terça-feira, 26 de abril de 2022

A PIOR PESSOA DO MUNDO

Antonio Carlos Egypto

 



A PIOR PESSOA DO MUNDO (Verdens verste menneske).  Noruega, 2021.  Direção: Joachim Trier.  Elenco: Renate Reinsve, Anders Danielsen Lie, Herbert Nordrum, Maria Grazia Di Meo.  128 min.

 

Quem já não se sentiu a pior pessoa do mundo, por algo que fez e do qual se arrepende, por omissão, por escolhas erradas que só complicaram a vida, por descontrole em relação a si mesmo, deixando-se levar por impulsos ou por outras razões (ou emoções)?  Em outros momentos e circunstâncias talvez essa mesma pessoa tenha se sentido a melhor do mundo.  Claro, porque a vida é complexa, cheia de ambiguidades, as pessoas transitam entre os mais diversos afetos, emoções, impulsos, racionalizações, medos, ansiedades e, enfim, a angústia.  Em busca da felicidade e do amor, de alcance no mínimo duvidoso.  E passageiro.

 

O filme do diretor norueguês Joachim Trier (de “Oslo, 31 de agosto”, de 2014) trata dessas coisas todas, centrando-se na figura da personagem Julie (Renate Reinsve), uma jovem de 30 anos em busca de tudo, ou quase tudo.  De que atividade se ocupar na vida, aproveitando talentos de boa estudante, mas escolhendo algo que a realize, de que ela goste, tenha interesse em se dedicar.  Ela dispõe das condições necessárias para isso, vivendo numa família norueguesa de classe média, o que significa alto padrão lá, em Oslo.  No entanto, está difícil para ela essa escolha, que, a rigor, já passou do prazo regulamentar.

 

Ela busca também se entender como mulher, ativa e independente, no sexo, nas relações amorosas, nos contatos com os outros, aí incluídos os seus próprios familiares e os dos dois namorados que teve nessa época da vida.  Não pensa em ter filhos, não sente apelo maternal de nenhuma espécie, mas essa é uma questão que se faz presente nos relacionamentos amorosos, fatalmente. Não somente Julie, em sua circunstância de adulta jovem, se debate em torno dessas questões.  As pessoas com quem ela se relaciona, também, de um modo ou de outro, vivem em torno dessas buscas, que se alteram ao longo do tempo de vida, mas estão lá.

 

Acompanhamos ao longo do filme uma espécie de périplo da personagem, que se mostra sempre incompleta, insatisfeita, de algum modo.  Talvez não infeliz, mas em busca do que falta, querendo se livrar do que incomoda, desejando experimentar algo novo.  Outra dimensão humana para lá de compreensível.

 




Enfim, “A Pior Pessoa do Mundo” trata com muito equilíbrio da vida como ela é e de como gostaríamos que ela fosse.  Aqui não só os personagens são de carne e osso, reconhecidos em sua humanidade, como passam pelos percalços corriqueiros da existência.  Não cabem heróis, superpoderes, magia.  As coisas decorrem como decorrem na vida, mesmo. 

 

Além do que apontei até aqui, vale ressaltar que questões como o adoecer e o medo da morte estão no horizonte.  O relacionamento edípico de Julie com o pai é apontado e ressaltado, é um componente importante, mas não é a razão de ser do comportamento da jovem.  Digamos que Freud explica, mas não justifica.

 

A questão da expressão artística aparece no personagem Aksel (Anders Danielsen Lie), quadrinista de êxito, que se vê às voltas com o uso comercial do gato anarquista e agressivo que ele criou sendo domesticado e esvaziado na transposição para o cinema.  E reclama nostálgico, aos 45 anos, do consumo de cultura nos dias de hoje, sem os objetos que a significavam e que nos encantavam, antes dos tempos dos celulares e da Internet que os fizeram desaparecer de cena.

 

A narrativa do filme se divide em prólogo, doze capítulos e um epílogo, como um livro, e cada parte vai compondo a história dos 30 anos de Julie.  Em sequências marcantes, quando o amor se materializa ou o desejo se acentua, o mundo para, o tempo fica suspenso e só ela e seu amante se movimentam.  Tudo o mais fica estático, em forma de foto ou estátua.  Funciona muito bem no filme, até porque é usado moderadamente, para não cansar ou incomodar.

 

Os personagens centrais, e mesmo alguns coadjuvantes, são bem construídos e têm atores e atrizes que os sustentam em bons desempenhos, com destaque para a protagonista Renate Reinsve, que, com vigor e simpatia, ocupa a cena.  Anders Danielsen Lie, como Aksel, é ótimo e Herbert Nordrum, como Eivind, completa com competência o trio principal da história.  Um filme que consegue mesclar um drama existencial com leveza, dinamismo e humor.  O resultado final é bem cativante.

 

 

domingo, 24 de abril de 2022

FLEE - Nenhum lugar para chamar de lar

Antonio Carlos Egypto


  



FLEE- NENHUM LUGAR PARA CHAMAR DE LAR,  de Jonas Poher Rasmussen, da Dinamarca, 90 minutos, é um documentário de animação que revela uma história pessoal dolorosa, em meio a um mundo conturbado e preconceituoso.  Utiliza-se de diferentes tipos de desenhos, mais concretos e realistas ou sugestivos esboços.  Vale-se, também, de vídeos de registros de situações, em imagem reduzida, como as antigas TVs.

