Antonio Carlos Egypto
MÃES PARALELAS (Madres Paralelas). Espanha,
2021. Direção: Pedro Almodóvar. Elenco: Penélope Cruz, Milena Smit, Israel
Elejalde, Rossy de Palma. 120 min.
Pedro Almodóvar é um grande contador
de histórias, cinematograficamente falando.
Ele articula locações, ambientes, detalhes cenográficos, figurinos,
música, desempenho de atores e atrizes, de modo harmônico. A serviço, porém, do questionamento, da
contestação, da transgressão. Enfim, de
uma perspectiva transformadora, revolucionária.
Ele é, também, um grande criador de
histórias. Seus filmes amarram tantas
ideias distintas e complementares que poderiam dar margem a vários filmes, não
um só. No papel de roteiristas ou
cineastas, é frequente que seus personagens contem outras histórias, diferentes
daquela que estão representando. Pois,
“Mães Paralelas” é um belo exemplo dessa profusão de casos, situações, conflitos,
que se desdobram em vários outros e que poderiam ensejar novos argumentos e
roteiros originais.
O filme se centra em duas figuras
femininas distintas, vivendo uma situação similar. Duas mulheres que engravidaram por acidente,
ou seja, sem planejamento. Uma, Janis
(Penélope Cruz), acima dos 40 anos, e outra, Ana (Milena Smit), ainda
adolescente. Suas histórias de vida são
muito diferentes, os sentimentos envolvidos por essa gravidez, também, porém,
elas terão suas vidas imbricadas por uma série de fatores e circunstâncias e
estarão sujeitas às armadilhas do destino, ou do acaso.
A sexualidade é a fonte de todos os
dramas almodovarianos, e não apenas suas consequências. Aqui não é diferente. A relação de Janis com Arturo (Israel
Elejalde), que resultou na gravidez, apimenta o desejo de ambos com uma questão
maior e política, vinculada à história espanhola. Remete à guerra civil espanhola (1936-1939),
que resultou no regime fascista do ditador Francisco Franco (1892-1975). Almodóvar nunca deixou de se referir em seus
filmes a esse período longo e tenebroso do franquismo. Quando escrevi “Sexualidade e Transgressão no
Cinema de Pedro Almodóvar”, apontei que em todos os seus filmes a referência ao
franquismo está lá, às vezes de forma sutil e indireta ou por meio de seus
valores ultraconservadores e retrógrados, mas nunca escapa. Em “Mães Paralelas” ele faz isso de forma
explícita, ao mostrar que as ossadas de espanhóis mortos naquele conflito dos
anos 1930 continuam a ser descobertas e a produzir horror e sofrimento, em
pleno século XXI.
Almodóvar combina muito bem a vida das
duas protagonistas, com seus dramas pessoais, na vivência de suas experiências
sexuais e afetivas, com a história política do país, que tem tudo a ver com a
relação delas entre si e com seus familiares, recentes ou distantes. Bombardeia
a ideia de que é melhor seguir adiante, esquecer o passado, que já não tem
sentido para os mais jovens. As questões
do passado não resolvidas estarão sempre assombrando as relações do presente e o
futuro do país e das pessoas que nele vivem.
Ana é tão afetada por isso, em sua juventude, quanto Janis, em sua
maturidade. Pais, avós, bisavós,
interagem com as histórias delas hoje e as transformam.
A diversidade dos desejos sexuais e a
fluidez da identidade de gênero também estão presentes na narrativa. O machismo, o estupro e a violência sexual
contra as mulheres são lembrados e integram
a história.
O mercado, o papel da arte e a
revelação da criação artística, assim como o seu caráter avassalador na vida
cotidiana, são abordados a partir da figura da mãe de Ana. O teatro se antepondo à própria vida
familiar, como é comum acontecer, contribuindo para que tudo fique mais
difícil. Ainda assim, compreensível. Almodóvar não costuma julgar seus
personagens. Mostra, relata, provoca,
mas não julga. Tudo o que é humano,
afinal, pode ser compreendido, de algum modo.
Pode ser horrível, mas tem sua razão de ser, no contexto das relações
pessoais. Em termos coletivos, a
tragédia não tem nome, nem explicação.
Tem motivações econômicas e políticas.
Penélope Cruz, maravilhosa, grande
atriz, está indicada ao Oscar por este filme.
Tomara que leve a estatueta para casa.
Mas todo o elenco de “Mães Paralelas” está ótimo. Rossy de Palma, atriz habitual dos filmes do
diretor, está lá, mais contida desta vez e, como sempre, muito bem. Israel Elejalde, que eu não conhecia, está
bem no seu papel. E a jovem Milena Smit,
uma revelação, dá conta do complicado papel de Ana, uma das protagonistas da
trama.
A música de Alberto Iglesias pontua e
destaca as emoções do melodrama político com eficiência. E, naturalmente, Janis Joplin tinha que fazer
parte da trilha. Afinal, a personagem
Janis é uma homenagem a ela, intérprete icônica daquele momento trágico e
inovador do mundo, os anos 1960-1970.
“Mães Paralelas” é um grande filme,
mais uma obra importante na filmografia já extraordinária do mestre espanhol do
cinema contemporâneo, Pedro Almodóvar.