quinta-feira, 26 de maio de 2016

O BOTÃO DE PÉROLA

Antonio Carlos Egypto




O BOTÃO DE PÉROLA ( El Botón de Nácar) Chile, 2014, Direção e roteiro: Patricio Guzmán,   Documentário, 82 min.


A água vem do espaço, cria a vida, alimenta e serve de rota para povos indígenas da Patagônia e navegadores estrangeiros, forma a fronteira mais longa do Chile e é cemitério de  “desaparecidos” do regime de Pinochet.  Os oceanos contêm história e memória, podem também ter voz.  O botão de pérola encontrado no fundo do mar é uma dessas vozes eloquentes. 




O filme de Patricio Guzmán, um dos maiores documentaristas da atualidade, é extraordinariamente bem construído, de uma beleza plástica incontestável e não deixa um fio solto.  Todos os elementos levantados são muito bem amarrados e integrados num todo não só compreensível como inovador, surpreendente, até.

No cinema contemporâneo, a gente admite micro histórias, excertos, fios narrativos, ideias soltas ou sugeridas.  É um caminho alternativo.  Mas quando se vê um filme tão bem planejado e realizado como O BOTÃO DE PÉROLA, fica evidente a superioridade de um produto estruturalmente completo.  Trata-se de um documentário astronômico, etnológico, histórico, geográfico e político, que nos dá uma dimensão ampla e abrangente do Chile, em múltiplos aspectos do país.




Apenas para lembrar, é de Patricio Guzmán a trilogia A BATALHA DO CHILE, de 1975, 1977 e 1979, e o espetacular NOSTALGIA DA LUZ, de 2010 (Veja crítica de fevereiro de 2015, no cinema com recheio).  Com O BOTÃO DE PÉROLA, ele reafirma sua capacidade de construir obras complexas, plasticamente arrebatadoras, que são verdadeiras maravilhas do cinema documental. 


terça-feira, 24 de maio de 2016

PONTO ZERO

Antonio Carlos Egypto




PONTO ZERO.  Brasil, 2015.  Direção e roteiro: José Pedro Goulart. Com Sandro Aliprandini, Patrícia Selonk, Eucir de Souza, Larissa Tavares.  94 min.



O Ponto Zero pode ser entendido como o momento fugaz que caracteriza o presente.  Ao se tomar consciência dele, ele já passou, já é lembrança.  O que se vive, aqui e agora, pode ser uma ilusão, um sonho, um pesadelo, uma distorção da percepção ou, simplesmente, um elemento da memória, que retorna. Ou mesmo a expressão de um desejo ou de uma fantasia.

O filme gaúcho “Ponto Zero”, escrito e dirigido por José Pedro Goulart, explora esteticamente ideias como essas, ao retratar a noite e madrugada, conturbada e tensa, vivida pelo garoto Ênio (Sandro Aliprandini), de 14 anos de idade, entre a sua casa e a sua cama, as ruas desertas de uma Porto Alegre adormecida e ambientes insones em que a prostituição se destaca.  Ou, quem sabe, ela está apenas no outro lado da linha telefônica?




Onde está o presente?  Onde está a realidade?  Na vida diária do adolescente, que não suporta o conflito entre seu pai e sua mãe?  No ciúme doentio da mãe?  Na infidelidade explícita e desavergonhada do pai?  Na rádio que, de madrugada, se relaciona com as angústias de seus ouvintes, onde seu pai trabalha e parece pouco sensível aos sentimentos alheios?  Na busca da prostituta sofisticada, que atende ao telefone com mensagens literárias, por exemplo, de Cecília Meireles?

Uma fotografia deslumbrante de ambientação noturna, marcada por incessante chuva, domina a cena.  Explora o caráter misterioso da situação.  É etérea, pálida e com as luzes da noite, enfatizando a beleza dos pingos de chuva que insistem em não parar, das poças d’água na rua ou da piscina borbulhando. Ou invade o ambiente urbano, claustrofóbico, dos prédios aglomerados, passeia na bicicleta que percorre os canteiros das avenidas, mas que se mete em casa ou na sala de aula, de forma inesperada.




Há todo um clima de angústia e incerteza que domina o filme enquanto nos proporciona essa experiência estética que se dá por meio da ambientação, dos enquadramentos, da composição das cores e das luzes,  nas tonalidades marrom e amarelada que predominam nas cenas.

O jovem protagonista experiencia o que seu pai Virgílio (Eucir de Souza) explicita em um dos poucos diálogos que o filme tem: a vida, a morte e a sorte, as três coisas que existem no mundo, segundo o personagem.  Sobreviver a um dilúvio de angústia e solidão é mesmo uma questão de sorte, como se verá.