 

O fato é que os recursos estão a serviço de uma narrativa que emociona, se indigna, mostra o quão difícil é lidar com a ausência de uma identidade que corresponde ao que a pessoa é ou sente, como é viver sem um lar e uma história pessoal que possa chamar de sua.

 

Essa história verdadeira nos é contada por meio de uma análise psicológica que traz da sombra os segredos de Amin, um refugiado afegão.  Ele retira do baú de memórias enterrado, desde os elementos femininos de sua personalidade na primeira infância até as tragédias familiares decorrentes da condição de refugiados, na infância e na adolescência, fugindo da opressão da guerra no Afeganistão.  Isso possibilita que o filme exponha o inacreditável das condições de fuga dos refugiados, que gastam o pouco que têm, arriscando a vida, novamente, em condições sub-humanas, para escapar da guerra. E, para poder concluir, uma impressionante viagem, com idas e retornos, que passa pela Rússia, e deixa para trás a família, até chegar à Dinamarca, desamparado, mas conseguindo, a partir daí, construir uma nova vida.

 


 



É na condição de intelectual, com pós-doc aos 36 anos de idade, que ele se submete à autodescoberta que o filme mostra.  O que inclui a questão da homossexualidade, absolutamente reprimida e negada no Afeganistão.  Lá, não consta que haja esse desejo.  Essa expressão da sexualidade é invisível, não existe nem a palavra que a designaria no idioma.  Na Escandinávia, a realidade é outra, dependerá de Amin encontrar um parceiro e uma vida em comum, desde que se disponha a isso.

 

O oprimido, mesmo quando vence na vida, incorpora ao inconsciente a vergonha, o medo e a culpa pelo que passou e precisou reprimir, para sobreviver.  Encontrar-se plenamente implica um processo penoso e altamente dolorido de resgate de imagens e sentimentos, de lembranças esquecidas, em busca de um futuro mais calmo. 

 

FLEE, essa animação documental, dá conta de tudo isso em sua complexidade, sem simplificar, moralizar ou fazer proselitismo político de qualquer espécie.  Os fatos falam por si e pela boca do depoente e daquele que o escuta de fato e espera pelo tempo dele, com cuidado e paciência.

 

A utilização de desenhos alivia a carga pesada dessa vida, para o espectador, preserva os envolvidos e dá o necessário distanciamento, que permite reflexão de forma mais serena.  Em que pese tudo o que se conta.  Um belíssimo trabalho cinematográfico, lançado no ano passado no festival de documentários  É TUDO VERDADE 2021 com o título de FUGA. Foi indicado ao Oscar em 3 categorias: melhor filme internacional, representando a Dinamarca, melhor animação e melhor documentário.

 

                                                                                                       

 

quinta-feira, 21 de abril de 2022

A NOITE DO TRIUNFO

        Antonio Carlos Egypto

 




A NOITE DO TRIUNFO (Un triomphe).  França, 2020.  Direção: Emmanuel Courcol.  Elenco: Kad Merad, David Ayala, Lamine Cissokho, Pierre Lottin,  106 min.

 

“A Noite do Triunfo” conta, em tom leve e divertido, uma história que aconteceu de fato e que dá o que pensar.

 

Etienne (Kad Merad) é um ator dedicado e competente que, no entanto, vive desempregado.  Talvez lhe falte uma oportunidade, uma chance de mostrar melhor do que é capaz.  Enquanto isso, ele se dedica ao teatro, que é sua paixão, dirigindo uma oficina numa prisão.  Poucos acreditam que a experiência vá dar em alguma coisa palpável.  Mas ele acredita e, mesmo lidando com um grupo improvável de prisioneiros, sua disposição de trabalho com eles é tão grande que a coisa acaba fluindo, mesmo sem muito apoio.  A tal ponto, que ele consegue obter licenças para os presos, para encenar a peça fora da prisão, depois do sucesso inicial.  E eles se apresentam em teatros, o que aumenta a autoestima de todos.

 

Se os atores eram improváveis, a peça, mais ainda.  Nada menos do que “Esperando Godot”, de Samuel Beckett, que explora o absurdo.  Etienne, porém, acha que, apesar das dificuldades de entendimento, a situação seria a ideal.  Quem melhor do que presos para fazer empatia com personagens que esperam indefinidamente por alguém que nunca vem?  Eles sabem bem o que é isso.  Não esperam por alguém, mas por algo essencial, a liberdade.

 

A evolução desse convívio, das descobertas, das surpresas e o fluir do processo são o foco central do filme.  Porém, ele não para por aí, situações inesperadas acabarão por construir um caminho original e inovador para a trama.  Um caminho que tem a ver com a própria trajetória dos personagens e com a espera e as expectativas que a peça encenada apresenta.

 




Ao mesmo tempo, promove uma discussão da situação carcerária, da forma como os que cometeram crimes são vistos pela sociedade e pelo sistema que os encarcera, mostrando o papel fundamental que teria de jogar a reabilitação.  Comparando com o quadro carcerário brasileiro, o que o filme mostra é algo bem melhor e mais aceitável.  Mas a questão que ele coloca é totalmente pertinente.

