sexta-feira, 30 de novembro de 2018

ROBIN HOOD, A ORIGEM

  Antonio Carlos Egypto





ROBIN HOOD, A ORIGEM (Robin Hood).  Estados Unidos, 2018.  Direção: Otto Bathurst.  Com Taron Egerton, Jamie Foxx, Ben Mendelsohn, Eve Hewson, Jamie Dornan.  116 min.


O herói inglês Robin Hood, o príncipe dos ladrões, o que roubava dos ricos para dar aos pobres, é um personagem fascinante que sempre atraiu o interesse da literatura e do cinema.  Também conhecido como Robin dos Bosques, em Portugal, o Roberto do Capuz (Hood) teria vivido na Idade Média no tempo das Cruzadas, nos séculos XII ou XIII, sendo contemporâneo do rei Ricardo Coração de Leão. O capuz servia para lhe possibilitar a dupla identidade: Robert Locksley, um nobre, e Robin Hood, o ladrão que tomava para si e para o seu grupo de colaboradores a função de redistribuir melhor a riqueza em seu condado.  Seu habitat, a floresta de Sherwood.

O filme “Robin Hood, a Origem”, dirigido por Otto Bathurst, com Taron Egerton no papel do herói, afirma no pôster de divulgação que “a lenda você conhece, a história, não”, daí o subtítulo “A Origem”.  Como assim?  Que história, que origem?  Cada texto literário ou filme conta a sua, é o que mantém a lenda, o mito vivo, desde os anos 1300, diga-se.

Por que voltar a Robin Hood no cinema, depois de ele ter sido tão fartamente explorado, e vivido por grandes atores, a partir do clássico de 1938, com Errol Flynn?  John Derek, em 1950, Sean Connery e Kevin Costner, em 1976, Russel Crowe, em 2010, para citar apenas alguns.  Sem esquecer o registro de comédia, de Renato Aragão e os Trapalhões, em dois filmes dos anos 1970.




O que “Robin Hood, a Origem” faz é colocar o personagem a serviço do formato   blockbuster  hollywoodiano, o superespetáculo cheio de tecnologia, efeitos especiais, muita ação, muita luta, explosões.  O de sempre.  Idade Média do século XXI.  É só observar as flechas de design   superavançado disparadas como metralhadoras de precisão.  Como sempre, o herói resiste a tudo nas situações mais absurdas e inverossímeis.  Tudo em nome do espetáculo, do entretenimento.

Para conseguir curtir esse tipo de espetáculo, é indispensável deixar completamente de lado o espírito crítico e distanciar-se do cotidiano da vida.  Isso, apesar das evidências sociais e políticas do tema central e de o personagem se tornar um revolucionário, incentivador da ação das massas.  Aí pode ser um refresco encarar a aventura do homem medieval do capuz que, na verdade, parece ahistórico, fora do tempo.  Mais ou menos como dar um tempo em acompanhar o noticiário de jornais, TV, Internet, para poder suportar um dia a dia cada vez mais preocupante e assustador.

É o velho e conhecido escapismo que, nos dias atuais, se permite críticas e ironias a grupos e instituições, como neste caso a igreja, que serve de sustentáculo a uma política opressora que asfixia a população, por meio de impostos de guerra cada vez mais escorchantes.


A luta do bem e do mal, no entanto, segue os ditames do mercado.  E, com a malandragem habitual, coloca no fim a cena que dará início ao próximo filme da série “Robin Hood”.  Se houver, se o público comprar.




sábado, 24 de novembro de 2018

AS VIÚVAS


Antonio Carlos Egypto




AS VIÚVAS (Widows).  Estados Unidos, Reino Unido, 2018. Direção: Steve Mc Queen. Com Viola Davis, Elizabeth Debicki, Michelle Rodriguez, Cynthia Eviro, Liam Neeson. Colin Farrell, Robert Duvall.  129 min.


As mulheres estão empoderadas, ocupando todos os espaços, sempre, sempre mais. Resgatando perdas históricas monumentais.  Hoje não há lugar que elas não possam  ocupar.  No entanto, antes de “As Viúvas”, de Steve Mc Queen, não me lembro de tê-las visto no cinema, no comando de um grande e perigosíssimo assalto/resgate, envolvendo muita violência e cinco milhões de dólares.  Até então, elas entravam na ação como colaboradoras, coadjuvantes ou vítimas.  Não dando as rédeas do jogo.

