quinta-feira, 28 de novembro de 2013

TREM NOTURNO PARA LISBOA

                        
Antonio Carlos Egypto



TREM NOTURNO PARA LISBOA (Night Train to Lisbon).  Alemanha, Suíça, 2013.  Direção: Bille August.  Com Jeremy Irons, Mélanie Laurent, Christopher Lee, Charlotte Rampling, Bruno Ganz.  111 min.



Uma boa história, um romance importante ou com sucesso de público, podem ser o ponto de partida para um grande filme.  Mas, muitas vezes, não é o que acontece. O excesso de cuidados na adaptação, a tentativa de ser fiel à obra e ao seu autor, podem inibir o trabalho do cineasta e dos atores e o resultado acabar sendo pífio.

Mesmo que não renda um grande filme, uma boa história, com densidade e sensibilidade, se puder ser passada para as telas, pode se comunicar bem com o público e alcançar êxito. É como vejo “Trem Noturno para Lisboa”, o filme do dinamarquês Bille August. O diretor, que já fez trabalhos como “Pelle, O Conquistador”, em 1988, “As Melhores Intenções”, em 1992, e “A Casa dos Espíritos”, em 1997, sabe contar bem uma história, de forma clássica.  Se o material a ser adaptado for bom, o resultado tende a não decepcionar. Aqui trata-se de um romance best seller, que vendeu 2,5 milhões de exemplares pelo mundo, escrito por Pascal Mercier, pseudônimo do escritor suíço Peter Bieri, natural da bela cidade de Berna, a capital do país.



É justamente em Berna que a trama começa.  Raimund Gregorius (Jeremy Irons), suíço, professor de latim no ensino médio, se depara com uma jovem portuguesa tentando saltar de uma ponte, em busca da morte, nas águas geladas do rio.  Com ela vem um casaco que contém um livro de um médico lusitano, Amadeu do Prado, e uma passagem de trem para Lisboa.  A mulher desaparece, mas a passagem será utilizada e o livro, mais do que lido, encantará de tal forma o leitor que este mergulhará na vida de seu autor, já morto, e passará a reconstruir e a se envolver com a história pessoal dele.  Uma história que se insere num dos momentos mais negros da política portuguesa, em tempos de fascismo.  Descobrirá a resistência dos portugueses, à terrível ditadura de Salazar, que durou mais de 40 anos, apequenou Portugal, torturou e matou barbaramente.  Mas a vida dos resistentes era rica de coragem, amor, traição, renúncia, medo e convívio com a opressão e a morte.  Uma vida tão intensa e cheia de nuances que toma de assalto a pacífica e rotineira vida intelectual do professor.



É sobre esse processo de descoberta de uma identidade fascinante, mas em tudo diferente da de Raimund, que se move toda a narrativa, centrada na figura do protagonista suíço.  É ele quem vive, descobre, reflete, se relaciona com as pessoas.  Natural que ele fale e pense em inglês.  O filme, porém, é quase todo passado em Lisboa e soa estranho que todas as falas, inclusive a dos portugueses entre si, sigam sendo em inglês.  Só em raros momentos uma palavra em português aparece.  Essa é uma solução ruim para o filme.  Mas que não chega a comprometer, nem a narrativa, nem a produção bem cuidada da fita.



O diretor Bille August não é um inovador, mas conduz com segurança sua trama, apoiado num elenco espetacular.  Além de Jeremy Irons, ótimo, temos Charlotte Rampling, Bruno Ganz, Christopher Lee, Martina Gedeck, Mélanie Laurent.  Ou seja, um super elenco que sustenta muito bem essa aventura cheia de intrigas políticas e emocionais de “Trem Noturno para Lisboa”.  Quem gosta de acompanhar um enredo atraente vai apreciar o filme.


sábado, 23 de novembro de 2013

A IMAGEM QUE FALTA

                        
Antonio Carlos Egypto



A IMAGEM QUE FALTA (L’Image Manquante).  Camboja, França, 2013.  Direção de Rithy Panh.  Documentário. 95 min.


