quarta-feira, 18 de março de 2020

CINEMA E CRISE

Antonio Carlos Egypto



Estou aqui falando de cinema já há um bom tempo.  Praticamente 12 anos de forma ininterrupta, postando, pelo menos, uma matéria crítica toda semana.  Mas, com frequência, essa média cresce e só tenho suspendido as postagens por ocasião de alguma viagem mais longa.  Faço isso por paixão.  Cinema sempre foi a minha paixão, desde pequeno.  Aquela tela grande que concentra a atenção das pessoas, aquela sala escura que destaca o filme, aquele som impactante, aquela atmosfera toda sempre me fascinou.  E ainda me fascina.  É insubstituível.




É bom ver um filme em casa, quando os equipamentos contribuem para aproximar essa experiência à do cinema.  Definitivamente, porém, não é a mesma coisa.

Arte de verdade implica mergulho na experiência, entrega, concentração, crítica e reflexão.  Não é fácil obter isso.  O próprio cinema, pode-se dizer, acaba estando muito mais a serviço do entretenimento do que da arte.  Se isso acontece na sala de cinema, imagine em casa, onde tudo tende a favorecer a dispersão.  Da circulação de pessoas e animais domésticos ao onipresente celular e suas notificações ás interrupções para comer e ir ao banheiro, que acabam sendo mais frequentes, ou à luminosidade pouco adequada à fruição cinematográfica, tudo contribui para que a experiência seja bem distinta da do cinema.   Não importa quão genial seja o filme visto em casa.     Não há “8 ½” de Fellini que consiga sair ileso.

Se criadas as condições apropriadas, em horário mais tranquilo, talvez tarde da noite, pode ser muito interessante descobrir alguns filmes, rever outros, conferir uns de menor importância.  Ou centrar-se na trama em si, mais do que no clima do filme, na sua criatividade, na expressividade de sua linguagem.  As séries, quero crer, se prestam bastante a esse papel.  Principalmente, quando consumidas com o excesso que muitos apregoam fazer.

O avanço tecnológico possibilitou a multiplicação de plataformas, mas não prejudicou o cinema.  Ao contrário, popularizou os filmes ainda mais.  Democratizou o acesso, talvez acentuando o caráter de entretenimento mais descomprometido e o espírito do descartável, em oposição ao produto cultural de maior relevância.  Mas isso faz parte do jogo.  E já se veem serviços de streaming, VOD e lançamentos atuais em DVD mais preocupados com a história do cinema e com filmes artisticamente mais elaborados.

De qualquer modo, o cinema nunca vai morrer, as salas de cinema não vão acabar.  Pelo menos nas cidades maiores, a opção sempre estará lá.

Nos últimos anos, com a evolução tecnológica, o processo de fazer filmes e também o de distribuí-los e exibi-los tornou-se mais fácil e acessível.  A produção tem crescido, para todos os gostos.  Em São Paulo, têm sido lançados no circuito comercial dos cinemas em torno de 400 filmes por ano, mais do que os 365 dias do calendário.  E nessa conta não entram os festivais, as mostras especiais e retrospectivas.  O volume do que chega aos cinemas é muito maior.´




De repente, aquela certeza de que o cinema sempre estará lá e com novidades permanentes é atropelada por um novo coronavírus, que acaba produzindo o que parecia impossível imaginar.  Retém as pessoas em casa, fecha as salas de cinema, paralisa a produção, impede a distribuição.  Nesta semana em São Paulo, quase todos os cinemas fecharam as portas, nenhum lançamento aconteceu, todos foram adiados para um futuro ainda incerto.  E o que estava em andamento parou.  Hollywood inteira, pelo que informam.  Dá para conceber isso?  Como ficará o cinema brasileiro depois dessa crise?  Os efeitos de tudo isso na cadeia econômica devem ser imensos.  Muito triste de imaginar.