No thriller  do cineasta Steve Mc Queen, que fez outros filmes muito bons, como “Shame”, em 2011, e “12 Anos de Escravidão”, em 2013, num roteiro trabalhado com Gillian Flynn, a mesma de “A Garota Exemplar”, de 2014, um grupo de quatro mulheres compartilha o domínio das ações, enfrentando interesses masculinos poderosos, marcados por crueldade e armamento pesado, sem espaço para maiores negociações.

Essas mulheres, as viúvas, bem diferentes uma da outra, têm em comum dívidas recebidas como herança das atividades criminosas de seus maridos mortos.  Atuam juntas, colaborando entre si na diversidade que apresentam, em meio a um ambiente de crime, paixão, eleições e corrupção, na Chicago atual.

Essa colaboração mútua e solidariedade entre elas, que é fundamental para o sucesso na ação, distingue-se do ambiente fortemente competitivo que costuma permear os agrupamentos criminosos masculinos.  Não que elas não divirjam ou deixem de manifestar suas desconfianças em algumas situações.  No entanto, elas praticam o conceito de que a união faz a força, com competência.

O diretor negro, de origem inglesa, homônimo do ator estadunidense falecido em 1980, constrói um filme de ação, suspense e drama, muito envolvente e cheio de surpresas, que vai se dando a conhecer aos poucos, em meio a sequências intensas e violentas muito bem elaboradas.  A inspiração partiu de uma minissérie britânica de sucesso.  O elenco é de primeira linha, capitaneado por Viola Davis.  Com ótimas atrizes e atores conhecidos do público, que dão conta de uma narrativa, que pulsa com força, ao longo de mais de duas horas de projeção.


LEVA DE BONS FILMES NO CINEMA

Há uma profusão de bons filmes que estão entrando em cartaz nos cinemas.  Alguns já em exibição, outros entram na semana que vem ou logo depois.  São destaques das Mostras de Cinema, especialmente da 42ª. Mostra Internacional de São Paulo, mas também da Mostra do ano anterior e da do cinema italiano.  Todos os filmes citados abaixo já foram comentados aqui no cinema com recheio e podem ser acessados, por exemplo, digitando o título no espaço de pesquisa e clicando pesquisar.  Os filmes da 42ª. Mostra também podem ser acessados por meio do arquivo, nas datas de outubro e novembro de 2018.  Provavelmente, você os encontrará ao lado de outros filmes, mas destacados em negrito, nesse caso.  Vamos à lista.

INFILTRADO NA KLAN, de Spike Lee, Estados Unidos.
EM CHAMAS, de Lee Chang-dong, Coreia do Sul.
UMA NOITE DE 12 ANOS, de Alvaro Brechner, Uruguai.
VERÃO, de Kirill Serebrennikov, Rússia.
TODAS AS CANÇÕES DE AMOR, de Joana Mariani, Brasil.
A GAROTA NA NÉVOA, de Donato Carrisi, Itália.
A ROTA SELVAGEM, de Andrew Haigh, Reino Unido.
BEIJO NO ASFALTO, de Murilo Benício, Brasil.
UTOYA – 22 DE JULHO, de Erik Poppe, Noruega.
ASSUNTO DE FAMÍLIA, de Hirokazu Kore-Eda, Japão.
CULPA, de Gustav Möller, Dinamarca.




Cabe ainda destacar que, de 29 de novembro a 05 de dezembro, o Cinesesc São Paulo exibirá uma seleção de filmes do Festival do Rio 2018.  Serão 22 longas e 8 curtas-metragens do Programa Internacional de temáticas diversas e alguns destaques nacionais, envolvendo ficção e documentário.

No mesmo período, a Cinemateca Brasileira promove a 5ª. Mostra MOSFILM de Cinema Soviético e Russo, em filmes inéditos e clássicos restaurados, entre eles, “Bola de Sebo” (1934), “Vá e Veja” (1985), “Guerra e Paz” (1965) e “Quando Voam as Cegonhas” (1957).  Ingressos gratuitos.  Opções cinematográficas é o que não faltam, como se vê.





quinta-feira, 22 de novembro de 2018

MUSEU

 Antonio Carlos Egypto


MUSEU (Museo).  México, 2018.  Direção: Alonzo Ruizpalacios.  Com Gael García Bernal, Leonardo Ortizgris, Alfredo Castro, Lisa Owen, Letícia Brédice. 128 min.


