sábado, 30 de outubro de 2021

2 DESTAQUES DA # 45 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto

 

 


BERGMAN ISLAND, França.  Direção e roteiro: Mia Hansen-Love.  Elenco: Vicky Krieps, Tim Roth, Mia Wasikowska, Anders Danielsen Lie.  105 min.

 

Assistir a um filme que fala de Ingmar Bergman (1918-2007), que tem como locação a ilha de Farö, onde ele viveu e filmou, visitar paisagens, lugares, casas, que estão registrados na sua obra cinematográfica, é tudo o que um cinéfilo, ou crítico, gostaria de ver.  Pois a diretora francesa Mia Hansen-Love nos oferece isso no filme “Bergman Island”.  É um imenso prazer percorrer com seus personagens essa bela ilha, ver a casa, a biblioteca, o cinema, o moinho, a vegetação, o mar, as pedras e o silêncio que encantavam o mestre sueco em sua reclusão, protegida pela própria população da localidade.  Já bastaria isso para nos interessar por esse filme.  Mas, nesse caso, teríamos um documentário, à semelhança do filme homônimo “A Ilha de Bergman”, produção sueca dirigida por Marie Nyreröd, em 2006.  A ilha estava lá, mas o foco foi o próprio Bergman, ainda vivo, revendo sua vida e sua história no cinema, no teatro, na TV. “Bergman Island”, de Mia Hansen-Love, é uma ficção.  Um casal de cineastas e roteiristas vai passar um período na ilha de Farö, em busca de inspiração, além de conhecer o lugar icônico que Bergman escolheu para viver, onde escreveu e filmou.  Ambos escrevem, passeiam pela ilha, juntos e separados.  Ele faz o Bergman Safári, esquema turístico que leva aos lugares que marcam a obra do diretor.  Ela faz um percurso mais livre e solto, em busca desses lugares.  E escrevem, ele, com mais facilidade e disciplina, ela, com mais tensão e dúvida.  No entanto, é ela que começa a contar a sua história, o seu roteiro.  O que vemos, então, é o seu roteiro já transformado em filme.  Assistimos ao filme dentro do filme, embora inconcluso, ou assim definido como tal, por ela.  A uma certa altura, o que está acontecendo com o casal se confunde com o roteiro e até com os atores que o representam, numa fusão muito interessante de desejo, inspiração, realidade, fantasia.

 

 


AHED’S KNEE, Israel.  Direção e roteiro: Nadav Lapid.  Elenco: Avshalom Pollak, Nur Fibak.  109 min.

 

Após “Synonyms”, de dois atrás, também exibido na Mostra, Nadav Lapid nos traz um novo filme que provoca e polemiza. Um pouco pela forma, que exagera na câmera agitada, na música pop e em certos maneirismos.  Isso para dar um ar moderno ao filme, que ocupa sua parte inicial, mas é no questionamento ao seu país, o Estado de Israel, que se encontram as grandes polêmicas.  O personagem Y, cineasta, que costuma expor em conferências temas referentes aos filmes que realiza, vai a uma pequena cidade de 5 mil habitantes, ao lado do deserto.  Lá se encontra com Yahalom, mulher, representante do Ministério da Cultura, quando fica sabendo que só poderá falar de assuntos já determinados por uma lista, que ele deve respeitar.  Ou seja, o que não está lá está proibido.  Há uma brecha, um assunto pode ser sugerido desde que se dê o enfoque e o motivo para poder ser aceito.  Há, evidentemente, uma censura que compromete a liberdade de expressão.  Isso estará no centro da relação que se estabelece entre os dois personagens.  Porém, outras questões serão tocadas, como o totalitarismo e a belicosidade do Estado, o caráter conservador do pensamento, a não-aceitação da crítica.  O personagem aborda, ainda, a invasão do Líbano e a política de incentivo ao suicídio, por cianureto, em caso de perda militar irreversível.  E uma questão econômica da localidade, a perda de valor dos pimentões que sustentavam a cidade, também motivo de desespero e suicídio de muitas pessoas lá.  Será o personagem Y um revolucionário, um pessimista, a ser rechaçado ou alguém que toca nas feridas que ninguém ousa mexer?

 @mostrasp 



quarta-feira, 27 de outubro de 2021

DESTAQUES DA # 45 MOSTRA

 Antonio Carlos Egypto

 

 

O Compromisso de Hasan


O COMPROMISSO DE HASAN é o novo trabalho do grande diretor turco Semih Kaplanoglu, de “Um Doce Olhar”, “Ovo”, “Leite” e “Grão”, todos ótimos filmes.  Aqui, o universo rural e de natureza é registrado por uma fotografia com cores vibrantes, sem exageros, que ressalta uma vez mais a exuberante beleza do lugar e das paisagens turcas.  A história relatada explora um dilema moral, em que está envolvido Hasan, quando uma rede de transmissão elétrica, com grandes transformadores, está para ser implantada no meio do terreno onde ele ganha a vida como agricultor.  As atitudes que ele tomará a partir daí vão colocar em xeque sua visão do mundo, seus valores muçulmanos e, claro, a sua própria consciência, antes de tudo.  Há coisas que são capazes de transformar uma vida, certos desafios tocam fundo no psiquismo humano.  Belíssimo filme, que tem no elenco Umut Karadag, Filiz Bozok, Gökhan Azlag, Ayse Günyüz.  147 min.

