domingo, 31 de março de 2019

O TRADUTOR

Antonio Carlos Egypto





O TRADUTOR (Un Traductor).  Cuba/Canadá, 2018.  Direção: Rodrigo Barriuso e Sebastián Barriuso.  Com Rodrigo Santoro, Maricel Álvarez, Yoandra Suárez, Nikita Semenov.  107 min.


“O Tradutor” é um filme cubano-canadense estrelado pelo ator brasileiro Rodrigo Santoro, atuando em duas línguas: o espanhol e o russo.  A história é contada a partir de eventos verdadeiros, vividos pelo pai e também pela mãe dos diretores, Rodrigo e Sebastián Barriuso, ambos cubanos, morando no Canadá.

O ano é 1989, coincide com a queda do Muro de Berlim, que modificaria muita coisa na vida de Cuba, com o colapso da União Soviética.  Mas Cuba, nesse momento, e pelo que se pode inferir desde 1986, estava recebendo em seus hospitais vítimas de radiação do pavoroso acidente nuclear de Chernobyl, ao norte da Ucrânia, próximo à fronteira com a Bielorrússia.

Malin (Rodrigo Santoro), professor de literatura russa na Universidade de Havana, vê seu curso e suas aulas serem suspensos e é designado para atuar como tradutor junto a pacientes soviéticos internados em Cuba.  O que lhe cabe é a dolorosa tarefa de trabalhar como intérprete, numa sessão que atende crianças contaminadas, com leucemia, e os familiares que as acompanham.




Será algo capaz de mudar a vida do professor universitário e fazê-lo descobrir meios de interação com essas figuras inocentes atingidas cruelmente pela tragédia.  E, ao mesmo tempo, capaz de implodir seu casamento e sua relação com os próprios filhos, crianças que também tinham suas carências e a quem faltou a presença paterna.  São os diretores do filme “O Tradutor”, elaborando o passado que viveram.

É uma história tocante, que trata de afetos e solidariedade, frente às mais terríveis vicissitudes da vida, como foi esse caso.  O filme não deixa de mostrar os contextos econômicos e políticos envolvidos, mas sem se deter neles.  O desafio pessoal do protagonista nessa circunstância falava mais alto do que tudo.  A estrutura da narrativa é clássica.  A paleta de cores revela, pelo esmaecimento e frieza, a tristeza que toma conta da história.  O tom dramático do filme não pende ao exagero.  Muito se passa dentro do personagem principal e da angústia que ele é obrigado a viver, na situação que lhe é imposta, mas que acaba por lhe trazer um grande desafio que ele se tornará capaz de encarar.  Rodrigo Santoro sustenta muito bem o seu personagem, tanto em espanhol quanto em russo.  Não é para qualquer um.



domingo, 24 de março de 2019

INEZITA

Antonio Carlos Egypto






INEZITA.  Brasil, 2018.  Direção: Hélio Goldsztejn.  Documentário.  85 min.

Inezita Barroso (1925-2015) é uma figura portentosa na história da música popular brasileira. Portentosa parece um adjetivo apropriado para designar a cantora de voz firme, forte, afinada, de timbre marcante e presença exuberante, que descobriu e construiu um repertório de canções inigualável.  Samba, música folclórica, regional e, sobretudo, o caipira de raiz, são marcas do seu trabalho. 

Na TV por 35 anos, comandou o “Viola, Minha Viola”, programa da TV Cultura, dedicado à chamada música caipira de raiz, em que não cabiam guitarras elétricas, nem mesmo baterias e teclados.  E os astros do comercialíssimo sertanejo universitário não tinham vez, a menos que fossem cantar ou tocar suas violas no estilo tradicional.  Isso poderia dar a impressão de uma coisa conservadora ou intolerante, mas não se tratava disso e, sim, de preservação cultural, num espaço único, aberto pela comunicação de massa.  E que Inezita soube manter e solidificar ao longo de tanto tempo, na maior dignidade, até o fim.

Inezita Barroso, em sua vida pessoal e artística, foi uma pioneira, uma mulher que teve de abrir portas com dificuldades, numa época em que ser artista de rádio, atriz de cinema, como ela foi, era abominável para pessoas do sexo feminino, bem-nascidas, como ela.  Ao desbravar esses horizontes proibidos, ela abriu avenidas para que as mulheres pudessem se expressar artisticamente e ocupar os espaços devidos e merecidos, na música caipira e na arte em geral.