Bem, claro que não foi só o cinema ou a cultura em geral que parou.  Parece que tudo parou, a terra parou, indicando que muita coisa vai ter de mudar, daqui para a frente.  No funcionamento da vida, na relação com o meio ambiente, nas relações econômicas de produção e consumo, até no modo de ser da globalização.  Não creio que isso possa ser visto apenas como um fenômeno passageiro.  As consequências são sérias, a crise é grave.  Talvez seja a oportunidade para que a humanidade possa construir uma existência mais sustentável, a partir da compreensão e análise das vulnerabilidades globais que se apresentam.  E que sempre haja espaço para que o cinema possa nos encantar.  Sem a arte, a vida perde a graça e o sentido.





terça-feira, 10 de março de 2020

O MELHOR ESTÁ POR VIR

Antonio Carlos Egypto






O MELHOR ESTÁ POR VIR (Le Meilleur Reste à Venir).  França, 2018.  Direção: Mathieu Delaporte e Alexandre De la Patellière.  Com Fabrice Luchini, Patrick Bruel, Zineb Triki, Pascalle Arbillot.  118 min.


“O Melhor Está Por Vir” é uma comédia, uma boa comédia, sobre a amizade e também sobre a morte, ou sobre a expectativa diante dela.

Dois grandes atores sustentam a narrativa muitíssimo bem.  Fabrice Luchini, no papel de Arthur, com seu comportamento mais convencional e certinho, e Patrick Bruel, no papel de César, mais solto e farrista.  Arthur e César são amigos de infância, daqueles que se complementam em suas diferenças.  Um aprende muito com o outro e eles, via negociação, acabam se entendendo e aceitando fazer coisas que um, em princípio, não gostava ou não queria e, o que é melhor, sempre se divertindo com isso.  Enfim, um tem muito a ganhar na companhia do outro e eles sabem, pelo menos intuitivamente, disso.

A graça da história é que, por uma circunstância mal explicada, pelo não dito, pela falta de coragem ou de oportunidade, coisas não se esclarecem.  A consequência é que um fica achando que o outro é que está com uma doença terminal e ambos decidem que há coisas importantes a fazer ou a aproveitar antes que a morte chegue, já que ela deve chegar logo.  Um amigo não abandona o outro nessa hora e, juntos, eles vão viver situações não só engraçadas, mas de grande relevância para a vida de cada um deles.

As sequências são bem construídas, interessantes, curiosas, perfeitamente verossímeis e engraçadas.  Trata-se de um roteiro bem bolado, inteligente e politicamente correto.  Ou seja, sem ser apelativo, vulgar, sem atacar ou ofender a diversidade.  Ao contrário, se divertindo ao defender a diversidade.  Humor pode ser respeitoso e dar margem a reflexão, além de celebrar coisas importantes como, no caso, o valor da amizade.  Tirando sarro das situações, sem babaquice nem pieguismo.  Lidando de forma concreta e realista com a perspectiva da morte, sem ser lúgubre, nem inconsequente.  Embora a inconsequência esteja presente nas maluquices que eles aprontam, pelo jeito, desde crianças.

Um filme muito bom de se ver, sem maiores inovações, mas um entretenimento bem feito e que consegue ultrapassar o limite do mero entretenimento, falando de coisas importantes com leveza.

A dupla de diretores que trabalham juntos já há alguns anos talvez esteja refletindo algo da própria experiência.  Não sei.  Mas parece, pelo fluxo das cenas e pela afetividade que transborda dos personagens.  Claro que com atores tão talentosos como esses tudo flui muito mais fácil.  O fato é que o filme deu certo.  Despretensioso, mas convincente.