 

Já que estou falando da Turquia, registro também um ótimo trabalho de um novo diretor, Erkan Yazici.  Em seu primeiro longa, TERRA DISTANTE, a trama vai à costa do mar Negro, em 1925, quando ocorria uma troca de cidadãos entre a Turquia e a Grécia, por um acordo entre os dois países.  Nessa troca, um menino que se perde da família, que embarcou sem ele, e um oficial turco que está degredado se encontram isolados numa ilha.  Têm de conviver entre si enquanto não vem o barco que resgatará o menino.  Um confronto, mesclado por uma relação simbolicamente paterna, dá origem a um filme muito interessante e bem realizado.  No elenco, Haydar Sisman, Abdurrah Gonian, Orkun Serialoglu.  93 min.

 

A NOITE DO FOGO, do México, da diretora Tatiana Huenzo, em seu primeiro longa, é uma das pérolas dessa edição da Mostra.  O filme retrata uma aldeia numa paisagem montanhosa em que seus habitantes, especialmente as mulheres, estão oprimidos entre os traficantes, para quem trabalham no cultivo da papoula, e da polícia, por quem são extorquidos.  Até o professor da pequena escola da aldeia, que veio de fora, não consegue trabalhar porque tem de pagar para isso.  A questão feminina aqui se destaca, já que a prática de sequestro de meninas e, principalmente, de mulheres jovens, as obriga a viverem se escondendo em esconderijos subterrâneos, usando cortes de cabelo masculinos e muitos outros cuidados.  Todas estão em perigo na iminência de terem de sumir às pressas dali.  O filme consegue explorar bem o medo e a expectativa que estão sempre no ar, valendo-se de locações atraentes que o embelezam, um respiro para a tragédia que exibe.  No elenco Ana Cristina Ordóñez Gonzáles, Marya Membreho, Mayra Batalla.  110 min.

 

Roda do Destino

Do Japão vem um dos melhores filmes da Mostra 45, RODA DO DESTINO (A Guzen to Sozo), de Ryusuke Hamaguchi (de “Asako I e II”).  Composto por três histórias distintas, que envolvem a vida de mulheres em encontros em que a complexidade das relações humanas e amorosas é evidenciada.  Tudo acontece, aparentemente, por acaso.  Ou por obra do destino.  E se dá de uma forma poética, por meio da palavra.  É um filme de erotismo verbal.  O sexo valorizado pela linguagem literária, ou por expressivo relato de encontro amoroso.  Ou, ainda, pela memória do passado, que vem novamente à tona.  Numa das narrativas, predomina o triângulo amoroso que irrompe de modo inesperado, cheio de sensualidade.  Em outra, uma aluna tenta seduzir seu mestre, lendo em voz alta um trecho erótico do romance que ele escreveu.  E isso se dá de porta aberta.  Na última história, o encontro casual de duas mulheres acontece ao se reconhecerem cruzando uma escada rolante.  Uma longa e profunda conversa vai se dar quando uma vai à casa da outra e descobertas fundamentais virão daí.  Simplesmente encantador em sua aparente simplicidade.  E extremamente cativante e eficiente nas três diferentes situações, uma melhor do que a outra.  No elenco, Kotone Furukawa, Kiyoshiko Shibukawa, Katsuri Mori, Fusako Urabe.  121 min.

 

Também é importante destacar o curta-metragem, de 30 minutos, de Pedro Almodóvar, da Espanha, falado em inglês, pela primeira vez no caso do diretor: A VOZ HUMANA. A grande atriz britânica Tilda Swinton atuando sozinha, falando ao telefone com o ex-amante que a deixou, interagindo com o cachorro dele que ficou e às voltas com as malas dele, ou numa cena rápida, comprando um machado numa loja.  Ela dá um banho de interpretação nesse pequeno filme que adapta livremente a peça homônima de Jean Cocteau (1889-1963). Toque de mestre, como de costume.

@mostrasp

domingo, 24 de outubro de 2021

CINEMA PORTUGUÊS NA # 45 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto


 A presença do cinema português na Mostra já vem de longe, especialmente dos muitos filmes de Manoel de Oliveira exibidos no evento.  Mas não só.  Todos os anos temos uma representação dessa filmografia com os lançamentos atuais.  E também, como agora, retrospectivas como a do cineasta Paulo Rocha (1935-2012). 

 


Diários de Otsoga

DIÁRIOS DE OTSOGA, direção de Miguel Gomes (de “Tabu” e a trilogia “Mil de Uma Noites”) e Maureen Fazendeiro.  No elenco, Crista Alfaiate, Carloto Cotta, João Nunes Monteiro.  102 min.

 

De Miguel Gomes a gente espera originalidade e alguma surpresa.  Desta vez, é um diário contado de trás para frente.  O filme começa no dia 21 e vai retornando, dia a dia, até o dia 1º.   Um pequeno grupo se utiliza de um borboletário, que será construído pouco a pouco, à medida que voltarmos no tempo.  Aos poucos também vai ficando claro que os diários são da própria filmagem.  Entramos no filme dentro do filme e acabamos na pandemia, que deu origem a toda essa experiência, misturando ficção e documentário.  Uma realização que, com todas as limitações sanitárias e de grana, tem muito brilho.  Vale a pena usufruir desse belo filme.  Fique atento aos detalhes das situações em que aparentemente nada acontece, mas que passam muita coisa e dão margem à discussão de muitas questões relevantes.  Garimpar é preciso.

 

Também estão na Mostra 45 três bons documentários vindos de Portugal, todos dirigidos por mulheres.