O cinema mexicano, que se destacou na 42ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com dois belos produtos, “Roma” e “Nuestro Tiempo”, está em cartaz no circuito comercial com outro trabalho muito bom, “Museu”.

O filme, que conta uma história real, que beira o absurdo, mostra um grande roubo ocorrido na cidade do México, no período de Natal de 1985.  Uma ação realizada por apenas dois estudantes de Veterinária, em que eles foram capazes de roubar cerca de cem peças valiosíssimas do extraordinário Museu Nacional de Antropologia, extraídas, principalmente, da sala de cultura Maia.  Surpreendente.  Mas e agora?  Quem vai comprar tais elementos fundamentais e preciosos da própria cultura mexicana, sentidos pela sociedade como uma perda inestimável?




A história é até pouca e previsível, mas o filme, não.  Ele envereda pela questão do valor da arte e da cultura, explorando significados artísticos e turísticos do México, dando densidade e dimensão à questão cultural que está na base da trama.  E mostrando o equívoco que pode resultar da falta de informação e reflexão sobre os signos culturais de um país e de uma região.  Cultura não se mede por dinheiro, não é consumo, é história e vida.

“Museu” tem um ótimo ator, como Leonardo Ortizgris na condição de protagonista, e também o muito conhecido Gael García Bernal, em excelente desempenho.  O filme estreou logo após a Mostra e está indo muito bem, sendo descoberto pelo público.  Merece mesmo ser conhecido.  É um ótimo trabalho do diretor Alonzo Ruizpalacios, em seu segundo longa.  “Museu” levou o Urso de Prata de roteiro no Festival de Berlim.



domingo, 11 de novembro de 2018

BALANÇO DA 42ª. MOSTRA


Antonio Carlos Egypto

A 42ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo trouxe entre as suas 300 opções filmes de grande categoria e alto padrão.  Quantos?  Quais?  Aí depende de cada um ou do que cada um conseguiu ver, dentro de suas possibilidades.  Mesmo os que fazem a cobertura jornalística, crítica, do evento estão limitados a um número restrito de títulos.  No meu caso, foram 62 filmes de longa-metragem, ou seja, em torno de 20% da oferta.  Minhas conclusões estão, portanto, sujeitas a essa amostra.

Dentre os filmes de que mais gostei, que percebi como mais trabalhados, aprofundados, criativos ou inovadores, constato que a grande maioria deles estará presente no circuito comercial dos cinemas, após a Mostra.  Alguns podem demorar, mas outros já estão estreando.  É bom isso?  Se você olhar para o copo meio vazio, dirá que a Mostra tem muitas pré-estreias, quando o que muitos buscam são as filmografias mais distantes, menos conhecidas, ou os filmes que só se podem ver na Mostra, que não estarão disponíveis logo mais.  No entanto, se você olhar o copo meio cheio, verá que o circuito comercial é hoje muito mais sensível do que no passado aos grandes diretores e aos filmes que se destacam nos festivais pelo mundo.  O que nos permite usufruir da qualidade dos filmes da Mostra, ao longo de todo o ano.  Registre-se que esse é também um mérito da própria Mostra que, no passado, era praticamente a única janela para diversificar e arejar a exibição nos cinemas.  Depois disso, que remonta ao período de grande censura na ditadura militar, muita coisa mudou. 


A ÁRVORE DOS FRUTOS SELVAGENS

Conquistamos a liberdade e a democracia, que espero permaneçam no nosso horizonte, com força para rechaçar qualquer ameaça que se apresente.  Temos hoje na cidade de São Paulo uma riqueza cultural muito grande, mostras de cinema variadas, que se apresentam uma após a outra, durante todo o ano, além das salas que exibem o cinema de qualidade, que foi um dia quase exclusividade da Mostra.  O nosso ambiente cinematográfico se enriqueceu, arejou.  Se alcançam sucesso expressivo de público ou se os filmes permanecem em cartaz pelo tempo necessário para serem reconhecidos, recomendados e apreciados, é uma outra questão.  Afinal, o gosto médio sempre foi, e sempre será, medíocre.  E o tilintar da bilheteria (ainda existe isso?) não é um bom conselheiro, culturalmente falando.