EFEMÉRIDES
Os 100 anos de nascimento do mestre italiano do cinema, Federico Fellini, merecem ser amplamente comemorados, como estão fazendo o CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) e o Cinesesc, reexibindo sua obra genial.  Reencontrar-se com (ou conhecer) essa filmografia absolutamente especial e única deve ser mesmo um objetivo de todos, ao longo deste ano.  Seja de que forma for, por meio do DVD, do streaming, VOD.  O que importa é não deixar passar esse momento tão propício dessa efeméride para usufruir do seu talento, sofisticar o desfrutar cinematográfico e também homenageá-lo pela figura importante que foi para todo mundo.

Outros nomes importantes do cinema também fariam 100 anos em 2020: o crítico francês e estudioso de cinema André Bazin, o ator norte-americano Walter Mathau e o ator e diretor brasileiro Anselmo Duarte, o único que pôde ostentar a Palma de Ouro em Cannes pelo seu “O Pagador de Promessas”.  Aliás, que tal revê-lo e aos muitos filmes que ele estrelou, ao longo da vida artística? 

A arte e a literatura brasileiras estão presentes na vida de todos pelo trabalho de Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, pelas gravações da magnífica cantora Elizeth Cardoso e pela pintora e escultura Lygia Clark.  Todos fariam 100 anos também.

A excepcional cantora portuguesa Amália Rodrigues também faz parte desse time de nascidos em 1920.  Assim como o escritor Isaac Asimov e Karol Wojtyla, o papa João Paulo II.

Se recuarmos 100 anos mais, vamos encontrar o nascimento de Friedrich Engels, o revolucionário alemão que compartilhou uma grande obra com Karl Marx (1818-1883).

Recuando mais 50 anos, chegamos ao maior homenageado da música neste ano. O gênio de Ludwig van Beethoven nasceu há 250 anos e será largamente executado ao longo de 2020 em todos os cantos do mundo e também no Brasil.  A Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a OSESP, dará total destaque à obra de Beethoven.  Aliás, já vem fazendo isso desde o final do ano passado.

Em tempos de estupidez e ignorância, nada melhor do que celebrar a beleza da arte e da escrita.  Para lembrar que temos motivo de sobra para nos orgulharmos da humanidade.  Apesar de tudo.





domingo, 8 de março de 2020

COMENTANDO 4 FILMES

Antonio Carlos Egypto





FIM DE FESTA.  O carnaval acabou, mas enquanto, na quarta-feira de cinzas, um grupo de jovens ainda vive a energia que restou da euforia da festa, o pai de um deles, um policial, tem de voltar rapidamente de seu descanso para investigar a morte de uma turista francesa em Recife.  E tem de lidar com seu apartamento ocupado pelos amigos do filho.  Mais do que o desvendar do crime, o filme FIM DE FESTA, do pernambucano Hilton Lacerda, que já dirigiu “Tatuagem” em 2013, focaliza o personagem do policial Bruno e a forma como ele encara as situações que se apresentam.  Irandhir Santos tem um grande desempenho no papel desse policial, que parece viver uma ressaca, não exatamente do carnaval, mas da vida, do seu trabalho ou do momento atual.  Vemos como ele vai conduzir o caso, a expectativa e reações dos familiares e suspeitos, mas também como se relaciona com a homossexualidade do filho, a maconha, a folga dos jovens na sua casa e como ele enxerga sua própria vida.  Um retrato realista, nada esperançoso.  No elenco, Suzy Lopes, Gustavo Patriota, Amanda Beça, Safira Moreira, Leandro Vila.  Participações especiais de Hermila Guedes e de Jean-Thomas Bernardini (da distribuidora Imovision e do Reserva Cultural).  FIM DE FESTA recebeu os prêmios de melhor filme e melhor roteiro pelo júri oficial da última edição do Festival do Rio, 2019.  100 min.