 

AMOR FATI, 102 min., de Cláudia Varejão, é um filme de afetos e alegria.  Mostra, por meio de muitas pessoas e famílias, o que une uns a outros, o que une também pessoas a animais, de cachorros e cavalos até uma ave de rapina.  Ou o que une as pessoas a seus instrumentos musicais.  E como a música une uma família.  Sabemos todos que o afeto é uma grande força unificadora, que permite que gente viva ao lado de gente por uma vida inteira.  Dedique uma existência à música ou aos animais.  Muitos não se separam nunca de seus objetos amorosos, arriscando-se a não realizar plenamente objetivos particulares.  O amor fala mais alto até nesse caso.  Casais,  mãe e filhas, irmãs, crianças jovens e idosas, gêmeas ou não, compartilhando casa, negócio, atividades religiosas, nutrem-se mutuamente de afeto, sempre.  Percebam que eu coloquei a frase no feminino, homens parecer ter maior dificuldade de exprimir emoções desse modo.  Já com os animais parece mais fácil para eles.

 

Visões do Império

VISÕES DO IMPÉRIO, de Joana Pontes, 93 min., revisita a história do império colonial português, por meio do registro fotográfico.  Portanto, a partir da própria existência da fotografia.  Partindo de fotos das colônias de Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, tiradas por gente que viveu lá ou registrou eventos e podem ser encontradas em feiras de rua e em grandes acervos de Lisboa, Coimbra e até de Fátima, que permitem reconstruir uma história vendida como de pacificação e harmonia com Portugal, especialmente nas fotos oficiais, que na verdade foi uma perspectiva de opressão e domínio violento.  Desde o século XIX, com a agravante do período ditatorial salazarista e a guerra de Angola, em 1961, até a chegada da Revolução dos Cravos, de 1974, que pôs fim ao regime autoritário.  Um dos lemas do período colonial era este: “Conhecer para dominar, dominar para explorar”.

 

NO TÁXI DO JACK, de Susana Nobre, 70 min., se vale de um personagem muito interessante, Joaquim, que deixou Portugal para acabar trabalhando de taxista em Nova York, com êxito, domínio da língua e dos caminhos da cidade, e fez seu pé de meia.  Ao voltar para Portugal, aos 63 anos, já próximo da aposentadoria, não se interessava em procurar emprego, mas, para usufruir de seus direitos trabalhistas até lá, está obrigado a ir a visitas de emprego regularmente e obter o visto patronal de que procurou e não encontrou.  Mesmo que encontrasse, ele não queria.  Enquanto o vemos visitando os possíveis empregadores, ele narra sua história no exterior.  Não chega a ser muito dinâmico, mas que o personagem é interessante, isso é.

@mostrasp

 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

FEMININO E NOVO NA # 45 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto

 

Questões femininas recebem tratamento cinematográfico relevante em três filmes, dois, dirigidos por mulheres e um, por homem, todos novos diretores, em seu primeiro longa-metragem.

 



LUA AZUL, Romênia.  Direção: Alina Grigore.  Elenco: Ioana Chitu, Mircea Postelnicu, Mircea Silaghi, Vlad Ivanov.  90 min.

 

Uma família disfuncional, em que as pessoas se relacionam de forma ríspida, agressiva, umas mandando nas outras, vivendo em ambiente rural.  As evidências mostram que a opressão maior se dirige às mulheres, que não dispõem de poder sobre a propriedade e o trabalho na fazenda, nem liberdade sobre a sua própria vida pessoal.  Teoricamente, poderiam sair de lá, se quiserem, mas serão vistas como traidoras, cujo retorno será, então, indesejável.  Mesmo que o motivo da saída seja querer estudar em Bucareste.  Pelo valor libertador do conhecimento e para respirar os ares da cidade grande.  Quem já se comporta de forma a realizar alguns enfrentamentos com os homens da casa, é vista e tachada como descontrolada, perdida, louca.  A mulher nunca pode ser forte e inteligente num mundo marcado pelo machismo estrutural e conceitualmente apegado a preconceitos misóginos.  O tom duro do drama, que praticamente não comporta nenhum afeto, incomoda tanto quanto o nítido esmagamento da liberdade feminina, que ele mostra o tempo todo.  Não é, porém, um filme sem esperança.  Essas mulheres lutam com as armas que têm, se apoiam e tentam vencer esse processo de desumanização que estão vivendo.  As figuras masculinas ou estão atuando desesperadamente para se manter no poder pela atitude violenta ou se incomodam profundamente com virtudes femininas, como a inteligência, o conhecimento e a ousadia que os humilham.  Boa estreia da diretora Alina Grigore.

 



FORTE CLARÃO (Destello Bravio).  Espanha.  Direção: Ainhoa Rodriguez.  Elenco: Guadalupe Gutiérrez, Carmen Valverde, Isabel Mendonza.  96 min.

 

Aqui as mulheres se veem sem perspectivas, numa pequena cidade rural suspensa no tempo, que mingua ao invés de crescer.  A opressão ocorre pela apatia, pela falta de possibilidades de ser e de viver com prazer, realizando desejos, construindo uma existência interessante.  Mas a busca de vivências libertadoras está por trás desse cotidiano destruidor, pela esperança de um clarão muito forte e poderoso, capaz de mudar tudo.  Enquanto ele não vem, é a igreja, com seus santos, procissões, imagens de sacrifício, que ocupa a cena.  E casamentos que são verdadeiras prisões.  O que domina aqui é o tédio, até que a fantasia possa se realizar.  Uma boa imagem desse mundo que oprime pela ausência envolve a todos, mas mais fortemente as mulheres, é o que o filme da diretora Ainhoa Rodriguez nos oferece em sua estreia.