O elenco que segura a onda desse projeto pretensioso é muito bom.  Mas dependia do desempenho do ator estreante, Sandro Aliprandini, que está presente em, praticamente, todas as cenas.  Ele dá conta da responsabilidade, com uma entrega considerável a um papel que exige muito dele.


José Pedro Goulart é estreante em longas-metragens, mas dividiu com Jorge Furtado a direção de um curta-metragem famoso e premiadíssimo, em 1986, “O Dia em que Dorival Encarou o Guarda”.


domingo, 22 de maio de 2016

CERTO AGORA, ERRADO ANTES


Antonio Carlos Egypto




CERTO AGORA, ERRADO ANTES (Jigeumeun Matgo Geuttaeneun Teullida).  Coréia do Sul, 2015.  Direção: Hong Sang-soo.  Com: Jae-yeong Jeong, Kim-Min-Hee, Yeo-jeong Yoon, Ju-Bong Gi.  121 min.



Hong Sang-soo, o diretor coreano de “Certo Agora, Errado Antes”, já teve alguns filmes exibidos no circuito comercial dos cinemas por aqui: “Ha Ha Ha”, de 2010, “A Visitante Francesa”, de 2012, e “Filha de Ninguém”, de 2013.  É um cineasta que trabalha com a sutileza, com a inibição e com as demais dificuldades que se dão nos contatos humanos, com o uso do álcool e dos ambientes de bares e restaurantes, onde coisas acontecem, às vezes de forma abrupta ou inesperada.  E também com a repetição de situações, ou com as diferentes visões de determinados acontecimentos.




“Certo Agora, Errado Antes” também pode inverter a chamada para “Certo Antes, Errado Agora”.  É uma situação que se repete de forma diferente, em alguns aspectos, mostrando que as ações de cada um, por pequenas que sejam, podem transformar significativamente as relações que se estabelecem e o que resta na lembrança e na vida de cada um dos envolvidos.

A trama é simples.  Um diretor de cinema se dirige para a cidade de Suwon, onde seu novo filme será exibido e haverá um debate após a projeção.  Mas ele chega, por engano, um dia antes e fica sem nada para fazer. O que ocorre nesse dia livre é que ele conhecerá uma ex-modelo, que se dedica agora à pintura, e se estabelecerá uma intimidade entre eles, ao longo de todo esse dia em que convivem e se encontram também com pessoas da cidade, que conhecem a pintora. 




O repertório dos dois protagonistas para estabelecerem esse relacionamento é um tanto pobre, inibido, bloqueado.  Ao mesmo tempo, expressam um afeto genuíno um pelo outro, ainda que contido e até envergonhado.

Acompanhar esse jogo relacional em duas versões é bastante curioso e nos leva a repensar as formas como os relacionamentos podem se estabelecer e o que pode comprometê-los desde o início.  Mas é preciso aceitar a repetição de cenas, porque, em cada uma das versões, grande parte das coisas simplesmente se repetem sem mudanças.




O filme tem um clima delicado e suave, como de costume, no trabalho de Hong Sang-soo.  E os conflitos não tomam a forma de grandes dramas.  Apesar de conter situações intensas e inesperadas, tudo se passa num tom menor, ainda que a bebida jogue como fator desestabilizador.


Um filme que se foca no ritmo da vida pacata de uma pequena cidade, sem pressa, mostrando por meio de planos-sequência filmados com sutileza e uma bela fotografia como as relações humanas se dão.  Os protagonistas Jae-yeong Jeong e Kim-Min-Hee encontraram o tom certo e minimalista de expressão, para viver essa relação amorosa fugaz.



sexta-feira, 13 de maio de 2016

NÓS, ELES E EU


Antonio Carlos Egypto




NÓS, ELES E EU (Ney: Nosotros, Ellos y Yo).  Argentina, 2015.  Direção e roteiro de Nicolás Avruj.  Documentário.  85 min.


Nicolás Avruj é argentino de origem judaica.  Sua família, de perfil progressista, preserva tradições de ideais judaicos, como o sionismo, que fizeram parte de sua educação.  Aos 16 anos de idade, Nicolás ganhou uma viagem para conhecer Israel e, anos mais tarde, quis aprofundar o conhecimento daquela realidade, ficando mais tempo por lá e explorando o que não tinha visto ou entendido.