FOTOGRAFAÇÃO, documentário de Lauro Escorel, de 2019, exibido no festival É TUDO VERDADE do ano passado, aborda a história da fotografia, de seus grandes criadores e dos registros de imagens do Brasil, dos pioneiros aos dias de hoje.  Uma imagem do nosso país, que vai se constituindo e se modificando, traduz a nossa identidade coletiva e nos mostra quem somos e a solidez do que somos.  Isso é importante frisar frente ao processo anticivilizatório que tenta se impor a nós.  Escorel contrasta essa bela história com a profusão da fotografação digital dos nossos dias e reflete sobre o impacto disso na sociedade contemporânea.  Ele tem grande experiência e atuação como diretor de fotografia no cinema brasileiro.  Tem, portanto, um olhar privilegiado e amadurecido sobre o tema que escolheu para documentar.  E o fez muitíssimo bem.  76 min.


DE QUEM É O SUTIÃ ?


DE QUEM É O SUTIÃ?  (The Bra), comédia alemã de 2018, dirigida por Velt Helmer, vai a uma região do Azerbaijão acompanhar a vida de um solitário maquinista de trem habituado a conduzir o veículo rente às casas, que estão tão próximas dos trilhos que colocam cadeiras, põem roupas para secar no varal ali mesmo.  Um garoto apita, avisando a chegada do trem.  Vai que um dia Nurlan, o maquinista em vias de se aposentar, esbarra num varal e derruba um sutiã azul.  Encontrar a dona da peça íntima pode lhe trazer muitas emoções, constrangimentos e novidades.  O filme é divertido, simpático, e tem uma curiosidade: é todo sem diálogos.  Não é um filme silencioso, tem som e muito bem explorado, mas não tem falas.  E olhe, não faz falta.  Lembram-se dos filmes “O Ilusionista” e “O Homem da Linha”, do diretor holandês Jos Stelling?  Vai por aí.  Afinal, cinema é, antes de tudo, imagem.  No elenco, Miki Manojlovic, Paz Vega, Chulpan Khamatova, Denis Lavant, Maia Morgenstern.  90 min.

AS INVISÍVEIS (Les Invisibles), dirigido por Louis-Julien Petit, de 2018, trata de mulheres em situação de rua, recém-saídas da prisão ou fugidas da família por conflitos, sem emprego e sem a mínima condição de competir no mercado de trabalho.  Elas estão num abrigo para mulheres sem teto, aos cuidados de assistentes sociais dedicadas, mas que encontram dificuldades de toda a ordem, legais, burocráticas, e da própria incapacidade de adaptação daquelas a quem atendem.  São muitas personagens, falta um pouco de contexto para quem não conhece a situação francesa, mas é um mergulho interessantíssimo na vida dessas mulheres.  O que é contado com dramaticidade, mas também com muito humor. Isso torna o filme mais atraente e menos pesado.  Por exemplo, uma personagem que busca trabalho faz questão de contar a todos os possíveis empregadores que esteve na prisão, porque quer ser absolutamente honesta e não mentir.  O que, obviamente, complica as coisas, visto que o preconceito contra presidiárias é enorme.  Como convencê-la de, ao menos, omitir essa informação?  No elenco, Patrícia Mouchon, Koukha Bonkherbache, Bérangère Toural.  102 min.

LEMBRETE - Já fiz a crítica do filme O OFICIAL E O ESPIÃO (J’Accuse) quando do prêmio César, que realmente escolheu Roman Polanski como diretor, apesar dos protestos.  O filme merece ser visto e entra em cartaz agora, no dia 12 de março.  A crítica pode ser acessada aqui. 





quarta-feira, 4 de março de 2020

MARTIN EDEN

Antonio Carlos Egypto






MARTIN EDEN (Martin Eden).  Itália, 2019.  Direção: Pietro Marcello.  Com Luca Marinelli, Carlo Cecchi, Jessica Cressy, Marco Leonardi, Vincenzo Nemolato.  129 min.


“Martin Eden”, uma fascinante história do escritor norte-americano Jack London (1876-1916), com elementos autobiográficos, deu origem a um filme italiano que discute questões atualíssimas.  Essas questões dizem respeito às relações entre as classes sociais refletidas pela literatura, à relação desta com o mercado editorial, à liberdade de expressão, à natureza da criação, ao compromisso ético do escritor consigo mesmo e com suas crenças políticas e responsabilidades sociais, ao papel do indivíduo nas transformações socioculturais e políticas.