Rithy Panh viveu na infância uma história tão absurda quanto trágica, quando teve toda a sua família dizimada pela perseguição, pela fome e pela separação de seus membros, durante o regime do Khmer Vermelho, no Camboja, entre 1975 e 1979.  Sobrevivente dessa opressão, foi viver fora do país, se tornou cineasta e seu cinema se pauta, principalmente, pelo resgate da memória daquele período histórico.  O regime, que foi capitaneado por Pol Pot, acabou virando um tabu no país, do qual ninguém fala, nem quer se lembrar.  Romper esse tabu, revirar e mexer nessas memórias, tanto as pessoais quanto as que podem ser provocadas por uma câmera que perscruta quem viveu tudo aquilo, como algoz ou vítima, é seu principal objetivo cinematográfico.

Embora militante dessa causa de explodir o tabu cambojano do Khmer Vermelho, Rithy Panh não faz um cinema de pregação ou propaganda.  Apesar de tudo o que viveu, ainda consegue ser sutil, ao mexer nesse vespeiro, que envergonha as pessoas que seguem vivas.  E registra que o Camboja foi uma subjugada colônia francesa, fazia parte da Indochina, enfrentou esse regime dito comunista do Khmer Vermelho, incompetente e delirante, mas vive hoje na mesma miséria e exploração humanas de sempre, num mundo capitalista que segue oprimindo por outros meios, perpetuando a pobreza e a miséria.



Nada se compara, é claro, ao genocídio que o Camboja viveu naqueles quatro anos da década de 1970.  Um país que tinha sete milhões de habitantes viu morrer quase dois milhões de pessoas.  Perseguidos e executados como inimigos do povo, por razões ideológicas ou por qualquer tipo de resistência a uma vida insustentável.  A maioria, porém, morreu mesmo de fome.  Não poderia sobreviver a uma política de trabalhos agrícolas forçados, de sol a sol, em busca de metas impossíveis, dependendo de uma ração de arroz cada vez mais reduzida para sobreviver.  Tudo em nome da coletivização da produção para um país que deveria, segundo seus dirigentes da época, se tornar puramente agrícola, só de camponeses e políticos.  O pai do cineasta foi o primeiro a morrer na família, de fome, por decisão própria, rejeitando a situação em que estava colocado.  O que tornou ainda pior a vida dos que ficaram.



Tudo isso fica muito evidente no filme “A Imagem que Falta”, em que Rithy Panh relata na primeira pessoa, sem que sua imagem apareça, suas memórias de infância.  Sua fala em off vai narrando a sua história.  O problema é encontrar imagens para reconstruí-la.  Não há.  O país mudou, está diferente.  O que restou de imagens daquele regime é quase sempre filme de propaganda, idealizando os avanços, com slogans ideológicos e uma postura equivocadamente patriótica.  Pode-se ver o artificialismo e a falsidade daquela publicidade, mas não basta. 

É aí que o filme de Rithy Panh inova.  Ele procurou artistas que reconstruíssem os locais, os animais e as pessoas das suas lembranças e montou as cenas todas com figuras de argila que povoam o filme do começo ao fim, entremeadas por filmes e fotos do período, aquilo que foi possível juntar.  Embora tendo partido de um livro, “A Eliminação”, de Christophe Bataille, é da sua experiência particular que se trata.  São as suas imagens criadas por meio da argila que formam a composição do filme.  Segundo o cineasta, “não é a imagem final, nem a busca de uma única imagem, mas a imagem objetiva de uma busca: a busca que o cinema permite”.



Quem viveu tal experiência, ainda que se afaste e conquiste novos rumos, nunca poderá esquecer o que viveu.  É preciso voltar às origens, para poder elaborar uma perda tão brutal, que vai das pessoas afetivamente mais importantes na vida à própria identidade nacional.  Com uma mensagem tão impactante pelo próprio testemunho pessoal, era preciso encontrar o meio, a imagem para transmiti-la.  Ele não poderia ter encontrado melhor forma do que a dos bonecos de argila, que realizam o que ele buscou e suavizam a barbárie, tornando-a mais assimilável.  A reação que produz no espectador é de interesse e de ouvir o que o cineasta tem a dizer e não de rejeição, como poderia acontecer se o filme carregasse em imagens violentas.  Um brilhante trabalho que recebeu o prêmio Um Certo Olhar, no Festival de Cannes 2013. 

