quarta-feira, 21 de junho de 2023

SEUS OSSOS, SEUS OLHOS

Antonio Carlos Egypto

 

 



SEUS OSSOS, SEUS OLHOS.  Brasil, 2019.  Direção e roteiro: Caetano Gotardo.  Elenco:  Caetano Gotardo, Malu Galli, Vinícius Meloni, Carlos Escher, Carlota Joaquina.  119 min.

 

“Seus Ossos, Seus Olhos”, novo trabalho cinematográfico de Caetano Gotardo, é um filme que trata de intimidade, de encontros humanos, afetivos e sexuais, e de suas dificuldades.  Sempre partindo do corpo e de seu conforto ou desconforto nos relacionamentos.  E também de sua expressão e de seus movimentos, incluindo a dança.

 

O personagem central da história é um cineasta, vivido pelo próprio Caetano Gotardo, que se desloca pela cidade, encontra amigos e amigas, relaciona-se com seu namorado, mas está aberto a outros contatos homoeróticos. Suas andanças revelam o quanto as situações estão indefinidas.  Há encontros que trazem prazer, exploram o desejo, outros que trazem dificuldade de comunicação, desconforto, instabilidade. 

 

Uma das primeiras sequências do filme mostra o protagonista procurando uma posição para ficar cômodo no sofá ou no chão, enquanto sua amiga vai pegar uma cerveja, e não encontra posição.  Mesmo diante de uma antiga amiga, um momento pode tornar-se desconfortável ou algo estranho.

 

Do mesmo modo, em outra sequência, no metrô, o acaso leva a um encontro bem-sucedido e honesto.  Algo inesperado sempre pode acontecer, as situações são instáveis, envolvem percepções subjetivas que atuam nas relações, consciente ou inconscientemente.

 




A par de tudo isso, a poesia, um texto reflexivo, uma palavra, podem ressignificar as coisas, dar sentido a elas.  Curiosamente, o que vale para uma situação pode se adaptar perfeitamente a outra.  Palavras podem valer para um momento específico, mas também para outro, em diferentes tempos e com diferentes pessoas.  Como se o texto produzisse a relação, simbolicamente.  O deslocamento entre som e imagem e sua relação com a memória são parte importante desse experimento existencial e fílmico.

 

O fluir da narrativa nos remete, com sensibilidade, aos encontros, tanto deliberados quanto fortuitos, que emergem da vida cotidiana, quando se está disposto a experimentá-los.  Essa mesma abertura é pedida ao espectador.  Os tempos mortos, os tempos de espera, a poesia ou o movimento que preenchem essa espera, estão nos dizendo coisas o tempo todo, aparentando não dizer quase nada.  Elementos aparentemente soltos ou fortuitos compõem um quadro da intimidade humana, do mergulho no ser e na alteridade.

 

Um filme para se deixar levar, observar e pensar nas coisas e na vida.  Sem pressa, com calma, fruindo cada momento.  Pode ser uma ótima experiência, mas também pode incomodar quem tem dificuldade para pôr sua ansiedade sob controle.  Ou para quem busca respostas, explicações sobre as coisas.  Aqui estamos no terreno fluido dos sentimentos, sensações, emoções, não da racionalidade e objetividade, mas da subjetividade.  É isso.



 

domingo, 18 de junho de 2023

VIVA CINEMATECA

                   

Antonio Carlos Egypto

 

 



A Cinemateca Brasileira tem sede em São Paulo, no bairro da Vila Mariana, Largo Senador Raul Cardoso, 207, num espaço que abrigou no passado o Matadouro Municipal.  Lugar amplo, bonito, com duas salas de cinema no seu interior, projeção ao ar livre e espaço de circulação, que permite eventos como feiras, passeios ou uma vista do pôr do sol, no final da tarde, abertos ao público.

 

Escritórios, laboratórios e salas equipadas garantem a função precípua da Cinemateca: guardar, recuperar, catalogar e digitalizar um grande acervo fílmico para a preservação e difusão do audiovisual do país.  Ou seja, a preservação da história e da memória do nosso cinema, das grandes produções de TV e sua disponibilização não apenas aos estudiosos, mas ao público em geral.  Isso se dá por meio de exibições regulares, não só de seu acervo, mas de grandes filmes do cinema mundial, que vão sendo restaurados e difundidos pelas Cinematecas de todo o mundo.

 

Pois bem, tudo isso está sendo ampliado e revitalizado a partir da reabertura da Cinemateca Brasileira, que se deu em maio de 2022, liderada pela Sociedade Amigos da Cinemateca, após um período de abandono, descaso, corte total de verbas e consequências sérias, como um incêndio no galpão da Vila Leopoldina, que minou parte do acervo. 