A oportunidade surgiu em 2000, a propósito de visitar um primo que estava vivendo temporariamente em Tel Aviv.  Só que, enquanto ele voava para lá, o primo voltava para a Argentina.  De modo que o plano não vingou.


Nicolás Avruj


Nicolás não se deu por achado, ficou cerca de três meses em viagem exploratória, arrumando jeitos de se hospedar, realizando pequenos trabalhos para bancar a viagem e, empunhando permanentemente sua câmera, foi conhecer tudo o que podia, tanto de Israel quanto da Palestina.

Para começar, não se apresentava como judeu, mas como argentino, simplesmente.  isso lhe permitiu conviver com palestinos na Faixa de Gaza, inclusive aceitando hospedagem na casa deles. Pôde conhecer as condições de vida, o cotidiano, os sentimentos e os valores que os movem.  Entender o posicionamento da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), então regida por Yasser Arafat, e até filmar uma assembleia do Hamas.  E também constatou o medo, a opressão, a revolta, o ódio, que estão presentes na vida daquele povo. 




Por outro lado, conviveu com judeus ortodoxos, com os de pensamento radical militarista, com os críticos da política do governo de Israel daquele momento, com uma jovem que visita casas de palestinos, como ele fez.  Ou seja, de todos os matizes.  Além dos pouco informados sobre a realidade dos palestinos.

O que ele registrou ao longo desses meses é de uma preciosidade incrível, é um relato veraz de um conflito que parece eterno e insolúvel.  As imagens passeiam por Tel Aviv, Jerusalém e seus diversos lados e contextos, Cisjordânia e Gaza, revelando a coragem e a audácia do cineasta argentino.  Ele atravessou os muros da incompreensão e pôs em xeque a relação entre o bem e o mal, com uma honestidade admirável.




De posse desse vasto material colhido, que chega a registrar a Segunda Intifada, ele não pôde trabalhar com isso de imediato.  Era forte e impactante demais.  Só quinze anos depois foi possível editar tudo isso, para produzir o documentário “Nós, Eles e Eu”, que acaba de ser lançado nos cinemas.  É um trabalho incrível, que merece ser conhecido.

Quando alguém pergunta hoje ao cineasta de que lado ele está, de Israel ou da Palestina, isso é o que mais o incomoda.  As coisas não são assim e não é possível responder essa perguntar, é sua convicção. Vendo o filme, percebe-se o impacto que causou nele, e causa em nós, espectadores, tudo aquilo.  Claro que só é possível desejar a paz, mas como, diante de tudo o que ele nos mostra?


segunda-feira, 9 de maio de 2016

RALÉ


Antonio Carlos Egypto




RALÉ.  Brasil, 2015.  Direção e roteiro: Helena Ignez.  Com Ney Matogrosso, Simone Spoladore, Djin Sganzerla, Zé Celso Martinez, Marcelo Drummond, Mário Bortolotto, Helena Ignez.  73 min.



“Ralé” é cinema alternativo, libertário, na contramão das tendências conservadoras e moralistas que parecem estar vencendo batalhas importantes no momento atual brasileiro.  É, portanto, muito bem-vindo para reforçar a ideia de que já avançamos o suficiente para não poder mais aceitar retrocessos nas ações coletivas e nas leis.

A começar da questão do desejo, do amor e do casamento gay, que tem amplo destaque no filme.  O casamento dos personagens Barão e Marcelo é uma espécie de fio condutor da trama, motivo de alegria e festa, ensejando manifestações claras e explícitas de afetividade e tesão.  Assim como eles, outros personagens se expressam com a mesma desenvoltura, sem amarras ou falsos pudores.




Não é só isso, o filme celebra a natureza, o espírito e a poética amazônica, a busca constante da liberdade e até a ayahuasca dos rituais do Santo Daime e da União do Vegetal.  Não tanto pelo caráter religioso, mas por poder vê-la sem o estigma da droga.  Já a maconha, estigmatizada socialmente ou não, é parte integrante e natural da vida dessas pessoas.  Sem grilos. 

A natureza também se faz presente na cidade, numa sequência em que uma chuva muito forte alaga ruas e destrói um guarda-chuva, algo já corriqueiro nos nossos dias.  A cena é bonita e serve de alerta e contraponto.  Sem dramas ou vítimas, com suavidade.




Os personagens riem, se divertem, dançam, cantam.  E a música brasileira é parte importante dessa grande celebração que é a vida, digamos, marginal.  Isso para ficar num termo que remete a um cinema caro a Helena Ignez.

São muitas sequências belas, ousadas, provocadoras, talvez, mas cheias de vitalidade e de crença na capacidade dos indivíduos de experimentar o sentido real da liberdade.  É, nesse sentido, um filme de alto astral.