 



A TAÇA QUEBRADA (La Taza Rota).  Chile.  Direção: Esteban Cabezas.  Elenco: Juan Pablo Miranda, María Jesús González, Moisés Ângulo, Roman Cabezas.  73 min.

 

O filme chileno “A Taça Quebrada” focaliza um problema comum e bem dramático: o da separação de um casal, com um filho, em que o marido não consegue aceitar e superar a separação, enquanto a esposa reconstrói sua vida com outro homem.  O filho, ainda pequeno, é o elo que os liga e é sempre uma oportunidade para que o pai entre na casa onde morou, se imiscua na vida da mulher e tente reconquistá-la a qualquer preço.  Bem, o preço a pagar poderia ser terrível, descambar para a violência doméstica contra a mulher, produzir dramas que acabem em tragédia.  Não é o caso aqui.  O melodrama se desenvolve com baixa densidade, menos interessado nos gritos do que na sutileza dos sentimentos e atitudes, tanto dele, como dela, que está presa numa teia da qual não consegue se soltar.  Evidencia-se a vulnerabilidade da mulher nessas situações, mesmo que o homem seja o elo mais fraco da história.  Um bom roteiro do diretor Esteban Cabezas, em parceria com Álvaro Ortega, garante o interesse dessa estreia promissora.

@mostrasp



quarta-feira, 20 de outubro de 2021

UM HERÓI NA # 45 MOSTRA

ANTONIO CARLOS EGYPTO

 


UM HERÓI, Irã.  Direção: Asghar Farhadi.  Com Amir Jadidi, Moshen Tanabandeh, Sahar Goldust,   Sarina Farhadi.  127 min.

 

“Um Herói” é um trabalho primoroso do diretor iraniano Asghar Farhadi.  O estilo do cineasta já é bastante conhecido, contando histórias de um modo elaborado, abordando por vários ângulos, trazendo informações novas, adicionais, mostrando o que sente o outro lado.  E, assim, o que parecia ser algo claro se torna duvidoso, obscuro ou até francamente falso.  A meu ver, o estilo Farhadi de contar histórias é que ele o faz problematizando.  Levanta questões e dúvidas o tempo inteiro. 

 

O que seria, portanto, um herói para o seu cinema?  Alguém que tem uma dívida que está pagando com um período na cadeia até conseguir saldá-la e quando, numa saída autorizada, acha um bom dinheiro numa bolsa na rua e mesmo assim resolve devolvê-la à sua dona, é um claro exemplo.

 

Se a verdade fosse pura e simplesmente assim, talvez.  Mas se formos esmiuçar o que de fato aconteceu, novos elementos aparecerão.  Se formos contar a alguém, provavelmente arredondaremos os fatos, para que se tornem mais vivos e interessantes.  Se adicionarmos uma pitada de emoção registrada pelas câmeras, aí é que o sentido muda ainda mais.  Uma grande difusão em forma de notícia tende a causar comoção.

 



Por outro lado, no mundo atual das câmeras de celular, redes sociais, para cada notícia pode-se produzir a antinotícia.  Por interesses diversos, mas também porque todo herói tem um lado cafajeste e todo cafajeste tem seu heroísmo também.  Em outras palavras, o mundo é muito complexo para caber em caixinhas bipolares, esquemas simplificadores, certo e errado, preto e branco, verdade e mentira.  A gente é que tende a acreditar no que reforça o que já sabemos e adotamos como verdadeiro para nós.

O exercício que o cinema de Asghar Farhadi nos propõe é o de repensar a cada passo onde estará a verdade, pelo menos a verdade dos fatos.  Porque as interpretações são de outra ordem.  E ele mostra que essa verdade factual nos escapa e, quando ela entra em conflito com a narrativa que adotamos, pode ser ignorada ou rejeitada.  Ou, ainda, revisada, reajustada, de modo a continuar valendo.

 

Farhadi é um contador de histórias, seu cinema não dispensa bons personagens, situações intrigantes, expectativa, suspense.  E um bom elenco em cena.  Discute a sociedade, os comportamentos, as leis.  Está sempre levantando dúvidas, novas perguntas, nos obrigando a pensar em outras configurações no modo de encarar cada problema que ele nos apresenta.

 

Dizer que ele foi premiado duas vezes com o Oscar de filme internacional, com “A Separação”, em 2011, e “O Apartamento”, em 2016, não acrescenta muita coisa ao seu cinema, a não ser como mercadoria, mais ou menos rentável.  O cinema de autor de Asghar Farhadi é sólido e consistente.  E “Um Herói”, um dos filmes de abertura da 45ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que começa hoje e vai até 03 de novembro, certamente é um de seus maiores destaques.

 

Para acessar a programação, ingressos e informações sobre a Mostra, www.mostra.org

@mostrasp




segunda-feira, 18 de outubro de 2021

5 FILMES DE NOVOS DIRETORES NA # 45 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto

 

A competição de filmes de novos diretores na 45ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, dirigida àqueles que estão realizando seu primeiro ou segundo longa-metragem, oferece sempre a oportunidade de descoberta dos talentos que possam emergir daí.  A primeira semana da Mostra é dedicada, principalmente, à apresentação e votação pelo público desses novos filmes de novos diretores e os mais votados serão submetidos à apreciação do júri da Mostra, que indicará o vencedor do troféu Bandeira Paulista.  A gente fica, então, de olho nas ostras, para ver se encontra uma pérola.  Já pude abrir algumas dessas ostras, mas, por enquanto, não encontrei pérolas, não.