O que a 42ª. Mostra também trouxe de muito relevante foi o papel das mulheres no cinema.  Além de muitos filmes realizados pelo gênero feminino, a temática das mulheres teve presença marcante nas narrativas de filmes realizados por homens.  Com sentido libertário e reconhecendo a força das mulheres em todos os campos.  O feminismo nunca esteve tão em evidência, sendo percebido como uma luta prioritária em todo o mundo.  Em algumas regiões do globo, ainda na fase da denúncia dos preconceitos, da falta de lugar e de espaço na vida pública, onde fundamentalismos ainda conseguem dar o tom, por conta de raízes culturais, patriarcais e religiosas.  Ao que parece, no entanto, avança-se em todos os lugares.

As questões que perpassam os gêneros, reconhecendo-os como construções culturais, também ganham progressivamente mais e mais espaço.  Os transgêneros são personagens relevantes em muitas tramas.  A diversidade se expressa, o racismo é mostrado e combatido.  Isso tudo num mundo em que a violência e a opressão se fazem muito presentes.  E de forma ruidosa, com o avanço da extrema direita, dos neonazistas, do drama humano pungente dos imigrantes.  Aqui, mais uma vez, é possível olhar para o copo, vendo-o meio vazio ou meio cheio.

Bem, pelo menos o cinema como espaço de reflexão, realizado com talento no mundo todo, é um maravilhoso refresco para os dias conturbados em que vivemos.  E a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo sempre deu uma forte contribuição para isso, sem sombra de dúvida.

Minha lista de favoritos, ou os 10 filmes que mais apreciei, exibidos na 42ª. Mostra, em ordem de preferência:

A ÁRVORE DOS FRUTOS SELVAGENS, de Nuri Bilge Ceylan, Turquia.
ASSUNTO DE FAMÍLIA, de Hirokazu Kore-Eda, Japão.
CULPA, de Gustav Möller, Dinamarca.
ROMA, de Alfonso Cuarón, México.
EM CHAMAS, de Chang-dong Lee, Coreia do Sul.
NUESTRO TIEMPO, de Carlos Reygadas, México.
INFILTRADO NA KLAN, de Spike Lee, Estados Unidos.
GUERRA FRIA, de Pawel Pawlikowski, Polônia.
UMA MULHER EM GUERRA, de Benedikt Erlingsson, Islândia.
ERA UMA VEZ EM NOVEMBRO, de Andrzej Jakimowski, Polônia.





sábado, 10 de novembro de 2018

COMENTANDO OS PREMIADOS DA 42ª. MOSTRA


Antonio Carlos Egypto

A 42ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, de 2018, acabou, em suas sessões regulares, em 31 de outubro.  Houve mais uma semana de repescagem, que se encerrou em 07 de novembro.  Foi preciso chegar à última sessão da repescagem para que eu conseguisse ver todos os filmes premiados do evento.  Quase.  Ainda acabou faltando um: o brasileiro SÓCRATES (Menção Honrosa do Júri Internacional).  E isso acontece mesmo eu tendo conseguido ver mais de 60 filmes no conjunto do evento.  Só um desses premiados entrou na minha lista dos dez melhores, mas reconheço em todos méritos evidentes para terem recebido o prêmio que lhes coube.


NUESTRO TIEMPO

NUESTRO TIEMPO, do México, prêmio da Crítica para melhor filme estrangeiro, é o que consta também na minha lista dos dez mais.  É um trabalho do diretor mexicano Carlos Reygadas (do belíssimo “Luz Silenciosa”, de 2007).  Um filme moderno, tanto na concepção quanto na temática.  Há uma trama central que aborda os novos conceitos éticos, morais e comportamentais, que nos colocamos neste nosso tempo de permanente mutação.  O curioso é que o contexto em que isso é colocado é tradicional: uma fazenda de gado, em que se vive em pleno campo, cercado de animais, se deslocando de carro ou a cavalo, mas com a presença indispensável dos celulares e do controle tecnológico que eles permitem às pessoas.  Várias sequências, todas muito bem construídas e impactantes, entram como apêndice, contraponto, comentário em relação à questão central.  Cada um pode interpretar como lhe parecer melhor.  Há força em todas elas, nas crianças que brincam e interagem intensamente umas com as outras.  Nos jovens que se relacionam fortemente, de forma amigável, amorosa, mas também bastante competitiva.  Nos touros, símbolos da fazenda, que se atracam, se enfrentam, com muita força.  Compreendemos que temos ali um universo marcado pela intensidade de movimentos e sentimentos.  O homem moderno se rege por novos padrões, mas o que vive internamente continua sendo marcado por suas vulnerabilidades.  Há a dominação, a manipulação, a perda de controle marcada pelo ciúme, pelo medo do abandono e da solidão, pela inveja e pelo desejo de ser genuinamente amado.  Questões ancestrais que têm de ser retrabalhadas no nosso tempo.  Mas como?  A que custo?  O filme nos coloca essa questão com belas sequências e desempenhos marcantes do elenco, de forma muito instigante.