 



Agora, contando com financiamento das leis de incentivo à cultura, a Cinemateca dispõe de recursos para revitalizar o acervo, modernizar a instituição e percorrer o país com uma programação itinerante.  O projeto Viva Cinemateca envolve a ampliação das áreas de guarda, tratamento de acervo e restauração.  Expansão do espaço de laboratório e atualização tecnológica, visando garantir a sobrevivência dos 125 anos do cinema brasileiro, desde os antigos filmes do início do século XX, a chamada coleção de nitratos (facilmente inflamáveis) até os famosos cinejornais futebolísticos do Canal 100 e as produções icônicas da TV brasileira.

 

É com grande satisfação que vemos a Cinemateca reviver de forma tão intensa e competente.  O público está vindo assistir às mostras de cinema, e houve várias delas neste ano de 2023.  Todas muito boas.  E há muito a vir por aí.  Para revisitar a história, a Cinemateca retomará 10 filmes brasileiros clássicos, como “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, “Central do Brasil”, “Cidade de Deus” e outros, com um apelo à importância e à memória dos filmes, com chamadas como “Lembra daquele filme que começa com a perseguição a uma galinha?”.



quarta-feira, 14 de junho de 2023

A HISTÓRIA DA MINHA MULHER

Antonio Carlos Egypto

 

 



A HISTÓRIA DA MINHA MULHER (Afeleségem Története).  Hungria, 2021.  Direção: Ildeikó Enyedi.  Elenco: Gijs Naber, Léa Seydoux, Louis Garrel, Sergio Rubini, Jasmine Trinca.  169 min.

 

“A História da Minha Mulher” é o que podemos chamar de cinemão.  Uma produção elaborada, que envolveu diversos países: França, Alemanha, Itália, além da Hungria, com um elenco internacional.  É um roteiro adaptado pela cineasta húngara Ildeikó Enyedi, a partir de um romance antigo, de 1946: The Story of My Wife: the reminiscences of Captain Storr, do também húngaro Milan Fust.

 

O filme é longo, tem quase três horas de duração e está dividido em sete capítulos.  Não conheço o romance original, que aliás é inédito no Brasil, mas tudo indica que se trata de uma adaptação ampla e fiel do livro.  Os capítulos se sucedem contando uma história de amor complicada, cheia de altos e baixos, estranha desde a sua concepção, e que se valeu da distância entre os amantes, enquanto sobreviveu.

 

A narrativa foca na figura do Capitão Jacob Storr, vivido pelo ator holandês Gijs Naber, em que a sutileza da atuação, cheia de nuances, enriquece de detalhes o personagem do Capitão, com grande naturalidade.  As constantes viagens, deixando sua mulher em terra firme (até porque ela não ia quando podia acompanhá-lo), acentuam a saudade, o desejo e o que é fatal: a desconfiança e o ciúme.

 

A mulher do Capitão, Lizzy, vivida pela atriz francesa Léa Seydoux, que tem estado em destaque em produções cinematográficas atuais, mostra uma ambiguidade e uma inconstância no seu amor.  Ao mesmo tempo em que se mostra visceral e manipuladora em momentos decisivos da vida desse casal.  Um objeto de ciúme do Capitão Storr é o jovem Dedin, vivido pelo badalado ator francês Louis Garrel, em pequeno papel, uma figura que alia charme a ociosidade e poucos escrúpulos.


 



Vamos acompanhando a trajetória dessa relação amorosa, sempre a partir da visão do Capitão.  O que traz uma sensação interessante, já que ele oscila em seus sentimentos, dúvidas, comportamentos, e o seu vai-e-vem na questão amorosa impregna o filme do começo ao fim.

 

Quem gosta de acompanhar uma história bem contada, com clareza e sem atropelos, que vai se desenrolando por meio de diálogos, em geral claros e diretos, vai apreciar o filme.  Quem valoriza mais o visual, que transmite a trama, também não vai se decepcionar: a beleza e o significado do mar nas mãos da diretora húngara também preenchem o filme de expressões e de sentimentos diversos, colocando o Capitão no clima dos diferentes momentos da relação amorosa.  As locações na cidade de Budapeste também contribuem para o visual atraente de “A História da Minha Mulher”.

 

Chama a atenção a enorme quantidade de cenas em que se fuma no filme.  Impressionante.  O cigarro parece um personagem adicional da história, já que está onipresente em praticamente todas as sequências.  Achei desmedido isso.  O filme, exibido no Festival de Cannes, concorreu à Palma de Ouro, mas não levou.



terça-feira, 6 de junho de 2023

3 MULHERES + MOSTRAS

Antonio Carlos Egypto

 

 


TRÊS MULHERES, UMA ESPERANÇA (The Lost Transport).  Holanda, 2022.  Direção: Saskia Diesing.  Elenco: Eugénie Anselin, Hanna Van Vliet,  Anna Bachman, Richard Kreutz.  100 min.