 



Um dos candidatos considerados fortes dessa seleção seria PEGANDO A ESTRADA (Hit the Road), filme iraniano de Panah Panahi, filho do grande diretor Jafar Panahi.  Ele se mostra, efetivamente, um diretor competente para criar sequências, cenas e situações bem realizadas, com atores e atrizes se destacando pelo bom desempenho.  Ocorre que seu filme, um road movie, deixa o espectador completamente à margem, sem poder entender o que está acontecendo ou o que vai acontecer.  Que viagem é essa, de uma família que se comporta de forma estranha, misteriosa, sendo mesmo divertida e afetiva?  Mas para onde e por quê?  Bem, claro que podemos supor que, em virtude da censura no Irã, as coisas tenham de ser apenas sugeridas, enevoadas.  Mas não precisava também quebrar tanto a linha de ação, criando tantos momentos de digressão quase surreais e cenas totalmente inverídicas.  Vou dar um exemplo: a um dado momento, o carro da família pede ajuda a outro veículo, para encontrar o caminho desejado.  Enquanto a mãe conversa com o motorista que oferece comboio para que não se percam, o filho pequeno, que não para nunca, fala e grita o tempo todo, sobe na van do estranho e sua mãe concorda que ele fique lá até o ponto de chegada.  Inacreditável, não?  Por que isso aconteceu?  Era necessário criar uma situação para que o filho maior, o pai e a mãe, conversassem longe do menino.  Confesso que a falta de sentido que o diretor procura construir ao longo do desenrolar da narrativa, para nos manter no suspense e no mistério (que ele não revela, por sinal), me cansou.  Lendo depois entrevista do diretor, ele explica do que se tratava e aí a gente pode ver sentido no que não tinha, aparentemente. Ou que poderia significar várias outras coisas.  Isso é filme que precisa de bula para ser compreendido.  Quem sabe na próxima tentativa...  Elenco: Hassan Madjooni, Pantea Panahiha, Rayan Sarlak, Amin Simiar.  93 min.

 

O filme alemão MADEIRA E ÁGUA (Wood and Water), de Jonas Bak, nos põe em contato com a solidão dos tempos de aposentadoria da senhora Anke.  Disposta a encontrar os filhos no verão, ela acaba, por circunstâncias, indo parar em Hong Kong, onde seu filho agora vive.  Em pleno período de protestos diários no país, a narrativa nos mostra seus passos e descobertas, enquanto seu filho não aparece.  Mas não explora o imenso potencial político da situação.  Vai a Hong Kong filmar e mostra apenas a mulher idosa, contornando os caminhos do protesto, sem se relacionar com ele. Assim como os protestos impediram o filho Max de encontrá-la, ela agora aprende a se virar sozinha por lá.  Em última análise, a situação política de Hong Kong virou apenas uma complicação para a mobilidade das pessoas?  Elenco: Anke Bak, Ricky Yeung, Alexandra Batten, Patrick Lo, Theresa Bak.  79 min.

 

Madeira e Àgua


COISAS VERDADEIRAS (Trrue Things), do Reino Unido, trata da jovem Kate que, enquanto vive um cotidiano sem qualquer entusiasmo ou realização, se sente atraída por uma vida de aventuras, surpresas e tolerância com o descaso do possível par romântico, um ex-presidiário autocentrado e que curte todas.  Vai precisar aprender a lidar com a autoestima, amadurecer, para encontrar caminhos que não a levem ao puro e simples fracasso.  Nada de novo, nem empolgante, no filme de Harry Wootliff, que tem no elenco Ruth Wilson, Tom Burke, Hayley Squires.  102 min.

 

OS INVENTADOS, filme argentino dirigido por Leo Basilico, Nicolás Lollnginotti e Pablo Rodriguez Pandolfi, explora mais uma vez no cinema o tema dos atores e atrizes tendo de viver outras vidas o tempo todo, fingir sempre e a qualquer preço, num workshop de fim de semana.  O filme até que cria alguma expectativa pelo mistério dos concorrentes, que desaparecem um a um, mas a resolução final é pífia e inconsistente.  Elenco: Juan Grandinetti, Verónica Gerez, Rosina Fraschina, Sebastián Godoy.  90 min.

 

Um verão na Córsega

UM VERÃO NA CÓRSEGA (I Comete), da França, de Pascal Tagnati, consegue interessar à medida que concretiza o clima modorrento das pequenas cidades perdidas e a vida pouco estimulante de seus moradores, especialmente os jovens, sem ter nada de relevante para fazer.  Mostra um personagem interessante na figura de um jovem negro, adotado, herdeiro de uma fortuna que lhe permite contribuir, de algum modo, para o bem-estar de algumas pessoas e da comunidade.  Mas o tempo passa e nada muda.  Quem nunca saiu de lá e envelheceu se acomoda, mas lamenta.  Depois desse verão, o que o futuro reserva a essas pessoas? Elenco: Jean-Christophe Folly, Pascal Tagnati, Cédric Appietto, Apollonia Bronchain Orsoni.  127 min.