Ela foi mesmo muito ousada.  Sua primeira gravação já trazia a antológica “Moda da Pinga” (Marvada Pinga), que falava coisas como “aqui mesmo eu bebo, aqui mesmo eu caio”.  Imagine!  Foi a primeira a gravar “Ronda”, de Paulo Vanzolini, produtor do seu disco.  Foi em busca do folclore e das expressões musicais regionais por todo o país e cantou nossas maravilhas.  Alguns exemplos: “Lampião de Gás”, “Peixe Vivo”, “De Papo pro Á”, “Chico Mineiro”, “Azulão”, “Prenda Minha”, “Fiz a Cama na Varanda”, “Tristezas do Jeca”, “Maringá”, “Meu Limão, Meu Limoeiro”, “Luar do Sertão”, “Adeus, Minas Gerais”, para lembrar algumas belas interpretações dela.

O documentário “Inezita”, dirigido por Hélio Goldsztejn, com roteiro de Fábio Brandi Torres, faz jus à importância artística de Inezita Barroso e conta com participações que enriquecem sua história, com comentários, casos, relatos.  Lá estão Ruth de Souza, Eva Wilma, Nicette Bruno, Renato Teixeira, Ary Toledo, Wandi Doratiotto, Roberta Miranda, as irmãs Galvão, Zuza Homem de Mello, José Hamilton Ribeiro, o produtor musical Pelão, outros cantores e violeiros, a filha Marta e as netas Paula, Cristina e Fernanda, compondo um painel da vida e da obra de Inezita.

Podemos chamar esse documentário de chapa branca?  Talvez.  Mas é uma homenagem mais do que merecida a essa grande artista do nosso tempo, que nos deixou um legado impressionante.  É para aplaudir, mesmo!



terça-feira, 19 de março de 2019

É TUDO VERDADE 2019

Antonio Carlos Egypto


Chega ao seu 24º. ano o Festival É TUDO VERDADE – IT’S ALL TRUE, dedicado aos documentários nacionais e internacionais, apresentado tradicionalmente nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro.  Ele acontecerá em Sampa de 04 a 14 de abril e, simultaneamente, no Rio, só que com alguns dias a menos: de 08 a 14 de abril de 2019.


Amir Labaki ladeado por Danilo Santos de Miranda (SESC) e Eduardo Saron ( Itaú Cultural)


Por que acompanhar esse belo Festival, criado e dirigido pelo crítico Amir Labaki?  Primeiro, porque é sempre uma seleção de qualidade e muito criteriosa, feita por críticos competentes.  Segundo, porque é uma oportunidade de se atualizar com o que de melhor se faz no Brasil e no mundo, no gênero.  Terceiro, porque é uma  possibilidade de refletir sobre questões candentes que atingem o nosso mundo neste momento histórico.  Quarto, e não menos importante, porque todas essas sessões são gratuitas.  É uma chance de ver quantos filmes o tempo permitir.  Em São Paulo, em 4 espaços: Instituto Moreira Salles (Av. Paulista, 2424), Itaú Cultural (Av. Paulista, 149), Centro Cultural São Paulo (Rua Vergueiro, 1000) e Sesc 24 de maio, além de alguns títulos disponibilizados no www.spcineplay.com.br.  Há, ainda, a itinerância do Sesc no interior, durante o mês de maio, em Araraquara, Jundiaí, Santos, São José dos Campos e Sorocaba.  No Rio de Janeiro, as sessões serão no Instituto Moreira Salles (Rua Marquês de São Vicente, 476) e no Estação NET Botafogo (Rua Voluntários da Pátria, 88).

O documentário norte-americano “Mike Wallace Está Aqui”, de Avi Belkin, abre o Festival no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, em sessão especial, e, no Rio, “Memórias do Grupo Opinião”, de Paulo Thiago, será o filme de abertura.

O Festival homenageia Nelson Pereira dos Santos e Claude Lanzman, falecidos em 2018, com uma série de documentários realizados por eles.

12 filmes inéditos estrangeiros e 07 brasileiros participam das competições para média ou longa-metragem, além de 09 brasileiros e 09 estrangeiros inéditos, no caso dos curtas.  Outros 07 filmes inéditos participam da competição latino-americana.  Há, ainda, programas especiais, compondo um total de 66 filmes documentários, selecionados entre os mais de 1600 títulos inscritos, visando a participar desta edição do Festival.




Os filmes premiados nas competições de curtas e longas estão automaticamente classificados para serem examinados na disputa do próximo Oscar. 