 

A parte final do filme, que eu não vou comentar, é empolgante.  Trata da noite do triunfo, num luxuoso teatro em Paris.  Como será essa noite tão esperada?

 

O filme de Emmanuel Courcol tem uma boa comunicação com o público, funciona como entretenimento, tem um bom roteiro.  Mesmo sem atores mais conhecidos, tem um elenco bem consistente e vai um pouco além da pura diversão, levanta questões que merecem atenção.  É uma produção bem cuidada e competente.

 

Tive a oportunidade de ver esse filme numa sessão especial no reformado cine Bijou, na praça Roosevelt, São Paulo.  Reencontrar o Bijou, que eu já frequentei muitas vezes no passado, à procura de bons filmes de arte, trouxe à tona algumas boas emoções e alguma nostalgia.  A volta do Bijou, agora sob o cuidado dos Satyros, é muito bem-vinda.  Enquanto alguns cinemas de rua lamentavelmente fecham, o que acontecerá com o anexo do Itaú Augusta, outros voltam a abrir as portas, como o velho Bijou.



quarta-feira, 20 de abril de 2022

MEDIDA PROVISÓRIA

Antonio Carlos Egypto

 

 



MEDIDA PROVISÓRIA.  Brasil, 2020.  Direção: Lázaro Ramos.  Elenco: Alfred Enoch, Taís Araújo, Seu Jorge, Adriana Esteves.  106 min.

 

Um filme que se propõe a evidenciar e combater o racismo estrutural, que acompanha a sociedade brasileira desde sempre, é muito bem-vindo.  Mais do que isso: é muito necessário.  Ainda mais, em tempos de Vidas Negras Importam, em que a consciência antirracista vai conquistando mais e mais espaço na mídia e na sociedade.  No caso, seus realizadores têm o legítimo direito de fala, vivem na pele a experiência de serem negros, ainda que com um padrão de vida superior ao da maioria dos afrodescendentes no Brasil hoje.

 

Lázaro Ramos, ator talentosíssimo, muito reconhecido e aplaudido, parte para sua primeira experiência como diretor.  E o faz cercado de outras pessoas negras, não só entre os atores, mas nas diferentes funções do cinema, do roteiro à operação de câmera, iluminação, fotografia, etc..  Uma equipe grande, o que também abriu possibilidades de trabalho para muitos, que estariam mesmo necessitando disso nesse momento.

 

O filme “Medida Provisória” estava para ser lançado em 2020.  Teve de esperar pelo arrefecimento da pandemia, o que trouxe muitos problemas, mas agora lançado nos cinemas teve rápida resposta do público, já se revelando um sucesso instantâneo do cinema brasileiro.  O mais recente sucesso foi “Marighella”, de Wagner Moura, também ator e da mesma geração de Lázaro Ramos.

 

O filme é um verdadeiro manifesto, que tende a impulsionar a militância no tema do antirracismo.  Chega a ser bem didático, com esse objetivo.  A história remete a um futuro próximo distópico, em que um governo autoritário atua por meio da lei, no caso da famigerada medida provisória, que tem servido ao Executivo para governar, para embranquecer o Brasil.  Ou melhor, para fazer com que os negros voltem às suas origens na África.  Como se eles não fossem brasileiros originários.  Tal hipótese absurda serve para destacar a questão racista, ainda hoje tão negada, em nome de uma suposta democracia racial em que viveríamos.  O exagero ressalta o problema, não deixando margem a dúvidas.  Situações mostradas, assim como falas e reflexões expressas, tentam deixar tudo muito às claras.  Ou seria melhor dizer às escuras?

 



É evidente que uma tal campanha Resgate-se Já, promovida oficialmente, fatalmente promoveria opressão no mais alto grau, caos, protestos e movimentos de resistência, como o Africanbunker, sucedâneo do quilombo.  De fato, todos serão atingidos, não só os mais pobres ou vulneráveis. 

 

“Medida Provisória” optou por colocar como personagens centrais indivíduos de classe média, de melanina acentuada, como seriam chamados nesse futuro os negros ou afrodescendentes.  Embora não se esqueça de lembrar daqueles que estão nas favelas, não sendo médicos ou advogados, como Capitu ou Antônio, os personagens de Taís Araújo e Alfred Enoch, respectivamente.

 

Evidentemente, Capitu homenageia o maior nome da literatura brasileira, o negro Machado de Assis, por cuja rua também circulam os personagens.  A música, cantada lindamente por Elza Soares, tem destaque muito grande em algumas cenas do filme.  Ou seja, a cultura negra tem a necessária projeção do que ela representa na cultura brasileira.  Emicida, por exemplo, está no filme como ator, outro elemento simbólico dessa inteligência e dessa cultura nos dias atuais.  E por aí vai.

 

“Medida Provisória” nasceu da adaptação da peça “Namíbia, não”, de Aldri Anunciação, que é roteirista do filme, ao lado de Lusa Silvestre e do próprio Lázaro Ramos.  A música é de Rincón Sapiência.  O elenco, notável, ainda inclui Seu Jorge, Adriana Esteves, Luís Miranda, Renata Sorrah, William Russel, Jéssica Ellen, Flávio Bauraqui, e outros.  O filme tem mesmo uma cara de trabalho coletivo, como destacou Lázaro Ramos em entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura.  Uma bela afirmação da negritude, em que alguns brancos também participaram.