@mostrasp

 

sábado, 16 de outubro de 2021

A MORTE EM 2 FILMES DA # 45 MOSTRA

Antonio Carlos Egypto

 


 

O documentário holandês LIDANDO COM A MORTE, dirigido por Paul Sin Nam Rigter, 74 minutos, registra os planos para a construção de uma agência funerária, num bairro multiétnico de Amsterdã.  A intenção da gerente contratada para conceber o projeto, Anita, é a de atender aos diferentes grupos culturais, que utilizam rituais distintos para tratar da morte.  Um dos grupos só concebe um funeral com, pelo menos, 500 pessoas, o que exige um amplo espaço.  Uma mulher, falando em nome do seu grupo, lembra que as suas mulheres usam muitas roupas, o que exige um banheiro maior do que os de costume.  Há os banhos, os cantos, batuques, danças, comidas típicas e o modo de servi-las nos rituais de morte.  É interessante conhecer isso e o filme dá a oportunidade para percebermos a grande diversidade de conceitos a respeito dos funerais, nas diferentes culturas e religiões.  Ainda que estejamos falando só de Amsterdã, ou melhor, de um dos bairros da cidade.

 

Por outro lado, o projeto enfrentará dificuldades, porque interesses econômicos sempre falam mais alto e um plano com esses cuidados antropológicos esbarra nas questões mercadológicas.  O documentário participa da Competição de Novos Diretores da Mostra 45.

 

 


ARMUGAN.  Espanha.  Direção: Jo Sol.  Com Gonzalo Cunill, Iñigo Martinez, Núria Lloansi, Núria Prime.  91 min.

 

“Armugan” é um personagem mítico dos Pirineus Aragoneses, na Espanha, um portador de deficiências físicas que demandam que ele viva agarrado ao corpo de seu servo Anchel, que o trata com toda a atenção e desvelo.  Eles também vivem lidando com a morte, à semelhança do documentário que acabei de comentar.

 

A morte é um mistério e tem tantas vicissitudes que há infinitas maneiras de se acercar a ela.  Há, também, muitas expectativas e necessidades que as pessoas têm em relação à sua própria morte ou à de parentes próximos, alguns no ocaso da vida em termos de idade, outros, em plena juventude.  Seja como for, Armugan é mostrado pelo filme de Jo Sol como uma espécie de anjo da morte.  O filme explora sua existência para lá de modesta, em uma casa simples na zona rural, cercada pelas montanhas e pelas ovelhas com quem ele convive ao rés do chão.

 

O ambiente mágico das montanhas ganha dimensões belas, mas também lúgubres, na fotografia em preto e branco que acentua o mistério do personagem.  A filmagem remete a algo passado, distanciado do nosso cotidiano.  No entanto, a vida urbana e o luxo da cidade irrompem na trama como uma urgência.  A refinada civilização busca a ajuda de Armugan na hora de dor, com toda a tecnologia de hoje.

 

Assim, em “Armugan”, revisita-se o mito, a fábula, relacionando-os a discussões atuais sobre a questão da morte.  Como se pode ver, lidar com a morte não é mesmo fácil, em qualquer sentido que se queira dar e para muitos o tema até mesmo produz uma rejeição, ao menos, num primeiro momento.  Nessa pandemia, tivemos que falar sobre ela, nos informar, coletar dados, conviver com as perdas que ela traz e isso extenuou as pessoas.  A ficção, porém, também pode nos ajudar a lidar com a morte, da finitude natural da vida aos mistérios e surpresas que ela costuma carregar consigo.

@mostrasp

 


quinta-feira, 14 de outubro de 2021

# 45 MOSTRA - CINEMA NA PANDEMIA

Antonio Carlos Egypto

 

A pandemia já incorporada ao cinema pode ser notada nos dois filmes que comento a seguir que, aparentemente, nada teriam a ver com ela.  No entanto, tudo a ver.  Afinal, são filmes da 45ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo que estão sendo lançados em pleno 2021.

 



MÁ SORTE NO SEXO ou PORNÔ ACIDENTAL.  Romênia.  Direção: Radu Jude.  Com Katia Pascariu, Claudia Irenemia.  Olimpia Malai.  Nicodim Ungureanu.  106 min.

 

O filme romeno “Pornô Acidental” é ousado, provocador, irônico e inteligente.  Abre com uma sequência de sexo e nudez muito clara e evidente.  Em seguida, passa para um cotidiano de rua que se parece com a nossa realidade: as pessoas usam máscara abaixo do nariz, no queixo ou mesmo nem usam.  As pessoas mostram um tom agressivo no trato e pouca tolerância.  Sinal dos tempos, da pandemia.  Sei lá. 

 

O fato é que a mulher que anda muito pela cidade é uma professora de crianças e adolescentes de uma escola tradicional e conceituada em Bucareste.  E é dela com o marido o vídeo de sexo que vazou pela Internet.

 

Isso acabará pondo em xeque o seu trabalho e será motivo de uma reunião de pais, com covid-19 e os cuidados sanitários, em que se discutirá sexo, ética, moralidade, intimidade e trabalho, história, direito ao livre exercício da sexualidade, autoritarismo, política educacional.  Enfim, um sem número de coisas.  Que aparecerão na segunda parte do filme, na forma de máximas, piadas, poemas, exortações.  Tudo muito bem engrenado.  Mas o suspense do que vai acontecer com a educadora seguirá até o final.  Com interesse crescente, porque os argumentos, questionamentos, posicionamentos, incluindo provocações e ofensas ocupam toda a cena.

 

Como se vê, a pandemia joga papel lateral na trama, emoldura apenas os fatos. Certamente, este roteiro não foi escrito a partir dela, mas antes dela.  A discussão central não é sanitária, diz respeito à questão educacional, educação sexual, principalmente, e valores e preconceitos sociais.  Privacidade e Internet em evidência.