O prêmio da Crítica para o melhor filme brasileiro da Mostra foi para TODAS AS CANÇÕES DE AMOR, de Joana Mariani.  De fato, o filme é muito charmoso, ao mostrar dois casais jovens, de classe média, que têm em comum um apartamento, onde residem em tempos diferentes, ou seja, um após o outro, e uma fita cassete gravada com as canções de amor, não todas, mas muitas.  A seleção musical ilustra a vida amorosa do casal Clarice e Daniel, revisitada por Ana e Chico, em sua própria vida amorosa.  Ela, tentando fazer literatura a partir da fita cassete das canções e do apartamento.  Um bom roteiro e uma ótima seleção musical de Maria Gadú, com direito a uma participação especial de Gilberto Gil, cantando Drão.  O filme já entrou em cartaz nos cinemas.



LAS SANDINISTAS


Dois prêmios foram conquistados por LAS SANDINISTAS, o troféu Bandeira Paulista, para novos diretores, e o prêmio do público, para melhor documentário.  O filme de Jenny Murray é brilhante, ao retratar o processo revolucionário que aconteceu na Nicarágua, em 1979.  A chamada Revolução Sandinista contou com a participação ativa, decisiva e na primeira linha, das mulheres.  Algumas delas, que se destacaram, estão no filme.  O problema é que elas foram perdendo a batalha da história, do registro de seus feitos, a do esquecimento.  E mesmo de seu pioneirismo ao implantar programas sociais, educacionais, de saúde, após a conquista do poder.  O machismo, que vigorava tradicionalmente na sociedade nicaraguense, se entranhou também no tecido revolucionário e no governo de Daniel Ortega.  A ditadura de Somoza se foi, mas os feitos das mulheres estão caindo e sendo esquecidos.  O documentário estadunidense busca resgatar essa verdade histórica e faz um belo libelo feminista, embora sem alarde, a partir disso.

O prêmio do público para ficção ficou para CAFARNAUM, do Líbano, direção de Nadine Labaki (de “E agora, aonde vamos?”, de 2011).  É o melhor filme dela, na minha opinião.  O resultado realista que ela obteve com um ator de 12 anos, Zain, ao longo de todo o filme, é notável.  Ele contracena boa parte do tempo com um bebê, o que funciona incrivelmente bem.  O que a mise-en-scène  mostra é uma vida de miséria absoluta, que acaba fazendo com que o menino processe seus pais por ter nascido (sic).  Isso é muito estranho.  Também é esquisito ver os pais do garoto tendo um monte de filhos, sem suprir nenhuma das necessidades básicas de nenhum deles, e dispostos a vender a irmã de Zain, assim que ela menstrua pela primeira vez.  Esses pais vivendo na miséria é que são os culpados ou o sistema que produz essa miséria toda também os vitimiza?  Isso não fica claro e o apelo por pôr menos filhos no mundo soa forte e, a meu ver, impreciso.  O filme é muito bem realizado e envolvente, recebeu aplausos ao final da sessão e tudo mais.  Tem, porém, esses problemas e alguns outros, menores.  Em compensação, tem sequências muito bem boladas, como o carrinho improvisado que Zain fez, para carregar o bebê pela rua.


CAFARNAUM


O filme brasileiro MEIO IRMÃO conquistou duas importantes premiações: o Petrobrás de Cinema, como melhor longa nacional de ficção, recebendo R$200.000,00, e o reconhecimento da Crítica, pelo prêmio da Abraccine.  Nada mau para o primeiro longa de Eliane Coster.  A jovem Sandra e seu meio irmão Jorge são figuras vulneráveis, de uma realidade empobrecida, com a mãe sumida.  Com uma estrutura familiar rarefeita, sem dinheiro e ainda tendo de lidar com uma agressão homofóbica filmada por Jorge, as coisas não ficam fáceis.  O trabalho da cineasta mostra, de forma convincente, esse clima de insegurança e desamparo que atinge os personagens. 