 

 

sexta-feira, 15 de abril de 2022

O TRAIDOR

  Antonio Carlos Egypto

 

 



O TRAIDOR (Il Traditore), Itália, 2019.  Direção: Marco Bellocchio.  Elenco: Pierfrancesco Favino, Maria Fernanda Cândido, Fabrizio Ferracane, Luigi Lo Cascio, Jonas Bloch.  153 min.

 

A história de Tommaso Buschetta (1928-2000) está sendo contada no filme “O Traidor”, dirigido pelo grande realizador italiano Marco Bellocchio.  Esse dirigente do alto escalão da máfia siciliana teve fortes relações com o Brasil, o que dá ao filme um interesse maior para o nosso público.  Buschetta foi casado com uma brasileira, Maria Cristina de Almeida Guimarães, papel de Maria Fernanda Cândido em “O Traidor”.  Morou no Brasil de 1949 a 1956, quando teve uma fábrica de vidro, com pouco sucesso.  Retornou a Palermo e passou ao contrabando de drogas e assassinatos, junto com outros mafiosos.  Voltaria a viver aqui nos anos 1970, mas foi preso e deportado para a Itália em 1972.  Voltou novamente ao Brasil nos anos 1980, quando uma guerra generalizada acontecia entre chefes mafiosos sicilianos , pelo controle do tráfico de heroína.  Enquanto estava refugiado no Brasil, seus filhos e irmãos seriam assassinados.  Ele seria o próximo? Novamente preso e extraditado, encontra-se com o juiz Giovanne Falcone em Roma e resolve falar, denunciar o que sabia sobre a Cosa Nostra, e isso acabou sendo um tsunami que envolveu a organização criminosa.

 

A história, que é contada com riqueza de detalhes em “O Traidor”, é complexa, cheia de nuances, vai-e-vens, e envolve um personagem ambíguo: grande bandido, herói, covarde, traidor.  O fato é que ele teve um papel importantíssimo na história da máfia e as notícias que circularam por aqui à época não davam a dimensão exata da figura.  “O Traidor” cumpre a função de retratar Tommaso Buschetta em seus diversos aspectos, ângulos e significados muito bem.  Segue uma narrativa mais clássica, descritiva, apesar das idas e vindas no tempo.  É longo, havia muito o que contar, porém exige que o interesse no tema e, principalmente, no personagem sejam grandes por parte do espectador.  O filme não perde o ritmo, é ágil, tem um elenco muito bom, capitaneado por Pierfrancesco Favino e com Maria Fernanda Cândido como coprotagonista e com a participação também de Jonas Bloch.  Afinal, é uma coprodução com o Brasil e foi filmado parcialmente aqui.

 

Eu diria que é um bom filme, mas um filme menor na filmografia de Bellocchio, que já dirigiu trabalhos como “Vincere”, de 2009, “Bom dia, Noite”, de 2003, “Belos Sonhos”, de 2016, “Diabo no Corpo”, de 1986, “Henrique IV”, de 1984.  E o octogenário diretor tem um novo filme, que em breve será lançado por aqui, “Marx Pode Esperar”, de 2021.  Enfim, sempre vale a pena dar atenção aos filmes de Marco Bellocchio.  Talento e experiência ele tem de sobra.



quarta-feira, 13 de abril de 2022

VITALINA VARELA

  Antonio Carlos Egypto

 

 


VITALINA VARELA.  Portugal, 2019.  Direção: Pedro Costa.  Elenco:  Vitalina Varela, Ventura, Manuel Tavares Almeida, Imídio Monteiro.  124 min.

 

Assistir ao filme “Vitalina Varela”, do diretor português Pedro Costa, é usufruir de uma estética sofisticada.  Começamos por notar a tela quadrada, que diminui o espaço do olhar.  Chama a atenção a opção por imagens escuras, que se revelam por focos de luz.  A luz mostra características definidoras do ambiente físico: aspectos da casa simples, cujo teto ameaça desabar, os objetos, as portas que se abrem ou fecham, emitindo um som que rompe o silêncio, as janelas, mas, sobretudo, as figuras humanas, em especial a de Vitalina, a protagonista.  Por sinal, Vitalina encena sua própria história, ela é a personagem real do filme e sua atriz.

 

A luz se amplia ou se restringe, para revelar cores intensas em meio a uma paisagem cinzenta de cimento e das trevas da pobreza, do desencanto e da própria morte.  A precisão dos enquadramentos é algo absolutamente notável.  Qualquer dos planos fixos do filme compõe um quadro, plasticamente muito bonito.  Poderia ser emoldurado e fixado na parede para ser admirado.  Mesmo nas passagens mais escuras, porque toda a atenção se daria na direção de um pequeno aspecto iluminado da cena.  Destaque para a utilização da profundidade de campo, com perfeita nitidez em tudo o que mostra, dos detalhes aos movimentos ao fundo da cena.

 

De admiração em admiração, o tempo vai passando lentamente.  Não há música, as falas são poucas e, na maioria das vezes, sussurradas (ainda bem que o filme é legendado), mas alguns sons irrompem com força, como a chegada do avião, um grito desesperado ou um pedaço do teto que cede.

