terça-feira, 31 de maio de 2022

1982

Antonio Carlos Egypto

 

 


 

1982 (1982).  Líbano, 2019.  Direção: Oualid Mouaness.  Elenco: Nadine Labaki, Mohamad Dalli, Rodrigue Sleiman, Aliya Khalidi.  100 min.

 

“1982”, que dá título ao filme de Oualid Mouaness, foi um ano terrível para o Líbano, quando ocorreu a invasão israelense, motivada pelo combate à OLP (Organização para a Libertação da Palestina).  As consequências políticas da guerra e suas possíveis razões são o que menos importa aqui. O enfoque do filme é o que acontece à população civil, às pessoas inocentes, especialmente as crianças, que têm de viver em meio às agruras de uma guerra que não faz nenhum sentido para elas.  Até porque não estão em condições de entender o que está ocorrendo.

 

O filme nos coloca numa escola de ensino fundamental, que assiste em seu entorno à chegada de caminhões de tropas e blindados, pode ver aviões em combate aéreo (israelenses versus sírios) e ainda avistar ao longe a chegada de navios de guerra. O caos se instala quando os pais tentam buscar seus filhos em meio à confusão e a um trânsito terrível, que deixa tudo paralisado.  Até os telefones para contatos na escola param de funcionar, em determinado momento.

 

As crianças, impossibilitadas de entender o que se passa, perguntam e não obtêm resposta, os adultos, com o intuito de protegê-las, nada informam, tentam acalmá-las.  Estão surpreendidos, como elas, com os fatos, embora conhecessem os riscos e tivessem acesso ao quadro político.

 

De um lado, assiste-se à vida das crianças, que continuam se relacionando, em especial, um garoto que, com seus parcos recursos, tenta conquistar a menina que o encanta.  As crianças estão em final de período, em junho, fazendo provas antes do recesso escolar.  Provas em meio a estrondos, pais chegando, adultos tensos.  Se a aflição das crianças nos toca, enquanto a vida delas tenta seguir em frente, os adultos vivem o drama de, enquanto educadores, proteger as crianças e tentar entregá-las a seus pais.  Enquanto isso, aplicam as provas, conversam veladamente, tentam se posicionar diante do que vivem.

 




O filme é muito feliz em retratar essa realidade humana das crianças, dos educadores, dos pais, da extenuada secretária da escola, do diretor, diante do imponderável, daquilo que não se consegue controlar, nem mesmo entender.  E que nos atropela.

 

O menino que vive sua, provavelmente, primeira paixão está no centro das ações.  Como desenha bem, pode nos providenciar um super-herói que, com a técnica da animação, agirá em algum momento.  Até então, a narrativa era absolutamente realista.  A fantasia ficava por conta da ingenuidade infantil.  A animação quebra o naturalismo.  É uma ideia convencional, mas cabível, e utilizada por pouco tempo, felizmente.

 

A grande atriz Nadine Labaki, que é também diretora de filmes como “Cafarnaum”, “Para onde iremos agora?” e “Caramelo”, é a protagonista, no papel de professora.  Ela comanda um elenco muito bom, em que as crianças estão muito convincentes na trama.  E os demais adultos, também.

 

“1982” nos mostra ainda, no fundo da história, uma Beirute dividida, com passagens fechadas entre a parte Oriental e a Ocidental, em função dos fatos.  Enfim, traz a dor, embora de uma forma sutil.  “1982” foi indicado pelo Líbano ao Oscar de filme internacional 2020. Tem um brasileiro como produtor, Jorge Takla, do Teatro e da Ópera, que era criança no Líbano nessa época.  O filme será exibido agora nos cinemas brasileiros.  Por aqui vivem, entre libaneses e seus descendentes, 10 milhões de pessoas.  Para efeito de comparação, o Líbano tem uma população de 6 milhões e 800 mil habitantes.  Acredito que não faltará gente para ir ver nos nossos cinemas esse bom filme libanês.



 

domingo, 29 de maio de 2022

MÁ SORTE NO SEXO ou PORNÔ ACIDENTAL

    



Antonio Carlos Egypto

 

 

MÁ SORTE NO SEXO ou PORNÔ ACIDENTAL (Babardealâ cu buluc sau porno balamuc).  Romênia, 2021.  Direção: Radu Jude.  Com Katia Pascariu, Claudia Irenemia.  Olimpia Malai.  Nicodim Ungureanu.  106 min.

 

 

O filme romeno “Pornô Acidental” é ousado, provocador, irônico e inteligente.  Abre com uma sequência de sexo e nudez muito clara e evidente.  Em seguida, passa para um cotidiano de rua que se parece com a nossa realidade: as pessoas usam máscara abaixo do nariz, no queixo ou mesmo nem usam.  As pessoas mostram um tom agressivo no trato e pouca tolerância.  Sinal dos tempos, da pandemia.  Sei lá. 