O Prêmio Petrobrás de Cinema também agraciou, no quesito documentário nacional, com R$100.000,00, TORRE DAS DONZELAS, de Susanna Lira.  O filme, que trata da torre do presídio Tiradentes, dedicada à prisão feminina nos tempos da ditadura militar, alcançou a ex-presidente Dilma Rousseff e um grupo grande de mulheres.  Presas políticas, militantes de esquerda vinculadas, geralmente, a grupos que tinham atuação na luta armada de resistência da época, não só contam sua epopeia, como tentam reconstruir o espaço em que viveram, já agora demolido.  Não faltam relatos pungentes das torturas vividas por elas no DOPS, antes de chegar ao “paraíso” da prisão Tiradentes.  O filme, apesar do tema, tem alto astral e histórias curiosas, como aquela do recebimento de vestidos de festa doados a elas, em plena prisão, sem perspectiva de saída. Acaba sendo hilário.  São, em sua maioria, mulheres inteligentes, acadêmicas.  Todas elas encantam com sua coragem e disposição de viver, ainda hoje.



quinta-feira, 8 de novembro de 2018

OUTROS DESTAQUES DA 42ª. MOSTRA

  Antonio Carlos Egypto


VERMELHO SOL, de Benjamin Naishtat, destacou-se entre os muitos filmes argentinos exibidos na 42ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, por abordar um período menos evidente da vida política recente do país.  Enquanto muitos filmes tratam da ditadura militar que acometeu a Argentina a partir de 1976 e cujas consequências são amplamente conhecidas e comentadas, aqui o que é evidenciado é o período anterior à tomada de poder pelos militares.  Nos anos 1970, numa pequena cidade, sente-se a tensão no ar, aquilo que está para irromper a qualquer momento.  Sabe-se, também, que o autoritarismo é parte integrante da história argentina e já estava instalado, ainda que não da forma como se estabeleceria em seguida.  O mérito do filme é que ele nos faz sentir o cheiro do que está a caminho. Desmentindo o famoso mote do deputado Tiririca: pior do que está sempre pode ficar.  A intolerância, a vingança, a violência, são os sintomas, as evidências desse mal-estar que se estabelece e causa medo.  109 min.


UTOYA

Por falar em medo, que dizer do filme norueguês UTOYA—22 DE JULHO, de Erik Poppe?  Ele nos coloca no centro da ação em que estavam cerca de 500 adolescentes acampados no verão, na ilha de Utoya, que fica nos arredores de Oslo, e que foram alvo de atirador implacável, um representante da extrema direita, como nos informam os créditos finais.  Sem focar no atirador, o filme nos faz acompanhar todos os passos de uma adolescente em pânico, que luta para sobreviver e encontrar sua irmã mais nova, durante o assassinato em massa.  Faz isso em tempo real, ou seja, durante os 78 minutos em que durou efetivamente a tensão, antes que a situação fosse controlada.  O restante do tempo do filme é o que ocorreu antes do início do tiroteio, onde já havia notícias de bomba colocada na cidade de Oslo.  É um tempo imenso e um absurdo que tenha acontecido a poucos quilômetros da capital de um dos países mais ricos e melhor organizados do mundo.  A propósito, como um acampamento de verão pode acontecer numa ilha tão pequena e devassada, sem segurança a lhe garantir?  Vivemos o que a adolescente viveu, com o coração na boca, sem saber o que estava acontecendo e por quê. A personagem e a encenação são fictícias, mas baseadas no fato real que ocorreu em 22 de julho de 2011.  O filme, que foi exibido na Mostra, estará brevemente em cartaz nos cinemas.  97 min.

O ENTERRO DE KOJO, o filme de Gana, dirigido por Blitz Bazawule, é um belo trabalho em sua estreia como cineasta de longas-metragens.  Uma históra que envolve o confronto entre irmãos, um acidente fatal no dia em que haveria um casamento, as memórias de infância e a vingança.  Esses são os elementos, temperados com apuro visual e poesia.  A trama se desenvolve, de modo fabular, por meio de uma menina que nos conduz.  Inclui aspectos mágicos e fantásticos, que não tiram, porém, a credibilidade e a viabilidade da história que ela conta.  Ao contrário, a tornam muito mais atraente e original.  Bazawule, que mora nos Estados Unidos e é também músico de hip-hop, sabe criar imagens elaboradas, elegantes, bonitas, e um universo fantástico que dialoga com o mundo concreto.  Por exemplo, ele encaixa na narrativa o papel dos chineses atuando na África e trazendo consequências danosas para as comunidades e para o meio ambiente.  80 min.