 

Pedro Costa transforma, com esse tipo de abordagem cinematográfica, algo simples, banal, miserável, em algo sublime.  E, ao ficcionalizar uma personagem real e sua própria história na tela, ele escapa do documentário tradicional.  Segundo as próprias palavras do diretor: “Não estou a fazer um documentário de entrevistas televisivas. Estamos a tentar fazer algo um pouco mais épico”. 

 

O que Vitalina Varela viveu e está retratado no filme, elemento após elemento, em cada um desses enquadramentos maravilhosos, é uma história pessoal de dor, abandono, desesperança e desencanto com a vida e a figura amada.  Dentro de uma realidade marcada pela carência material... e afetiva.

 


Vivendo no Cabo Verde à espera do marido pedreiro, com quem construiu uma boa casa, mas ele se mudou para Lisboa em busca de trabalho, ela espera anos por uma passagem aérea para ir a Portugal, que nunca vem.  Virá quando da notícia da morte do marido, mas ela chega atrasada, em três dias, ao funeral e lá ninguém a conhece, nem os amigos que com ele conviviam.  É dessa situação que se nutre o filme, que explora sensações e sentimentos em baixa intensidade, mas com muita expressividade.  Expressividade que deu a Vitalina Varela o prêmio de melhor atriz e a Pedro Costa, o Leopardo de Ouro de melhor filme, no Festival de Locarno, Suíça.



sábado, 9 de abril de 2022

O TERRITÓRIO e +

Antonio Carlos Egypto

 

 

O Território, filme de encerramento do festival É TUDO VERDADE 2022 é uma produção Brasil, Dinamarca, Estados Unidos, dirigido pelo norte-americano Alex Pritz.  Se passa em Rondônia, junto aos indígenas Uru-eu-wau-wau que, ao longo das décadas passadas, foram vendo o seu território minguar, até o momento atual, em que o espaço de floresta que ainda lhes cabe parece ser o mínimo para a própria sobrevivência.  No entanto, um grupo de agricultores, grileiros, se apodera de uma área protegida dessa floresta, sem encontrar fiscalização ou controle dos órgãos do governo federal responsáveis por isso.  Pior, no governo Bolsonaro eles se sentem vencedores, confiando na impunidade, mesmo sabendo que estão agindo abertamente contra a lei.  Confiam que a própria lei e sua prática estão sendo mudadas, para favorecê-los, protegê-los.  O documentário de Alex Pritz convive tanto com os indígenas quanto com os posseiros e fazendeiros.  Percebe o apego, respeito e proteção à floresta, que embalam a população originária indígena dessa região de Rondônia.  No convívio com os invasores, encontra uma relação violenta com a terra, além do negacionismo quanto à própria existência dos índios ali.  A violência se materializa de forma muito concreta na morte de um jovem líder indígena que ostentava o título de “protetor da floresta”.  Suprema ironia.  E quem teria de proteger a floresta não se empenha em investigar mais essa morte anunciada, pelo conflito de interesses aí envolvidos e pela diferença de poderes que os distingue.  Sem sentir que possam contar com o apoio oficial, os indígenas encontram apoio em militantes ambientais e vão descobrindo os seus próprios caminhos.  Com o auxílio de drones, celulares, filmagens, eles encontram meios de produzir provas, denunciar e se defender por conta própria, tentando expulsar os invasores, destruindo ou queimando cabanas que eles erguem em meio à terra indígena.  É dramático o que O TERRITÓRIO mostra.  Não que já não tenha sido relatado pelo jornalismo investigativo dos órgãos sérios da mídia, da imprensa, televisiva ou pela Internet.  Só que o convívio concreto, e de perto, com os dois grupos traz uma emoção que ultrapassa em muito o noticiário sobre o tema.  A imersão nessa realidade causa tanto desconforto que os números do desmatamento recorde da Amazônia dos últimos anos até perdem parte da sua força.  E, olha, que esses números são assustadores.  83 min.

 

Gostaria de mencionar também o filme brasileiro QUEM TEM MEDO?, dirigido por Ricardo Alves Júnior, Dellani Lima e Henrique Zanini.  Este é um documentário que comprova que a censura está de volta ao Brasil, no governo Bolsonaro.  Para isso traz à cena os artistas concretos que sofreram censura real da parte desse governo, além das tradicionais ameaças e provocações de seus apoiadores.  A Constituição cidadã de 1988 aboliu por completo qualquer forma de censura às artes e à liberdade de expressão no país.  No entanto, quem diz que defende essa mesma liberdade e a Constituição age de forma totalmente oposta a isso.  Instituindo a censura e o ódio, ao mesmo tempo em que combate, na forma de um moralismo hipócrita, a expressão cultural brasileira.  É importante mostrar quem são e o que fazem esses artistas que sofreram esse tipo de contestação e perseguições.80 min.




 

sexta-feira, 8 de abril de 2022

FESTIVAL SESC 2022

 Antonio Carlos Egypto




Festival Sesc Melhores Filmes chega à sua 48a. edição.  É o festival de cinema mais antigo e tradicional de São Paulo.  Já está em andamento, apresentando os filmes que mais se destacaram durante o ano de 2021 pela indicação da crítica e também pela votação do público.  Acontece ao longo do mês de abril, no Cinesesc (rua Augusta, 2075) e com uma seleção de filmes na plataforma Sesc digital: sescsp.org.br/cinemaemcasa.