O veículo para expressar os questionamentos é o personagem título do filme, o escritor Martin Eden, mostrado na complexidade necessária para abranger as diversas dimensões de sua experiência concreta, de suas angústias, contradições, de seu ativismo inspirado na leitura de Herbert Spencer (1820-1903), de suas relações com anarquistas e comunistas, de seu desenvolvimento como escritor a partir de uma vida de baixa renda, mirando a classe alta, tentando ser como eles.  Da forma como lidará com o sucesso tão buscado, mas, ao mesmo tempo, tão massacrante.

O contexto histórico é o do período anterior à Primeira Guerra Mundial, de grande efervescência cultural, propício à conquista de espaços e descobertas incentivadoras, mas tenso, conflitivo.  O foco do filme, porém, coerentemente com as teses de um chamado darwinismo social de Spencer, está no indivíduo, na sua batalha pessoal frente aos demais e à coletividade.  As sociedades se desenvolveriam a partir da realização individual de forma positivamente evolutiva.  Isso está no modo de ser do personagem, embora enfatizando mais o mistério do que o progresso inexorável.  Mais a crise do que o otimismo.




No papel do escritor Martin Eden está Luca Marinelli, um grande ator que mergulhou intensamente na atuação e conseguiu expressar muito bem as muitas faces, fases, sentimentos e pensamentos do personagem.  Teve o reconhecimento por essa brilhante performance, conquistando o prêmio de melhor ator no Festival de Veneza, no ano em que Joaquin Phoenix levou tudo pelo papel em “Coringa”.  Marinelli foi o único a conseguir vencê-lo, ao menos uma vez.  “Martin Eden” foi bem recebido e premiado nos Festivais de Veneza, Toronto, Sevilha, e no Festival do Rio.

A direção de Pietro Marcello imprime a ”Martin Eden” uma dinâmica e uma força envolvidas por belas sequências que mesclam imagens ficcionais e documentais e, claro, alimentadas pelo desempenho criativo de Luca Marinelli, que está em todas as cenas, garantindo o filme com seu talento.  O elenco de apoio também está muito bem dirigido, sustentando a trama.

É verdade que o cinema italiano da atualidade não consegue competir com o grande cinema italiano do passado, mas isso não significa que não haja belos trabalhos a apreciar.  “Martin Eden” é um deles.





segunda-feira, 2 de março de 2020

PRÊMIO ABRACCINE 2020

Antonio Carlos Egypto

 A Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema), da qual também faço parte, elege a cada ano os melhores filmes, considerando os lançamentos em cinema, streaming, VOD, do ano anterior.  No caso, 2019.

Uma centena de críticos, distribuídos por quase todos os Estados brasileiros, indica os melhores filmes que, após troca de ideias e debates, passam por votação para a escolha do melhor, em cada categoria.  São escolhidos os melhores longa e curta nacionais e o melhor longa estrangeiro.

Este ano, a Abraccine decidiu divulgar não apenas o vencedor de cada categoria, mas também os 10 mais votados pelo conjunto de críticos da Associação.  Assim, se consegue um panorama mais amplo do melhor da produção cinematográfica do ano que passou.

Confiram a lista dos indicados e o vencedor em cada categoria.  Em seguida, recoloco as minhas críticas dos longas vencedores.