De um jeito leve, brincalhão e erótico, o filme de Radu Jude tem muita força e consistência.  É o vencedor do Urso de Ouro do Festival de Berlim e dá uma demonstração de que o cinema romeno continua evoluindo, não parou na onda inicial que o impulsionou no mercado mundial.  “Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental” é um dos filmes de abertura da Mostra 45, já no dia 20 de outubro, às 20:00 h, no Reserva Cultural

 

 



HIGIENE SOCIAL, filme do Canadá francês, dirigido por Denis Cotê, com Maxim Gaudette, Larissa Corriveau, Eleonor Loiselle, Eve Duraneeau, 76 minutos, se concentra na figura de Antonin, um jovem com talento literário e quiçá cinematográfico, que vive de roubos, mas tem ojeriza à violência.

 

O filme é um conjunto de diálogos dele com sua irmã, sua esposa, a mulher que ele deseja e uma coletora de impostos.  Todas questionam a vida que ele leva em conversas ásperas, agressivas ou meramente formais.  O que isso tem a ver com a pandemia?  É o modo de fazer agora.

 

Todas as cenas foram filmadas ao ar livre, em ambientes de natureza em contraste absoluto com o tema.  Quem imagina uma conversa com alguém da Receita Federal em um campo aberto, num gramado com árvores?  Todos os diálogos são filmados de forma estática, com distanciamento social, os atores estão a pelo menos um metro e meio longe um do outro, não se movimentam e, obviamente, não se tocam.  A câmera também se protege, se coloca à distância, geralmente em planos abertos, sem a utilização de zoom, exceto com uma das personagens, uma garota mais jovem, vítima do ladrão, e só em poucos momentos.

 

Quer dizer, filmar na pandemia só com rígido controle sanitário, não importando o tema, o ambiente requerido ou a possível necessidade de aproximação física ou amorosa.  Até uma briga do tipo duelo é encenada à distância, no filme.  Caramba!

 @mostrasp


terça-feira, 12 de outubro de 2021

# 45 MOSTRA JÁ ESTÁ CHEGANDO

Antonio Carlos Egypto

 

 


 

A 45ª. Edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo acontece de 21 de outubro a 03 de novembro de 2021.  Depois de ter estado ausente das salas de cinema em 2020, quando a edição foi toda virtual, agora a Mostra promete trazer o público de volta aos cinemas, mantendo, no entanto, o formato híbrido com a edição on line simultânea.

 

Para o retorno ao cinema, quando a pandemia ainda está aí, arrefeceu, mas não passou, é preciso ter todos os cuidados sanitários.  Aquilo que todo mundo já sabe: apresentar atestado de vacinação (pelo menos a 1ª. dose), usar corretamente a máscara durante todo o tempo de projeção e nos ambientes das salas, lavar as mãos com frequência, álcool gel, distanciamento social, nada de aglomerações.

 

Além disso, as salas só venderão ingressos para até 50% da sua capacidade.  Isso pode ser um problema para os frequentadores.  A procura será, certamente, maior do que a oferta e, pelo menos quanto aos títulos mais procurados, podem faltar ingressos.  Ou seja, nem todo mundo vai conseguir ver todos os filmes que quiser, nas sessões presenciais.

 

Outra questão para os cinéfilos: para assistir a dezenas de filmes, será preciso permanecer muitas horas em ambiente fechado, com ar condicionado compartilhado por muito mais pessoas do que tem acontecido nas salas de cinema até agora.  É preciso considerar esse risco, mesmo com a informação de que os cinemas farão uma higienização completa após cada sessão, estabelecendo-se um intervalo de 30 minutos entre elas.

 

Quem optar pela Mostra on line encontrará outros problemas.  Nem todos os exibidores concordaram com a apresentação de seus filmes no modo virtual.  Vai daí que diversos títulos ficarão de fora, não poderão ser assistidos em casa.  Há também restrições quanto ao número permitido de visualizações, o que dificulta o acesso aos filmes mais procurados, os grandes premiados, por exemplo.

 

Sendo realista, a pandemia continua nos impondo restrições significativas.  É preciso aceitar as limitações e relaxar, para não se frustrar.  Afinal, o festival tem uma pegada de alta qualidade cinematográfica.  Tem filmes premiados mundo afora, grandes diretores, produções do mundo todo (50 países presentes), filmes inovadores, experimentais.  Vale a pena se arriscar, conferir o que é menos conhecido ou recomendado.  São as tais pérolas que sempre aparecem em todas as Mostras.  Afinal, a seleção soma 264 filmes, sendo 80 dirigidos por mulheres.  Não vai faltar uma boa opção.  E, claro, muitos filmes poderão ser vistos no circuito cinematográfico um tempo depois da Mostra, alguns logo a seguir, outros, com intervalo bem maior de tempo.  Por isso mesmo, recomendo buscar as possíveis novidades ou surpresas, algumas daquelas que acabam não passando depois por serem consideradas menos “comerciais”, ou dirigidas a um público pequeno, específico.

 

Todos os anos, a Mostra costuma começar no dia anterior ao período divulgado, com uma sessão de abertura para convidados.  Neste ano, optou-se por abrir ao público essa sessão e apresentar não um único filme, mas 10 destaques, um em cada cinema.  Assim, no dia 20 de outubro, às 20 h, o cine Marquise (ex-Cinearte) terá “Noite Passada em Soho”, de Edgar Wrigth; o Cinesesc, “Bergman Island”, de Mia Hansen-Love; o cinesala, “Compartments no. 6”, de Juho Kuosmanen; o Espaço Itaú-Augusta, um programa de curtas, de Pedro Almodóvar, Tsai Ming Liang e Barbara Paz; o Itaú Frei Caneca, “A Crônica Francesa”, de Wes Anderson (sala 1), “Um Herói”, de Asghar Farhadki (sala 2), “A Caixa”, de Lorenzo Vigas (sala 3); o Petra Belas-Artes terá “Roda do Destino”, de Ryusyke Hamaguchi; o Reserva Cultural, “Má Sorte ou Pornô Amador”, de Radu Jude; e o Centro Cultural São Paulo, “Lua Azul”, de Alina Grigore.