É uma alegria poder divulgar um trabalho dessa qualidade.  Arrume algum tempo para se dedicar às sessões desse Festival.  Vale a pena.  Além disso, nestes tempos obscuros em que os cortes à cultura já estão se fazendo notar, como a perda do patrocínio da Caixa Econômica Federal para o cine Belas Artes, o próprio É TUDO VERDADE está correndo risco de descontinuidade, ou ter de se apequenar.  O que espero não aconteça, seria uma grande perda.




sexta-feira, 15 de março de 2019

PASTOR CLÁUDIO

Antonio Carlos Egypto


PASTOR CLÁUDIO.  Brasil, 2017.  Direção: Beth Formaggini.  Documentário.  76 min.


Um homem que hoje prefere ser chamado de Pastor Cláudio, já que é bispo evangélico, é o foco do documentário brasileiro que leva o seu nome atual.  Esse pastor é Cláudio Guerra, um ex-delegado, um dos nomes de destaque do aparelho repressor da ditadura militar, responsável por assassinar e incinerar opositores daquele regime, invariavelmente chamados de subversivos, comunistas ou terroristas.  Portanto, um dos responsáveis pela violência de Estado, que nunca foi punida, já que coberta pela controversa lei de anistia que vigora até hoje.




Por conta disso, e talvez para ficar em paz com sua consciência e suas obrigações religiosas, Cláudio se responsabiliza por tudo o que fez, não foge das perguntas, identifica atos, pessoas e locais.  Ele estava estabelecido no aparelho repressor de Vitória, Espírito Santo.  Mas, como explicou, os agentes trocavam de posições.  Era comum um policial do Rio ir torturar ou matar um subversivo de Recife.  Ou um de Salvador atuar em São Paulo.  De modo que de Vitória ele circulou, agindo nacionalmente, por várias partes do país.  A lógica era matar quem você não conhece ou tem apenas uns poucos dados, até sem saber o nome.  Assim se eliminavam vínculos, medos, hesitações, e tudo acontecia com mais frieza e distanciamento psicológico.  Por sinal, frieza absoluta é a tônica da entrevista-depoimento, conduzida no filme por Eduardo Passos, psicólogo e ativista de Recursos Humanos.

É fato que o pastor Cláudio já havia respondido à Comissão da Verdade, escreveu um livro contando essas histórias (como expressa na filmagem) e já atendeu mais alguém antes, sobre o tema.  O fato de não precisar temer consequências em função dessa anistia que cobre os torturadores e assassinos do regime permite que ele possa assumir a condição de religioso e, de Bíblia em punho, resgatar os fatos e arrepender-se do que fez.  O que só fica bem claro em referência a algumas ações, como a carta-bomba dirigida à OAB e, principalmente, o atentado preparado para o Rio Centro, que seria imputado à esquerda.

O mais comum é aquele tom de banalidade do mal, a que se referiu Hannah Arendt, e que expressa muito bem o sentido de tais ações.  No caso de Cláudio Guerra, cumprindo ordens superiores, sim, mas sendo ele próprio um formulador e responsável por comandos de repressão, tortura e morte.  Ele reconheceu diante das fotos projetadas dos desaparecidos o que fez com cada um deles.




Não se pense que tudo acabou com o fim do regime militar.  A prática da tortura, por exemplo, só mudou de objeto e o ex-delegado, como os demais, continuou ativo em plena redemocratização.   Porém, se desentendeu, por razões práticas, e acabou isolado, perdendo todas as benesses que teve ao longo de sua atuação como agente repressor.

Aparentemente, mudou radicalmente de vida e isso permite o resgate, por meio do cinema, de fatos importantes e modos de atuação no período.  Relevante, didático e oportuno, o trabalho da diretora Beth Formaggini, que se concentrou no essencial e não deu vazão às possíveis explicações do presente do personagem.  Seu passado tenebroso é o que conta.  E o período terrível da opressão do qual ele foi um dos algozes.



domingo, 10 de março de 2019

RAIVA

Antonio Carlos Egypto





RAIVA.  Portugal, 2017.  Direção: Sérgio Tréfaut.  Com Hugo Bentes, Isabel Ruth, Leonor Silveira, Diogo Dória, Sergi López, Kaio César.  84 min.


“Raiva” é um filme português de grande rigor estético, seco como a vida camponesa que retrata, no baixo Alentejo, sul de Portugal, anos 1950.  A ditadura de Salazar mortificava o país, naqueles tempos em que aos pobres faltava tudo: casa, comida, trabalho, estudo, dinheiro.  A mobilidade social era inexistente, como se explicita no filme, quem nascia pobre morria pobre e quem nascia rico morria rico.

“Raiva” é um conto sobre abuso e revolta, baseado no romance “Seara do Vento”, de Manuel da Fonseca, um clássico da literatura portuguesa do século XX.  Dialoga com “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos.