LONGA-METRAGEM BRASILEIRO
VENCEDOR:
BACURAU, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles
Completam o top dez, em ordem alfabética:
DEMOCRACIA EM VERTIGEM, Petra Costa
DESLEMBRO, Flávia Castro
DIVINO AMOR, Gabriel Mascaro
ESTOU ME GUARDANDO PARA QUANDO O CARNAVAL CHEGAR, Marcelo Gomes
INFERNINHO, Guto Parente e Pedro Diógenes
NO CORAÇÃO DO MUNDO, Gabriel Martins e Maurilio Martins
LOS SILENCIOS, Beatriz Seigner
TEMPORADA, André Novais Oliveira
A VIDA INVISÍVEL, Karim Aïnouz
 


LONGA-METRAGEM ESTRANGEIRO
VENCEDOR:
PARASITA, Bong Joon-ho
Completam o top dez, em ordem alfabética:
ASSUNTO DE FAMÍLIA, Hirokazu Koreeda
CORINGA, Todd Phillips
DOR E GLÓRIA, Pedro Almodóvar
EM TRÂNSITO, Christian Petzold
ERA UMA VEZ EM HOLYWOOD, Quentin Tarantino
O IRLANDÊS, Martin Scorsese
NÓS, Jordan Peele
O PARAÍSO DEVE SER AQUI, Elia Suleiman
SYNONYMES, Nadav Lapid




D
CURTA-METRAGEM BRASILEIRO
VENCEDOR:
SETE ANOS EM MAIO, Affonso Uchôa
Completam o top dez, em ordem alfabética:
CARNE, Camila Kater
JODERISMO, Marcus Curvelo
A MULHER QUE SOU, Nathália Tereza
NEGRUM 3, Diego Paulino
QUEBRAMAR, Cris Lyra
SWINGUERRA, Bárbara Wagner e Benjamin de Burca
TEA FOR TWO, Julia Katharine
TEORIA SOBRE UM PLANETA ESTRANHO, Marco Antonio Pereira
TUDO QUE É APERTADO, RASGA, Fabio Rodrigues
             
                      



BACURAU
Antonio Carlos Egypto

BACURAU.  Brasil, 2018.  Direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles.  Com Sonia Braga, Udo Kier, Bárbara Colen, Thomás Aquino, Silvero Pereira, Karine Teles, Antonio Saboia.  132 min.


“Bacurau”, o novo filme de Kleber Mendonça Filho (de “O Som ao Redor”, 2013, e “Aquarius”, 2015) e Juliano Dornelles é um western  brasileiro.  Segue a trilha dos históricos “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, 1963, e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, 1969, de Glauber Rocha (1938-1981).  Filmes que já se pautavam por grande força política e preocupação social, tentando desvendar um universo nordestino, marcado pela violência opressora, de um lado, e resistente, de outro.  Dialoga também com a produção nacional que sempre teve nos cangaceiros uma fonte de inspiração permanente e oportunidade de pensar e de criar a partir da realidade do nordeste brasileiro, para alcançar o país.

“Bacurau” incorpora novos elementos a tudo isso.  Tem invasores agressores e poderosos.  Que chegam a tirar o povoado do mapa e produzem assassinatos aparentemente inexplicáveis, se valendo até de drones com aspecto de disco voador.  Falam inglês, seu comandante é um alemão com pinta e comportamento de nazista, e os colaboradores que atuam com eles falando português, além do inglês, são desprezados e descartados na primeira oportunidade.  Ou seja, estamos no terreno da alegoria política, que soa tão atual, mas talvez seja mesmo uma constante da nossa história.  Até porque nada se nutre do momento atual, embora pareça inspirado nele.  Percepção acurada?  Premonição?   Visão apurada do processo histórico, vista da relação entre a casa- grande e a senzala e na dimensão internacional que as envolve.

“Bacurau” mistura ação e reflexão no mesmo produto.  É um filme forte, intrigante, provocador, mas é também uma aventura, muito envolvente.  Por isso, pode ser visto como um filme de gênero, embora não esteja preocupado em seguir cartilhas ou convenções.  Fala ao sentimento do público, mostra uma violência que tem de ser decifrada e que, afinal, nos leva a algumas conclusões.  Talvez distintas, para cada grupo de espectadores.  Mas que deve mexer com todo mundo, de um  jeito ou de outro.