“A Imagem que Falta” fez parte de uma mostra do cinema do diretor cambojano, realizada pelo Centro Cultural do Banco do Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro.  Pude conhecer um pouco mais da obra de Rithy Panh, vendo outros dois filmes dessa mostra.  “Uma Barragem Contra o Pacífico”, de 2008, que, por meio de romance de Marguerite Duras, retrata a história de uma viúva francesa, vivendo com seus dois filhos na Indochina colonial, que vê suas terras serem inundadas pelo mar, comprometendo a produção do arroz.  Daí a necessidade da barragem que dá título ao filme.  É uma bela ficção, com Isabelle Huppert no elenco.



Vi, ainda, “Os Artistas do Teatro Queimado”, de 2005, que mostra o Camboja como uma terra de sonhos destruídos.  O teatro Suramet, de Phnom Penh, capital do país, foi construído em 1966 e devastado por um incêndio acidental, em 1994.  Ficou como estava, arruinado, mostrando o descaso atual com a cultura no país.  Só que um grupo de atores e atrizes vive lá assim mesmo, ensaia e faz apresentações precárias para turistas.  Só muito amor à arte e a experiência de viver com tão pouco podem explicar isso.  Mas tudo bem, na falta de comida, eles comem os morcegos que habitam o local.

O cineasta do Camboja, Rithy Panh, é um grande realizador cinematográfico dos nossos dias.  Só lamentei não ter tido a oportunidade de ver os outros filmes dele que foram exibidos nessa mostra.


terça-feira, 19 de novembro de 2013

FAVORITOS DA 37ª. MOSTRA

                        
Antonio Carlos Egypto


Dos cerca de 50 filmes que vi na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2013, não há nenhum que tenha sido “o filme da minha vida”, como dizia a chamada publicitária.  Nem que eu considere uma obra-prima ou tenha me causado um impacto inesquecível.  No entanto, gostei da maioria dos filmes.  Foi uma seleção de muito boa qualidade, talvez menos deslumbrante do que em outras edições, mas muito acima da média do que se lança no circuito comercial dos cinemas, regularmente.

Uma parte significativa desses filmes será lançada ao longo dos próximos meses e anos e pode contribuir para a fruição cinematográfica dos frequentadores habituais dos cinemas.  Ou acabará sendo baixada on line  ou será conhecida em DVD ou na TV a cabo.  Hoje há muitas possibilidades de acesso a bons filmes, mesmo os mais raros ou de filmografias mais distantes.  Em que pese o marketing avassalador e o impressionante número de salas de cinema em que os blockbusters impõem sua presença.  E isso, claro, é o que mais repercute nas diversas mídias.  Mas felizmente há os festivais, como Cannes, Berlim, Veneza e outros, que possibilitam que um outro tipo de cinema também possa ser visto.  A Mostra de São Paulo, há muitos anos, tem sido um bálsamo para os cinéfilos.  Continua sendo.

Pela Confraria Lumière, como fazemos todos os anos, sou chamado a indicar os filmes que mais gostei de ver na Mostra.  Aí vai, portanto, a minha lista dos 10 mais:


PAIS E FILHOS

1 – PAIS E FILHOS, de Kore-Eda.  Japão.
2 – INSTINTO MATERNO, de Calin Peter Netzer.  Romênia.
3 – O QUE OS HOMENS FALAM, de Cesc Gay.  Espanha.
4 – MISS VIOLENCE, de Alexandros Avranas.  Grécia.
5 – UM TOQUE DE PECADO, de Jia Zhang-ke.  China.
6 – O GRANDE MESTRE, de Wong Kar Wai.  Hong Kong.  
7 – CORTINAS FECHADAS, de Jafar Panahi e Kambuzia Partovi.  Irã.
8 – ANA ARÁBIA, de Amos Gitai.  Israel.
9 – VIDA QUE SE DESFAZ, de Sébastien Pilote.  Canadá.
10 – LA JAULA DE ORO, de Diego Quemada-Diez.  México.

Gostaria de destacar, ainda, OS NÁUFRAGOS DA LOUCA ESPERANÇA, de Ariane Mnouchkien, da França, e O JARDINEIRO, de Mohsen Makhmalbaf, de Israel-Irã, como sessões cinematográficas muito compensadoras também.




sexta-feira, 15 de novembro de 2013

TATUAGEM

                        
Antonio Carlos Egypto



TATUAGEM.  Brasil, 2013.  Direção e roteiro: Hilton Lacerda.  Com Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa, Rodrigo Garcia, Sílvio Restiffe, Sylvia Prado.  110 min.