É a oportunidade de ver, ou rever, os melhores filmes do ano que passou, de preferência na tela grande do cinema.  O Cinesesc tem uma excelente projeção, qualidade de imagem e som impecáveis e, também, é cuidadoso no trato das medidas sanitárias, exige apresentação de comprovante de vacinação e de identidade, na entrada, e uso de máscaras e disponibilidade de álcoolgel.

Veja aqui os premiados do 48o. Festival Sesc dos Melhores Filmes.

VOTAÇÃO DA CRÍTICA ESPECIALIZADA
Cinema Internacional
Melhor filme: "Ataque dos Cães"
Melhor direção: Jane Campion, por "Ataque dos Cães"
Melhor atriz: Frances McDormand, por "Nomadland"
Melhor ator: Anthony Hopkins, por "Meu Pai"

Cinema Nacional:
Melhor filme: "Marighela"
Melhor documentário: "A Última Floresta"
Melhor direção: Wagner Moura, por "Marighela"
Melhor roteiro: Aly Muritiba e Henrique dos Santos, por "Deserto Particular"
Melhor fotografia: Luís Armando Anteaga, por "Deserto Particular"
Melhor atriz: Thiessa Woinbackk, por "Valentina"
Melhor ator: seu Jorge, por "Marighela"

VOTAÇÃO DO PÚBLICO
Cinema Internacional
Melhor filme: "Não olhe para cima"
Melhor direção: Jane Campion, por "Ataque dos Cães"
Melhor atriz: Frances McDormand, por "Nomadland"
Melhor ator: Benedict Cumberbatch, por "Ataque dos Cães"

Cinema Nacional:
Melhor filme: "Marighela"
Melhor documentário: "Chorão, Marginal Alado"
Melhor direção: Wagner Moura, por "Marighela"
Melhor roteiro: Wagner Moura e Felipe Braga, por "Marighela"
Melhor fotografia: Adrian Teijido, por "Marighela"
Melhor atriz: Fernanda Montenegro, por "Piedade"
Melhor ator: seu Jorge, por "Marighela"





quarta-feira, 6 de abril de 2022

DOCUMENTÁRIOS MUSICAIS

Antonio Carlos Egypto




CESÁRIA ÉVORA.  Portugal, 2022.  Direção: Ana Sofia Fonseca.  95 min.

Dizer que Cesária Évora (1941-2011) foi uma das grandes cantoras que o mundo já conheceu é fácil.  Basta ouvir qualquer de suas gravações.  E são muitas.  "Sodade" é a obra máxima, conquista o ouvinte na hora.  Pelo menos, comigo foi assim.

Seu timbre belíssimo e seu jeito espontâneo de entoar suas canções, associado a seu repertório original, composto de mornas caboverdianas, são grandes trunfos.  As mornas são canções dolentes, ritmadas, em baixo tom, que envolvem quem as ouve.  Cantadas em português e criolo, produzem um estranhamento, tanto na melodia quanto na letra, o que se torna familiar e, ao mesmo tempo, estrangeiro, para nós, brasileiros.

Cesária Évora provém do Cabo Verde, um pequeno país africano tão desconhecido que é um milagre que de lá tenha vindo uma estrela da canção mundial.  Ela colocou o país no mapa da música e o projetou a partir do talento do seu canto.  Como isso se deu?  Cesária nunca estudou música ou canto.  Simplesmente gostava de cantar desde pequena e, como agradava, percebeu que poderia ser cantora.  Sem maiores pretensões do que o aplauso dos seus conterrâneos em encontros musicais em bares e hotéis, por exemplo.  Para ela, era indispensável fumar e beber, quando se via num palco, ou entre as exibições.

Um talento natural assim acabaria sendo "descoberto" e levado para longe de Cabo Verde, aos palcos de todo o mundo, até alcançar um enorme sucesso e se tornar uma diva da música.  Isso, para uma mulher negra, africana, já em plena maturidade, é surpreendente.  E se torna ainda mais, quando se sabe do componente bipolar da sua personalidade.  Oscilando entre manias, como a excessiva generosidade a seus familiares, amigos e vizinhos, que fazia escoar quase todo o dinheiro que ganhava, e a depressão, que a mantinha em casa por períodos prolongados, sem qualquer interesse em nada.

O documentário da portuguesa Ana Sofia Fonseca trata de tudo isso com muito respeito e admiração por sua retratada, por ocasião dos dez anos de sua morte, que está sendo lembrada mundo afora.  Mostra para tentar entender como uma mulher como Cesária,  sem levantar bandeiras, desafiou o destino, rompeu preconceitos e encantou plateias de todo o mundo.  Bem produzida, mas cantando descalça, como se fosse uma excentricidade.  Na verdade, seus pés mal podiam suportar sapatos, por conta de deformidades, além de que o hábito faz o monge e quem sempre andou descalça não queria saber de sapatos, tirando-os na primeira oportunidade.