Um elenco enorme e dedicadíssimo a seus personagens passa uma sensação de grande veracidade e nos remete a um mundo tão familiar quanto parece distante.  Sonia Braga, como a dra. Domingas, reúne as dimensões da solidariedade e do descontrole, a nos indicar a profunda humanidade da figura que encarna.  Udo Kier é a maldade forasteira, mas também o impasse e a solidão.  Bárbara Colen faz Teresa, mulher forte e lutadora. Os forasteiros colaboracionistas são patéticos, mas a gente até se esquece disso porque Karine Teles e Antonio Saboia nos conquistam pela qualidade de seus desempenhos.  Thomás Aquino, como Pacote, e o inusitado bandido local Lunga, papel de Silvero Pereira, nos mostram como é estar no fio da navalha entre a fome e o crime.  Todos os personagens são bem construídos e têm um ator ou atriz à sua altura.

A trilha sonora é também bem marcante, vai de Gal Costa e o objeto voador não-identificado a Geraldo Vandré, passando por Sérgio Ricardo. Marcos reconhecíveis da resistência que marcou a nossa música e o nosso cinema, que combinam bem com a temática tratada no filme.

A comunidade do povoado da Barra, no Rio Grande do Norte, divisa com a Paraíba, onde a maior parte do filme foi gravada, participou ativamente dos trabalhos de apoio à produção e como figurantes, contribuindo para a autenticidade das situações mostradas.

“Bacurau” é um filme de peso da produção brasileira recente, que já vem recebendo o maior reconhecimento internacional, na forma de convites para mais de 100 festivais e mostras de cinema pelo mundo e já com prêmios importantes conquistados nos festivais de cinema de Munique, na Alemanha, em Lima, no Peru, e o importante prêmio do Júri, do Festival de Cannes.



                   
   PARASITA
Antonio Carlos Egypto

PARASITA (Parasite).  Coreia do Sul, 2019.  Direção: Bong Joon-ho.  Com Kang-ho Song, Sun-kyun Lee, Yeo-jeong Jo.  131 min.

“Parasita”, o vencedor da Palma de Ouro em Cannes e indicado pela Coreia do Sul ao Oscar de filme internacional (ex-filme estrangeiro), é um produto poderoso.  A narrativa se refere a uma família pobre, que se aproveita de uma oportunidade de trabalho temporário para um de seus membros, para parasitar uma família rica.

Para trabalhar essa história, Bong Joon-ho se vale de uma variedade de gêneros.  “Parasita” é comédia, destila um humor que produz riso na plateia.  É também um drama, até bem pesado.  Não há personagem que saia incólume de lá.  Tem muito suspense e um sem-número de surpresas e reviravoltas de tirar o fôlego.  Tem também alguns elementos fantasiosos, surrealistas, eu diria.

Ao mesmo tempo, aborda aspectos da realidade social que estão subjacentes à situação, mas também explicitados na dinâmica das classes sociais envolvidas na trama.  Até aspectos políticos da divisão das Coreias aparecem, dando um toque inteligente em cenas de humor.

O filme consegue intrincar todos esses elementos dos diferentes gêneros cinematográficos com bastante competência, sem artificializar as passagens de um a outro registro e sem perder o ritmo.  Ao contrário, o ritmo só cresce após cada reviravolta.

Os desdobramentos das ações, na realidade, produzem novas histórias e situações-problema.  Constituem-se num desafio novo a cada um dos personagens, deixando sempre em aberto onde é que tudo isso vai parar.  É um filme imprevisível, mas que conta com um roteiro muito bem engendrado.

 Acabou conquistando o feito inédito de levar tanto o Oscar de melhor filme quanto o de melhor filme internacional, além do prêmio de diretor e roteiro original. Sucesso absoluto. Acima de qualquer expectativa de seus realizadores.