“A porta do barraco era sem trinco
Mas a lua furando nosso zinco,
Salpicava de estrelas nosso chão...
Tu pisavas os astros, distraída,
Sem saber que a ventura desta vida
É a cabrocha, o luar e o violão...”

Esses são os versos finais de “Chão de Estrelas”, letra de Orestes Barbosa para um grande clássico da música popular brasileira, que teve sua primeira gravação realizada em 1937 por Sílvio Caldas, também autor da canção.



O que tem isso a ver com o filme de Hilton Lacerda, “Tatuagem”?  Chão de Estrelas é o nome de uma casa de shows e teatro alternativo, onde os personagens provocavam a ditadura brasileira da época, em 1976, no Recife. Um momento em que a ditadura militar já dava sinais de esgotamento, mas a censura permanecia ativa.  Os espetáculos de cabaré do Chão de Estrelas procuravam mexer com a moral estabelecida, por meio do escracho, da nudez, do homoerotismo, de um modo um tanto histérico, alternando cantos, danças e performances, que usam letras chulas e palavrões, com belas canções da MPB.  Daí se vê que o nome do estabelecimento não é gratuito, é uma homenagem à canção brasileira.  Assim como a interpretação de “Esse Cara”, de Caetano Veloso, por Clécio (Irandhir Santos), marca o momento da conquista do soldado Fininha (Jesuíta Barbosa).  Ou, ainda, o encerramento pregando a paz, após a guerra vivida, que convoca a gravação de Dalva de Oliveira para cantar, a plenos pulmões, “Bandeira Branca”.  O que é mais alternativo reverencia a velha e nova MPB.



“Tatuagem” é um filme que mostra a resistência pelo lado da contestação anárquica, comportamental e de valores.  É um filme libertário e, ao mesmo tempo, provocador, também para os dias de hoje.  Podemos relacioná-lo na nossa história recente às contestações do teatro Oficina, do Zé Celso, dos Dzi Croquettes ou dos primeiros trabalhos provocadores do cinema de Pedro Almodóvar, na Espanha recém-liberada do franquismo.  Para se contrapor à repressão, nada melhor do que a festa, correndo o risco de acabar na cadeia.

O diretor pernambucano Hilton Lacerda é um experiente roteirista de filmes, como “Baile Perfumado”, de 1997, “Amarelo Manga”, de 2003, “Árido Movie”, de 2004, “A Febre do Rato”, de 2011, entre outros.  Codirigiu, com Lírio Ferreira, o ótimo documentário “Cartola – Música para os Olhos”, de 2007, outra incursão dele na música brasileira.  Dirige agora seu primeiro longa de ficção, com muito vigor.



No elenco, o grande destaque vai para o protagonista Irandhir Santos, que a cada filme se afirma como um dos melhores atores do cinema brasileiro.  Mas Jesuíta Barbosa e Rodrigo Garcia também dão bem conta de seus papéis, assim como o restante do elenco.  “Tatuagem” venceu o Festival de Gramado, obtendo o Kikito de melhor filme.  Foi exibido também no Festival do Rio 2013 e na 37ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.


quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O MAR AO AMANHECER

                        
Antonio Carlos Egypto



O MAR AO AMANHECER (La Mer à l’Aube).  Alemanha, França, 2011.  Direção e roteiro: Volker Schlöndorff.  Com Léo-Paul Salmain, Marc Barbé, Ulrich Matthes, Jean-Marc Roulot.  90 min.


Um grande filme, muitas vezes, nos conquista pelas inovações narrativas que promove ou até pela ausência de qualquer história.  É como o escritor, por exemplo, o cronista, que é capaz de escrever sobre nada.  Seu talento salta à vista.

Um grande filme pode nos trazer uma beleza plástica que impacta ou, ao contrário, exibir a pobreza e a sujeira de modo a nos envolver, chocar, talvez, pelo uso hábil da câmera.  Atores e atrizes excepcionais também podem alavancar muito uma película.