 

Nos últimos estertores da Segunda Guerra Mundial, com a vitória dos aliados já definida, um trem com cerca de 2400 prisioneiros judeus deixa o campo de concentração de Bergen-Belsen e é abandonado junto a uma vila alemã já tomada pelas tropas soviéticas.  Esse transporte perdido do título em inglês dá ensejo a um encontro inusitado entre três mulheres, de contextos distintos, e o que seria uma esperança, no título que o filme recebeu no Brasil.  Essas três mulheres do filme dirigido pela cineasta holandesa Saskia Diesing são: Simone (Hanna Van Vliet), judia holandesa que desembarca do trem, ganhando a liberdade, Vera (Eugénie Anselin), soldada russa que empunha uma arma, junto com seus colegas homens do Exército Vermelho, e Winnie (Anna Bachman), jovem alemã hitlerista que vive na comunidade agora ocupada.  As três se encontrarão pelas circunstâncias do acaso, cada qual com seus problemas, e elas acabarão por se apoiar, se solidarizar, em que pesem suas enormes diferenças.  Ou seja, a sororidade feminina acaba falando mais alto do que o que as distingue.  Se isso é possível numa situação limite, de guerra, deveria ser muito mais fácil em tempos de paz.  O que se observa, no entanto, aqui no Brasil e em tantos outros países é uma polarização que divide as pessoas e parece impedir que a amizade e a solidariedade humana aconteçam em meio às diferenças.  Nem mesmo as mulheres o conseguem, diferentemente do que se passou na trama do filme.  “Três Mulheres e uma Esperança” é um trabalho bem realizado, com um elenco muito bom e o destaque da criação feminina na trama, nos desempenhos e na direção.  Tem uma trilha sonora ampla e variada que, por vezes, se sobrepõe às imagens, criando algum ruído.  Mas é música de bom gosto.  Não diria que se trata de um filme original, empolgante, nem que o desenrolar da narrativa esteja bem claro e azeitado, mas é um produto suficientemente bom para ser consumido, sem arrependimento pela escolha.


  MOSTRAS DE CINEMA EM SÃO PAULO                        

 São tantas as ofertas que não dá tempo de acompanhar, muito menos de escrever sobre todas elas.  Ainda assim, vale a pena registrar que a Cinemateca Brasileira (Largo Senador Raul Cardoso, 207 – Vila Mariana) realizou recentemente várias mostras de grande interesse.  A que reuniu  alguns dos principais filmes de Jean-Luc Godard, a do Novo Cinema Britânico, a de filmes estrelados por Jean-Paul Belmondo e abrigou também o festival de documentários É Tudo Verdade 2023.  E vem aí a Mostra de Cinema Português, como parte do evento Portugal 360, de 09 a 11 de junho.  Destaque para “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de João Botelho, com  base na obra de José Saramago (já analisado aqui no Cinema Com Recheio), que passa no domingo, 11, às 20:00 h.  Tudo isso gratuito.




 Está em andamento a 12ª. Mostra Ecofalante de Cinema que, até o dia 14 de junho, com entrada gratuita, destaca filmes que tratam do meio ambiente, das questões dos povos indígenas e do racismo, entre outros temas socioambientais e ligados aos direitos humanos.  São 101 filmes exibidos em 25 salas de São Paulo, como o Centro Cultural São Paulo, o Espaço Itaú Augusta e o Cine Olido.

 

De 08 a 14 de junho, temos a retrospectiva Umbigo de Sonho, de filmes da cineasta e multiartista Paula Gaitán, no Cinesesc, com 10 longas, 15 curtas, 2 videoclipes, 1 ciclo de debates e uma masterclass ministrada pela própria artista.

De 14 a 25 de junho, ocorre a 15ª. edição do In-Edit, festival internacional do documentário musical, nas salas do Cinesesc, Cinemateca Brasileira, Spcine Olido e Centro Cultural São Paulo, com 68 filmes nacionais e internacionais.  Muita coisa para ver para quem gosta de música no cinema.  Absolutamente imperdível é o doc “Elis & Tom, Só Tinha que Ser com Você”, de Roberto de Oliveira, que já comentei aqui, no Cinema com Recheio.

 

E de 22 a 28 de junho acontece a 10ª. edição de 8 1/2 Festa do Cinema Italiano, não só em São Paulo, mas em 14 cidades brasileiras.  O festival, realizado pela associação Il Sorpasso/Risi Film Brasil, tem o apoio dos institutos italianos de cultura, de São Paulo e Rio, do Ministério della Cultura e da Cinecittà.  São destaques filmes como “Nostalgia”, de Mario Martone, e “Jogada de Amor”, de Riccardo Milan, entre muitos outros.  Site oficial do evento: www.festadocinemaitaliano.com.br

 

Em São Paulo, boas opções cinematográficas é o que não falta.  O difícil é acompanhar tudo isso.