 

O conteúdo on line da 45ª. Mostra estará disponível nas plataformas Mostra Play, Sesc Digital e Itaú Cultural Play.  Tem muita informação sobre a Mostra 45, incluindo seus prêmios, homenagens, fóruns e outros eventos, além da programação e da venda de ingressos no já conhecido site www.mostra.org

 

A seleção deste ano faz um apanhado do cinema contemporâneo mundial produzido e exibido sob o impacto da pandemia, que atingiu a indústria cinematográfica em todos os continentes.

 


Para encerrar este texto, faço questão de destacar a beleza do pôster da 45ª. Mostra e a vinheta feita a partir dele, que estará em todas as exibições dos filmes do festival.  Traz o traço leve e brilhante do grande Ziraldo, um orgulho da cultura brasileira, que chega aos 90 anos e é objeto de dois documentários que serão exibidos na Mostra. 

 

Leitor apaixonado do Pasquim, admirador da turma do Pererê, de Jeremias, o Bom, da Super-Mãe, do Bichinho da Maçã, do Menino Maluquinho e do Flicts, saúdo Ziraldo e que sua arte continue sendo sempre inspiradora para todos nós, que gostamos de democracia e de liberdade.

 @mostrasp



domingo, 10 de outubro de 2021

SOB AS ESCADAS DE PARIS

Antonio Carlos Egypto

 

 



SOB AS ESCADAS DE PARIS  (Sous les Étoiles de Paris).  França, 2020.  Direção: Claus Drexel.   Com Catherine Frot, Mahamadon Yaffa, Baptiste Aman, Jean-Henri Compère.  83 min.

 

Paris é uma cidade tão bela, encantadora e sedutora, que um filme rodado inteiramente lá, por si só, já se torna atraente.  No caso em questão, ainda mais, porque os personagens de “Sob as Escadas de Paris” perambulam por seus espaços abertos e por seus subterrâneos às margens do rio Sena.  São uma mendiga francesa, Christine (Catherine Frot) e um menino africano de 8 anos, Suli (Mahamadon Yaffa), perdido na cidade, que não fala a língua do país e cuja mãe está para ser deportada.

 

Do encontro ocasional de ambos e de suas andanças por todos os cantos de Paris, indo dos lugares turísticos aos bairros mais populares e os que agrupam os deserdados da sorte, como as tendas do canal San Martin ou os acampamentos de imigrantes de Porte de La Chapelle, resultará uma abordagem poética.  A do menino, em busca da mãe, e a da mulher sem teto, que tem conhecimentos de astronomia e se interessa em ler uma revista científica que achou no lixo.

 

Os pobres de Paris comportam alegoria e realidade, sofrimento e solidariedade.  Boas pessoas parecem acolher a mendiga.  Já é mais difícil acolher o estrangeiro, em tempos de migrações forçadas e preconceitos, mesmo sendo apenas uma criança.  Seja como for, as pessoas podem ser melhores e mais multifacetadas do que imaginamos.  Basta pensar na forma como tendemos a encarar as pessoas que vivem em situação de rua, que podem estar muito além do que supõe a nossa vã filosofia.  E que podem apresentar motivos insuspeitados em suas histórias de vida.

 

O diretor e corroteirista Claus Drexel conviveu de perto, durante um tempo, com gente que vive na rua e que depende da comida que é oferecida a eles diariamente e de roupas quentes ofertadas para que possam resistir ao frio.  O documentário que resultou desse convívio foi o ponto de partida da ficção “Sob as Escadas de Paris”.  Só que aqui ele buscou um registro quase atemporal, fabular, mesmo, que dialoga até com os contos de fada, embora não seja um deles.


 



Outro aspecto importante: não por acaso, trata-se de Paris.  A beleza e o requinte visual do filme se contrapõem diretamente ao que se poderia chamar de feiura ou falta de charme da pobreza.  Ou o que poderíamos chamar de estética da fome.  Não, aqui a intenção é evidente.  É uma história de personagens deslocados, deserdados, emoldurada por muita beleza.

 

Não só da cidade, diga-se de passagem.  Por exemplo, a escolha de um objeto de brinquedo para o menino é a de um caleidoscópio, o que enseja muitas imagens que evidenciam e multiplicam a beleza de tudo o que está ao redor e a deles próprios, obviamente. Numa sequência em que Suli pensa ter visto sua mãe e corre ao seu encalço, é a música de Schubert que o carrega, com toda a sua beleza instrumental.  Há, ainda, referências à arte dos pintores, ao longo da narrativa.

 

Destaque-se também os sentimentos, a redescoberta do humano em meio à tristeza e às perdas.  Como disse o artista mirim a respeito de seu personagem “ele não entende as palavras, ele entende a emoção”.  Perfeito, e ele conseguiu uma interpretação muito boa para o seu papel. O destaque maior, claro, é o da atriz Catherine Frot, que nos passa uma gama de sentimentos, desilusão, tristeza e encanto, assim como nos transmite tanto sem dizer nada, especialmente na parte inicial do filme.

 

“Sob as Escadas de Paris” é um filme que tem leveza, humor e drama, evita a tragédia, mas não a esconde e é esperançoso, como costumam ser as fábulas.