Nada disso, porém, exclui o prazer que podemos ter em ver uma boa história sendo contada pelo cinema.  Um tema importante, um bom roteiro, o cuidado visual, boas interpretações, cabem muito bem numa trama contada com começo, meio e fim. A   história pode se resumir a seguir os modelos do gênero cinematográfico a que pertence utilzando-se de seus artifícios e ficando previsível. Mas não é o que acontece aqui.



 “O Mar ao Amanhecer” é um filme simples na aparência, de narrativa tradicional, mas poderoso no impacto que causa, na capacidade de nos provocar tanto o sentimento quanto a reflexão.  Mérito do experiente e competente cineasta Volker Schlöndorff, de filmes importantes como “O Jovem Törless”, de 1965, “Um Amor de Swann”, de 1983, e “O Tambor”, de 1979, que levou a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de filme estrangeiro.

Schlöndorff fez parte do chamado novo cinema alemão dos anos 1970, 1980, que nos revelou diretores como Rainer Werner Fassbinder, Werner Herzog, Wim Wenders.  Uma penca de talentos tentando resgatar a história alemã, suas marcas profundas e as reflexões necessárias à sua superação, por meio do cinema.



No caso deste, “O Mar ao Amanhecer”, estamos em outubro de 1941.  No 18º. mês de ocupação da França pelos nazistas, jovens comunistas da Resistência matam um oficial alemão.  A retaliação exigida por Hitler é a morte de 150 prisioneiros franceses.  Caberá aos colaboracionistas escolher entre os comunistas quem vai para o fuzilamento.  O que pode envolver um jovem apaixonado, prestes a se casar e em vias de ser solto.  O seu drama e o dos demais envolvidos tem uma força capaz de nos engasgar e fazer marejar os olhos.  A questão política e humanitária mantém-se em primeiro plano.  Um filme de um cineasta com talento cinematográfico e lucidez política que vale a pena ver.


terça-feira, 5 de novembro de 2013

CINEMA LATINO-AMERICANO - 2013

                         
Antonio Carlos Egypto

O cinema latino-americano teve presença significativa na 37ª. Mostra internacional de Cinema de São Paulo.  Consegui ver vários dos filmes programados para esta edição. Da Argentina, muito bom foi “Wakolda”, de Lucía Puenzo, sobre uma família na Patagônia que conviveu, sem saber, com Joseph Mengele, nos anos 1960.  Ele morreria em 1976 no Brasil, em Bertioga.  É uma história bem contada.  “El Crítico”, de Hermán Guerschuny, é uma comédia que brinca com a profissão de crítico de cinema.  É divertida, mas irregular.  “Habi, a estrangeira”, de Maria Florencia Álvarez, deixa a desejar, ao contar a história de uma adolescente que resolve assumir uma identidade muçulmana.  O cinema argentino, que tem sido apresentado regularmente no circuito comercial brasileiro, não chegou a ter grande destaque desta vez na Mostra.

Wakolda

Do Uruguai veio “O Militante”, de Manolo Nieto, que recebeu prêmio especial da crítica, mas que, a meu ver, não chega a lugar nenhum. Nem conta uma história, nem se aprofunda num clima que nos faça refletir de fato sobre alguma coisa importante.

De Cuba, vi “La Partida”, de Antonio Hens, um pouco mais ousado e com alguma inventividade, ao tratar de um relacionamento homossexual, em meio a carências sociais e familiares intensas.

“Casadentro”, de Joanna Lombardi, foi o filme do Peru e este me convenceu bem mais, ao falar de quase nada, ou seja, da rotina de uma mulher de 81 anos dentro de casa, às voltas com a cachorra e recebendo uma visita da família da filha.  Onde, aparentemente, nada acontece pode-se compreender o envelhecimento, as marcas emocionais do passado e o significado da rotina na sobrevivência psíquica.

Casadentro
 
O melhor da América Latina nesta Mostra, porém, veio do norte: do México.  “Las Horas Muertas”, de Aaron Fernandez, também aborda uma situação de espera, onde pouca coisa acontece.  Passa-se num motel, onde uma mulher aguarda seu amante e se encontra com um adolescente que cuida do estabelecimento, enquanto seu tio se restabelece de uma enfermidade.  Eles vão se descobrindo, se relacionando, lidando com suas fantasias e esperanças, longe da cidade, num local apropriadamente isolado.  O clima é tudo nesse filme.