Em que pesem as referências geográficas, políticas e sociais, a direção de Sérgio Tréfaut busca algo quase atemporal, mitológico.  Extirpa a narrativa de explicações sociológicas e de componentes ideológicos, para expor uma história em que há mortos, mas não heróis ou bandidos, não há música manipuladora de emoções, não se busca o naturalismo, nem o espelho da TV.  A fotografia em preto e branco, bela mas despojada, se destaca em um filme que valoriza o silêncio, reduz as falas, mostra a vida, os sentimentos de forma crua.  Há os camponeses, a luta pelo trabalho e pela dignidade e uma reflexão sobre as origens de uma forte revolta.  É como o filme começa.  Mostra dois violentos assassinatos em clima de  bang-bang.  Como se chegou a isso é a trama de “Raiva”, em  flashback.




A produção envolveu Brasil e França, além de Portugal.  O diretor Sérgio Tréfaut é luso-brasileiro, vivendo em Portugal, nascido em São Paulo.  Seu trabalho organicamente disciplinado e austero tem a força de um retrato que atravessa os tempos e os continentes.  De algum modo, está em toda parte, em todas as épocas, como que a revelar o desconsolo da humanidade que se nutre das desigualdades e do autoritarismo para oprimir, buscar calar, produzir conformidade.

Um excelente elenco sustenta uma narrativa de desempenhos marcantes, mais interiorizados do que exibidos.  A explosão, que surpreende, diante da contenção que a forjou.  Hugo Bentes, como Palma, o protagonista, e grandes atores e atrizes, como Leonor Silveira, Diogo Dória e Isabel Ruth, sustentam um trabalho artístico de valor.  Não visa ao sucesso de bilheteria, não faz concessões ao gosto médio.  Um filme até fora de moda, como o define o próprio cineasta, mas que merece toda a atenção dos cinéfilos.



sexta-feira, 1 de março de 2019

UM GIRO PELOS CINEMAS

Antonio Carlos Egypto





UM AMOR INESPERADO (El Amor Menos Pensado), produção argentina de 2018, 136 minutos, dirigida por Juan Vera, trata de um casal que, ao completar 25 anos de matrimônio e ver seu único filho partir para estudar na Espanha, enfrenta uma muito pouco clara crise.  Aquilo que a gente não sabe muito bem por que faz, mas faz, acaba levando a novas e inesperadas experiências e situações.  O que pode vir daí, como sempre na vida, é uma incógnita.  No gênero romance, ou, se preferirem, comédia romântica, o filme apresenta um bem urdido roteiro, diálogos muito bons e, principalmente, um belo elenco, protagonizado pela ótima Mercedes Morán e pelo ator, sempre muito badalado por aqui, Ricardo Darín.




Ricardo Darín está também em TODOS JÁ SABEM (Todos lo Saben), como o marido argentino, contracenando com os personagens espanhóis de Penélope Cruz e Javier Bardem, um casal na vida real.  Aqui, uma festa de casamento tem o condão de reunir a família no povoado de origem, após muitos anos.  Um sequestro fará com que o que estava represado, escondido, tenha de vir à tona e produza um grande incômodo e conflito, que ocupará o lugar da alegria.  Grande elenco e o diretor iraniano, duplamente premiado com o Oscar de filme estrangeiro, Asghar Farhadi, numa grande produção de 2018, não chegam a resultados tão brilhantes como se poderia esperar, ao longo de seus 133 minutos, mas traz para os cinemas um bom filme espanhol.




Um bom filme espanhol que entra também em cartaz agora é o documentário O SILÊNCIO DOS OUTROS (El Silencio de Otros), de 2018, 96 minutos, dirigido por Almudena Carracedo e Robert Bahar.  O filme é produzido pela El Deseo, de Pedro Almodóvar, seu irmão Agustín e Esther García.  Registra a batalha das vítimas para tirar do esquecimento forçado os crimes de lesa-humanidade praticados por Francisco Franco e seus agentes públicos, ao longo de seus quase 40 anos de ditadura fascista.  Já que o Pacto de Moncloa, que viabilizou a Espanha democrática pós-Franco, também levou a uma anistia que previa esquecimento total e a impossibilidade de culpabilizar os que promoveram mortes, massacres e tortura por parte do Estado, o caminho foi um processo internacional.  Inspirados no caso Pinochet, que acabou sendo preso na Inglaterra quando gozava de imunidade em seu país, apesar de crimes terríveis cometidos, os franquistas torturadores estão sofrendo processo na Argentina.  A mesma Argentina que tem no ator Ricardo Darín um defensor consciente dos direitos humanos e da liberdade, que transparecem em suas atuações, tanto em UM AMOR INESPERADO quanto em TODOS JÁ SABEM.