O documentário valoriza bem a obra artística de Cesária Évora, condição fundamental para justificar o filme.  Cesária projetou para todos o seu talento na música e, com ela, arrebatou as plateias.  Isso tem de estar no centro de sua vida, como aqui, de fato, está.

Uma curiosidade, além de mostrar suas mornas, o documentário traz Cesária cantando duas músicas brasileiras: "É doce morrer no mar", de Dorival Caymmi e Jorge Amado, com Marisa Monte, e "Se acaso você chegasse", de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins.




BELCHIOR, APENAS UM CORAÇÃO SELVAGEM.  Brasil, 2022.  Direção de Camilo Cavalcante e Natália Dias.  90 min.

Um dos maiores nomes da música popular brasileira é Antônio Carlos Belchior Fontenelles Fernandes (1946-2017), segundo palavras daquele que foi conhecido simplesmente como Belchior, cantor e compositor que não tem só um nome comprido, mas um talento muito grande também.  Belchior tem uma obra musical e poética forte, contestadora, produto talvez do coração selvagem que está no título do documentário de Camilo Cavalcante e Natália Dias.

O filme se apresenta como uma espécie de autorretrato do artista, porque montado a partir de suas performances, registros de apresentações, gravações musicais, falas e depoimentos do próprio compositor.  Ele mesmo, em filmagens recuperadas, e também no desempenho, ótimo, do ator Silvero Pereira, declamando poemas e letras do compositor.

Com isso, se resgata o grande trabalho de Belchior na música popular brasileira, desde a vinda do pessoal do Ceará para o Sul Maravilha.  Aquele pessoal, que incluía outros nomes que ficaram, como Fagner, trouxe a São Paulo e ao Rio Belchior, vindo da cidade natal de Sobral para vencer nas cidades grandes.  Vencer, não só no sentido do sucesso, como também da busca de uma renovação artística, de uma revolução jovem na música.  Que, por um lado, era seguidora dos Beatles e, por outro, voltada à realidade social e política brasileira, da tradição nordestina de Luiz Gonzaga à canção de protesto.

Belchior alcançou grandes voos, a partir das gravações que Elis Regina fez de algumas de suas canções, com tamanha força que o projetou nacionalmente a partir daí.  Ele só saiu de cena quando quis e por razões misteriosas, até sua morte em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul.

O documentário "Belchior, Apenas um Coração Selvagem" é todo centrado na obra musical e poética que ele criou, fazendo excelente trabalho de recuperação e organização dessa obra, que se torna um roteiro perfeito para todos que queiram conhecer ou relembrar o legado artístico de Belchior.



terça-feira, 5 de abril de 2022

DZIGA VERTOV 2021

Antonio Carlos Egypto




Dziga Vertov (1896-1954) foi um dos mais importantes cineastas da história do cinema.  Seu "O Homem com a Câmera", de 1929, que acompanha uma cidade do amanhecer ao anoitecer, retratando o seu cotidiano e celebrando a modernidade que a cidade russa conquistava, é um grande clássico e inspiração dos documentaristas desde sempre.

Vertov é considerado o criador do cinema verdade, aquele em que a câmera, como o olho humano, registra os fatos, os acontecimentos, sem sentimentalismo, livre das influências teatrais, do palco, dos estúdios.  A realidade, em lugar das coisas encenadas.  Por meio de filmes documentais e experimentais, Vertov fazia um cinema realista, que captava o momento histórico, as tensões, a evolução humana e material, guiado pelo olhar.  E desse modo redescobria as coisas, revia e significava os fatos.  De montador de filmes e noticiários, o diretor soviético se tornou um dos mais famosos documentaristas, além de teórico do cinema.

Reencontrar um filme considerado perdido de Dziga Vertov 100 anos após a sua realização, restaurado por Nikolai Izvolov, para reexibição nos cinemas, num trabalho de dois anos de uma produtora israelense, é um presente e tanto para todos.  O filme HISTÓRIA DA GUERRA CIVIL foi lançado em 1921 e exibido no 3o. Congresso Internacional Comunista em Moscou e nunca mais reexibido antes do seu relançamento em 2021, em festivais pelo mundo e que chega agora aos cinemas do Brasil, iniciando por ser apresentado em uma sessão especial do festival É TUDO VERDADE 2022.

Assisti-lo hoje é uma experiência incrível, emocionante.  Ver imagens captadas durante a guerra civil russa, de 1918 a 1921, com cenas filmadas em pleno campo de batalha, com a movimentação de tropas, armamentos e equipamentos, os confrontos, os momentos de relaxamento e cuidados pessoais, as imagens dos líderes e heróis do governo e do exército vermelhos, inclusive com uma breve aparição de León Trotsky, os prisioneiros, os julgamentos, as vestimentas e tudo o mais, nos coloca dentro dos acontecimentos.  Somos envolvidos por eles e por aquelas imagens distantes no tempo, mas magnificamente realizadas e recuperadas.  É como entrar num novo tempo e espaço.  Não importam os detalhes, a preocupação com tentar contar a história da guerra civil em sua cronologia real, recuperar e rearranjar suas partes.  Mais do que tudo, o que fica é o mergulho real naquele mundo, naquele período, naquela região geográfica.