 

O fato é que a mulher que anda muito pela cidade é uma professora de crianças e adolescentes de uma escola tradicional e conceituada em Bucareste.  E é dela com o marido o vídeo de sexo que vazou pela Internet.

 

Isso acabará pondo em xeque o seu trabalho e será motivo de uma reunião de pais, com covid-19 e os cuidados sanitários, em que se discutirá sexo, ética, moralidade, intimidade e trabalho, história, direito ao livre exercício da sexualidade, autoritarismo, política educacional.  Enfim, um sem número de coisas.  Que aparecerão na segunda parte do filme, na forma de máximas, piadas, poemas, exortações.  Tudo muito bem engrenado.  Mas o suspense do que vai acontecer com a educadora seguirá até o final.  Com interesse crescente, porque os argumentos, questionamentos, posicionamentos, incluindo provocações e ofensas ocupam toda a cena.

 

Como se vê, a pandemia joga papel lateral na trama, emoldura apenas os fatos. Certamente, este roteiro não foi escrito a partir dela, mas antes dela.  A discussão central não é sanitária, diz respeito à questão educacional, educação sexual, principalmente, e valores e preconceitos sociais.  Privacidade e Internet em evidência.

 

De um jeito leve, brincalhão e erótico, o filme de Radu Jude tem muita força e consistência.  É o vencedor do Urso de Ouro do Festival de Berlim e dá uma demonstração de que o cinema romeno continua evoluindo, não parou na onda inicial que o impulsionou no mercado mundial.  “Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental” foi um dos filmes de abertura da Mostra 45 e chega nesta semana ao circuito comercial dos cinemas.

 

 

 

domingo, 8 de maio de 2022

O TREM DA UTOPIA

Antonio Carlos Egypto

 

 



O TREM DA UTOPIA.  Brasil, Itália, 2021.  Direção: Beth Sá Freire e Fabrízio Mambro.  Documentário.  94 min.

 

 

O documentário “O Trem da Utopia”, primeiro longa de Beth Sá Freire e Fabrízio Mambro, focaliza o espírito italiano na cidade de São Paulo.  São 8 milhões de pessoas com sobrenome italiano vivendo em São Paulo, em que seus ancestrais, ou eles próprios, encontraram um porto seguro.  Ou nem tanto.  Na aventura pela integração e identidade a um outro mundo, passou-se pela miséria, pelo abuso, pela humilhação, pelo preconceito, pela fuga das guerras, da siciliana à Segunda Guerra Mundial. 

 

O fato é que esse espírito italiano invade o ambiente paulistano e se torna uma marca característica de sua história.  O filme enfatiza isso, ao promover, por meio de cortes rápidos, uma sucessão de imagens da capital paulistana com imagens de cidades da região Emília Romagna, que vai do Brás e do Bexiga a Campo de Fiore, em Roma, entre muitas outras.  Associando também Anita Garibaldi a Lina Bo Bardi, passando pela música, pelo futebol do Juventus, pela comida italiana, pela inevitável pizza napolitana, pelas manifestações artísticas inspiradas em Michelangelo, no Ibirapuera, e por aí vai.

 

Quem funciona como condutor nas andanças pela cidade e pela Itália é o músico e coralista Piero Damiani e, por meio de encontros, conversas e eventos, essa italianidade paulistana vai se mostrando, em seus anseios, buscas, preocupações, sentimentos de pertencimento e identidade dupla (brasileira/italiana).

 

Muitas questões são levantadas, inclusive uma bem sensível, já que as filmagens (ou grande parte delas) em São Paulo ocorreram entre o primeiro e o segundo turno da eleição de 2018.  Isso levantou o inevitável paralelo entre o momento brasileiro, extremamente preocupante, e o fascismo, que dominou a Itália na primeira metade do século XX, e está lá até hoje na memória, que deixou marcas profundas e desagregadoras.  A ideia de ter de viver uma experiência fascista no Brasil sugere a muitos a possibilidade de voltar. Fugir do fascismo, lá como cá?




A participação brasileira dos pracinhas na Itália, na Segunda Guerra Mundial, é relembrada com carinho pelos italianos da região de Monte Castello.  O que se tornou um símbolo da irmandade entre os dois países. 

 

Em que pese o volume de situações exploradas, o filme não chega a alcançar uma síntese.  Vale mais como um painel amplo e variado do recorte a que se propôs: a italianidade paulistana.

 

A produção é muito bem cuidada, o filme tem agilidade e variedade, explora o uso da palavra escrita junto com a imagem e faz um jogo espelhando São Paulo e Itália em diferentes aspectos.  Nem sempre a tradução está presente, quando se fala italiano e as palavras escritas estão em inglês.  Será preciso ao menos alguma familiaridade com um dos dois idiomas para acompanhar tudo o que é dito.  De qualquer modo, em bom cinema as imagens falam mais do que as palavras.