O elenco é maravilhoso para a proposta da obra de Helena Ignez.  Ney Matogrosso se entrega ao papel de modo pleno e ainda canta divinamente, como de costume.  Zé Celso Martinez, da mesma forma, completamente solto e à vontade.  E também canta e se acompanha  ao piano.  Djin Sganzerla e Simone Spaladore estão ótimas.  Gente do teatro alternativo, como Mário Bortolotto e Marcelo Drummond, além da própria Helena Ignez, fazem participações importantes.




Os personagens se confundem com os atores, que são, em larga medida, muito próximos deles mesmos.  Ficção documental é o tom, já que não há uma história a contar, mas coisas legais a fazer.  E que eles fazem com a maior naturalidade do mundo.  Ou, pelo menos, assim parece.

Há espaço para tanta soltura, tanto descompromisso, tanta liberdade e diversidade nesses tempos tão tensos, de crises, conflitos e guerras para todo lado?  Por que não?  Cada um busca os seus caminhos onde pode se encontrar.  Uns, nos prédios envidraçados dos escritórios, outros, na selva amazônica.  Talvez embalados pela mesma e rica música popular brasileira, que de Luiz Gonzaga a Ney Matogrosso acompanha sonhadores de todos os tipos.  A seleção musical, que a própria diretora escolheu para o filme, é preciosa.  E a realização toda é muito boa. 


terça-feira, 3 de maio de 2016

MARAVILHOSO BOCCACCIO


Antonio Carlos Egypto




MARAVILHOSO BOCCACCIO (Maraviglioso Boccaccio).  Itália, 2015.  Direção: Paolo e Vittorio Taviani.  Com Ricardo Scarmarcio, Kim Rossi Stuart, Jasmine Trinca, Lello Arena, Paola Cortellesi, Carolina Crescentini.  115 min.



Giovanni Boccaccio (1313-1375) e seu Decameron, com cem histórias escritas entre 1348 e 1353, marcam uma ruptura com a moral medieval e introduzem um realismo humanista, em que a sexualidade e a perversidade ocupam papel de relevo.  Atraente e polêmico material, marco da literatura, um dos responsáveis pela fixação do idioma italiano, foi objeto da atenção dos melhores cineastas da Itália.

Em 1962, o filme “Boccaccio 70”, com quatro episódios, reuniu Federico Fellini, Luchino Visconti, Vittorio De Sica e Mario Monicelli numa comédia antológica.  Em 1971, foi a vez de Pier Paolo Pasolini filmar “Decameron”, com absoluto destaque para o erotismo.  Outro grande trabalho cinematográfico.  Agora é a vez dos irmãos Taviani, dupla brilhante de cineastas, contarem histórias livremente inspiradas no Decameron de Boccaccio. 




A primeira coisa a apontar sobre esse filme dos irmãos Taviani é que ele é de uma beleza ímpar.  Filmado na Toscana e Lazio, em lugares encantadores e envolvendo antiquíssimos castelos de até mil anos de idade, nos leva diretamente à cena medieval.  A variação das cores e tonalidades se alterna para melhor expressar as diferentes situações contadas pelos narradores.  Um elenco jovem, de belas moças e rapazes, contribui para a estética da obra, de maneira relevante. Assim,  podemos dizer que “Maravilhoso Boccaccio” é em tudo e por tudo um filme sedutor.

As histórias escolhidas e o tom com que são mostradas enfatizam o amor em seus múltiplos ângulos: do grotesco ao dramático e ao erótico, como antídoto para a morte, às vezes cruel e opressor, às vezes ingênuo e equivocado.




A criação artística, a literatura, mostra os caminhos da imaginação, absolutamente essencial e necessária para enfrentar o mal, a tragédia, no caso, aqui, a peste negra, que devastava as cidades da Toscana na época em que Boccaccio escreveu.

Um grupo de homens e mulheres jovens se refugia numa vila remota, nas colinas que cercam Florença, para escapar da peste e viver em comunidade com absoluta simplicidade, contando histórias uns para os outros.  A imaginação é a seiva da vida desses jovens, em especial, a das mulheres, que tomam a dianteira da ação, a começar por decidir deixar a cidade, talvez numa proposta de vida imoral.  Mas o que é a moral, diante da grandeza do amor e da própria sobrevivência?




O melhor que tenho a propor é ver onde está passando o filme perto de você, comprar seu ingresso, relaxar e, como diria aquele programa infantil da TV Cultura: “Senta, que lá vem história”.