La Jaula de Oro

Do México nos veio, também, “La Jaula de Oro”, de Diego Quemada-Diez, prêmio da crítica como melhor filme e menção honrosa de ficção pelo júri . O filme acompanha a jornada longa e perigosa de alguns adolescentes que saem de favelas da Guatemala e atravessam o México, em busca de chegar a Los Angeles, nos Estados Unidos.  À espera de uma espécie de paraíso que possa compensar o inferno de tal travessia.  A crueldade, a ganância e a sordidez humanas ficam mais evidentes diante de jovens migrantes ilegais que ainda ousam acreditar e sonhar.  Grande filme, que deve estrear brevemente nos cinemas.

Como se pode ver, se o cinema latino-americano não foi a grande expressão cinematográfica da atualidade, esteve longe de decepcionar.


domingo, 3 de novembro de 2013

O GRANDE MESTRE

                         
Antonio Carlos Egypto



O GRANDE MESTRE (Yi Dai Zong Shi)China, 2013.  Direção: Wong Kar Wai.  Com Tony Leung, Zhang Ziyi, Chang Chen.  120 min.


Wong Kar Wai, cineasta chinês nascido em Xangai, mas vivendo e produzindo em Hong Kong, se destacou principalmente por filmes que abordam com sutileza e complexidade o terreno do relacionamento amoroso.  Belíssimos enquadramentos, imagens requintadas, uso sofisticado da luz, da cor e de figurinos, costumam compor criações como “Amores Expressos”, de 1994, “Felizes Juntos”, de 1997, “Amor à Flor da Pele”, de 2000, ou “2046”, de 2004.  As relações humanas no romance adulto e temas como desejo e sexo, fidelidade, traição, ciúmes, fazem parte do seu cardápio fílmico habitual.

Ele também já havia feito pelo menos uma incursão no terreno dos épicos de artes marciais, em “Cinzas do Passado”, de 2008.  Espadachins, assassinos de aluguel e luta pelo poder, se associaram, assim, à relação amorosa, gerando um novo tipo de espetáculo, do gênero cultivado também por outros diretores chineses, como o ótimo Zhang Yimou, o mestre das cores.



O novo filme de Wong Kar Wai, o décimo longa de sua carreira, “O Grande Mestre”, vai na linha do super espetáculo, um novo drama épico de artes marciais, passado na tumultuada China dos anos 1930.  Inspira-se na vida do lendário Yip Man (Tony Leung), considerado mentor de Bruce Lee.  E mostra o kung-fu como uma peça de importância fundamental na história da China, enquanto arte e instrumento de poder.  O que dá margem a lutas muito bem encenadas, de grande beleza plástica, em meio à chuva, à neve e à arquitetura chinesa tradicional.  É tudo muito bonito, espetacular.

Nem por isso, o diretor abandonou suas tramas complexas.  Os elementos da história envolvem guerras, em especial, o domínio japonês sobre a China, as questões familiares, o desejo, a memória e, como não poderia deixar de ser, o amor.  Wong Kar Wai não se perde na superprodução.  Procura dar substância à narrativa, investindo numa dimensão histórica e na de relações pessoais intensamente vividas.  Não há lutas em excesso, as coisas estão devidamente equilibradas.



Os espectadores acostumados à sua abordagem mais intimista podem estranhar o tema principal de “O Grande Mestre” e sua concepção de espetáculo.  Há quem não se interesse por kung-fu ou por Bruce Lee, por exemplo.  Ou não tenha apreço especial por artes marciais.  Quem gosta de cinema, no entanto, não vai se decepcionar.  É um espetáculo que enche os olhos, se destaca pelo som, pela direção de arte, pelas interpretações e tem muitos elementos para prender a atenção, além do kung-fu.

Os mesmos enquadramentos de beleza plástica, as imagens requintadas, o uso sofisticado da luz, das cores e dos figurinos, além da complexidade narrativa, estão lá, como sempre.  É mais um grande filme de Wong Kar Wai.  Num gênero capaz de amealhar, quem sabe, um público maior para as salas de cinema do que aquele que tem acompanhado e curtido a obra do diretor até aqui.  “O Grande Mestre” estreou na 37ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e deve entrar brevemente no circuito comercial dos cinemas.