, Morrer combatendo”, e pelo banho de sangue que se seguiu.  Ou por ser a capital francesa da resistência na Segunda Guerra Mundial e pelo destino trágico dos presos e torturados pela Gestapo nazista.  Pode, ainda, ser lembrada como aquela região gaulesa que resistia à ocupação romana, então chamada Lugdunum, capital provincial da Gália.  Asterix andou por lá.



Lyon também pode ser lembrada pelos seus técnicos e inventores, em especial, pelos irmãos Louis e Auguste Lumière, que lá inventaram o cinematógrafo e fizeram o primeiro filme da história, que foi projetado numa tela para que todos pudessem ver ao mesmo tempo.  Estava criado o cinema.  Que filme foi esse?  A saída dos operários da fábrica Lumière.  O proprietário era Antoine Lumière, que produzia materiais e equipamentos para fotografia.

Para quem gosta de cinema como eu, foi emocionante passear pelo quarteirão de Lyon onde se situou essa fábrica e está o hangar do primeiro filme da história.  Lá está a mansão onde viveram os Lumière, transformada em instituto e expondo a evolução técnica e artística dessa aventura humana.  Equipamentos, filmes, fotos, cartazes, que remontam aos primórdios da criação do cinema, estão á vista de todos, revelando a trajetória de uma invenção que mudaria o mundo.




A primeira vez que as imagens animadas saíram das caixinhas e ganharam as paredes e as telas aconteceu no subsolo do Grand Café no Boulevard des Capucines, em  Paris, em 28 de dezembro de 1895.  Lá estava o cinematógrafo dos Lumière, que captou e projetou as imagens da saída da fábrica dos operários, principalmente das operárias, que trabalhavam para o pai deles, Antoine, em Lyon.  Impossível dissociar Lyon da criação do cinema, portanto.  De lá vieram seus criadores, os equipamentos que tornaram possível a aventura e o próprio filme projetado.

Eu queria sentir mais de perto o clima, o ambiente, os espaços, a cidade.  O contexto que criou a sétima arte.  A sensação que passa é de tranquilidade, dedicação, competência, num ambiente inegavelmente privilegiado, de elite.  Daí sairia uma incrível diversão popular, que acabaria por se transformar, pouco a pouco, numa arte refinada, insubstituível, e num entretenimento de massa muito sofisticado.



Desde que a fotografia foi animada, colorida, anexada ao som, até os impressionantes avanços tecnológicos da atualidade, não se passou muito tempo, historicamente falando.  São pouco mais de 120 anos.  Muito pouco para a história da humanidade, uma evolução rápida e fantástica.  E hoje o cinema faz parte da vida de todas as pessoas pelo mundo, de diferentes formas, invade as casas, os computadores, os celulares, os espaços públicos.  As imagens estão em toda parte.  A experiência emocional do cinema permanece viva, como aquele susto da chegada do trem na estação, que os Lumière aprontaram para a primeira turma de espectadores da história.  Foi uma delícia passear pela cidade francesa, onde tudo isso teve origem.