Como um filme mudo, centenário, em preto e branco, pode ser tão empolgante?  A trilha sonora realizada por Roger Miller e Terry Donahue por certo contribui para isso e é uma criação à parte.  Não há registros do que Vertov utilizou como acompanhamento musical de seu filme silencioso à época.  Também não importa a conotação ideológica de apoio declarado ao regime soviético que se consolidava.  Porque, para Vertov, os fatos se expressam como são, podem ser vistos pela câmera como pelo nosso olhar atento, apurado.

Num tempo em que as narrativas tentam se impor aos fatos, como temos visto muito por aqui, o trabalho de Dziga Vertov segue atual e revolucionário.  Nos ensina a ver o que se passa, a observar.  As conclusões de cada um vêm depois.  No jornalismo sério, são os fatos que nos guiam.  Podemos observá-los sob diferentes ângulos e visões e interpretá-los de diferentes maneiras, mas ainda assim eles estão lá e é preciso respeitá-los.  93 min.



sábado, 2 de abril de 2022

3 DOCUMENTÁRIOS INTERNACIONAIS

Antonio Carlos Egypto

 

Da programação do festival É TUDO VERDADE 2022 (31/03 a 10/04), quero destacar três documentários internacionais que merecem atenção.

 


O primeiro deles é, na verdade, um pedido de socorro, um brado de alerta, uma busca desesperada pela comunicação com o mundo.  Chama-se DIÁRIOS DE MIANMAR (Myanmar Diaries) e não tem um diretor identificado.  Nem colaboradores ou técnicos nomeados.  É assinado pelo Coletivo Cinematográfico de Mianmar, simplesmente.  A razão é óbvia, para que seus realizadores pudessem preservar suas vidas, preservar-se de perseguições, prisões e tudo o mais.  Depois de mais um golpe militar, em 2021, a antiga Birmânia, hoje Mianmar, vive uma opressão violenta, que levou jovens ativistas a registrar como pudessem, na forma de acontecimentos diários, manifestações, repressão nas ruas, destruição, fome, que fazem um retrato assustador do país nesses tempos.  Para isso, foi preciso que trabalhassem juntos, mas cada qual com seus equipamentos e recursos (uma câmera escondida na janela de casa era suficiente para mostrar pessoas sendo agredidas e baleadas à altura da vista), buscando comunicar-se com o mundo pela tela do cinema, um modo mais efetivo e emocionante do que o dos noticiários de TV.  O que resultou é um trabalho muito bom.  Triste, de revoltar-se, embrulhar o estômago.  Necessário.  Muito necessário.  70 min.

 



A produção alemã, finlandesa e canadense, OS CARAS DO ESTREITO (The Strait Guys), dirigida por Rick Minnich, nos leva a conhecer figuras raras, pessoas que pesquisam, alimentam e divulgam soluções para o mundo.  Com persistência e otimismo, apesar de todas as dificuldades, custos e a descrença no projeto.  Dito assim mesmo, o projeto.  E que projeto é esse, que um engenheiro de minas tcheco e um pupilo juntaram forças com visionários russos, em busca de ousar o impossível?  Ou o que assim se apresenta?  O projeto é simplesmente ligar os Estados Unidos (Washington) por via férrea à Rússia (Moscou), numa rota que inclui um túnel de cerca de 100 quilômetros sob o Estreito de Bering.  Havendo dinheiro, questões técnicas parecem possíveis, mas seria preciso unir o então presidente norte-americano Trump a Putin, passando pela aquiescência dos extremos do Alasca e das comunidades russas isoladas.  Foram anos e anos de labuta, mas afinal tratava-se de vencer não só as distâncias, como a própria Guerra Fria, passando pela Europa e chegando à China. Tudo ainda parecia possível para daqui a algumas décadas, mas a pá de cal se dá agora, com o advento da guerra da Ucrânia.  Há espaço para a paz e a colaboração mútua no mundo ou isso é coisa de visionários?  100 min.

 



O documentário polonês O FILME DA SACADA (Film Balkonowy) fala de gente e de suas histórias.  Dirigido por Pawel Lozinski, da sacada de seu apartamento,  puxando conversa com os transeuntes que por ali circularam, com um microfone de longo alcance e uma filmagem feita de cima, provavelmente do primeiro andar do prédio.  Pawel estimula que as pessoas falem de si, da sua identidade, da vida, do que fazem, do que querem ou do que lhes interessa falar.  E como ele se revela capaz de ouvir de fato, o que é raro, e encontra amiúde alguns que sempre passam por ali, o que ele colhe é um painel humano muito interessante, de uma rua de Varsóvia.  Que poderia ser de São Paulo ou de qualquer outro lugar.  São desejos, sentimentos, humor, timidez, boa vontade, o que aparece.  Além dos problemas que conhecemos todos, da solidão, das separações, dos medos, ambiguidades, culpas, vícios, e também do desemprego, da prisão, da morte ou separação de uma pessoa querida.  Até patriotismo fajuto e crítica a imigrantes aparecem, mas de relance.  Não é o que mais importa aqui.  De forma aparentemente natural, bem editado, o trabalho flui como aquelas conversas rápidas que se podem ter de uma janela com a rua, ou de  uma janela a outra e que vão aos poucos se tornando familiares e podem até dar margem a confissões.  Simples e humano.  Profundamente humano.  100 min.