O ENTERRO DE KOJO

O documentário brasileiro AS QUATRO IRMÃS, de Evaldo Mocarzel, traz para a tela a figura da grande atriz Vera Holtz, no seu universo familiar.  Ela busca recuperar a memória de sua infância e adolescência, no interior de São Paulo, em Tatuí, onde viveu ao lado de seus pais e com suas três irmãs muito queridas.  Essa retomada se dá, quando o casarão dos Holtz completava 100 anos e no momento em que ela se queixa de lapsos de memória, embora isso não seja visível em sua figura fortemente expressiva e com grande fluência verbal.  Evaldo Mocarzel fez com que ela assumisse uma encenação em terceira pessoa, representasse a mãe, e a pôs em cena com as irmãs no casarão.  O que acabou acontecendo foi que a família retomou hábitos interioranos em torno da comida, sempre à mesa, que até retardavam as filmagens.  O resultado é muito autêntico e revela Vera e suas irmãs no informal, na intimidade afetiva e nas suas características e diferenças.  Vera Holtz alçou voos artísticos que suas escolhas proporcionaram, como o fato de não ter se casado, nem desejado ter filhos.  E, claro, ter abandonado a vida tranquila e acolhedora do interior, em busca de maiores desafios e muitos sucessos.  Neste trabalho, nós, espectadores, acompanhamos seu retorno às origens, percebendo que lá estão as bases que possibilitaram a ela tantos êxitos, por todos os cantos, fora de lá.  76 min.

Outro belo documentário brasileiro, exibido na 42ª. Mostra, é CLEMENTINA, de Ana Rieper.  Mostra a trajetória da grande Clementina de Jesus (1901-1987), cantora descoberta quando já tinha 63 anos de idade e que deixou marcas tão fortes na música e na cultura brasileiras.  Uma das grandes expressões do samba, Clementina trouxe também suas raízes musicais africanas e incorporou as canções tradicionais, folclóricas, o jongo, o partido alto, o benguelê, a música negra, de modo geral.  Importante registrar no cinema a figura e a arte da inesquecível Clementina.  O filme é uma delícia, que se consome com muito prazer e alegria.  É uma produção do Canal CURTA!  75 min.





sábado, 3 de novembro de 2018

MAIS DESTAQUES DA 42ª. MOSTRA



Antonio Carlos Egypto

Quero apontar mais alguns destaques da 42ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: filmes que não foram objeto de prêmio e, talvez, não figurem nas listas de melhores da Mostra de muita gente, mas são belos trabalhos que merecem ser lembrados, no meu modo de ver.

PROCURANDO POR INGMAR BERGMAN, documentário alemão, dirigido por Margarethe von Trotta, é mais uma homenagem ao centenário de nascimento do grande cineasta sueco.  Muito boa, por sinal.  Ela explora o legado do cineasta, colhendo dados de seus colaboradores na criação dos filmes e do filho que não costuma ser ouvido e tem um ponto de vista sobre a relação distante e difícil com o pai e o trabalho onipresente dele.  Margarethe reconhece a enormidade dessa obra cinematográfica e também da literária, em argumentos e roteiros brilhantes, a partir da própria experiência pessoal e influência em suas escolhas profissionais.  Ela também explora a dimensão da vida de Ingmar Bergman (1918-2007), relacionada à sua poderosa arte.

Muito diferente disso é o curta de animação sueco VOX LIPOMA, de Jane Magnusson, que se compraz em interpretar o lipoma facial que acometeu Bergman e destrói a reputação do cineasta junto às mulheres.  Bobagem.  Afinal, Bergman criou algumas das mais importantes personagens femininas em seus filmes.  Isso é o que fica.


PROCURANDO POR INGMAR BERGMAN


PEREGRINAÇÃO, de Julio Botelho, é um filme histórico, muito instigante.  Foi indicado por Portugal para o Oscar de filme estrangeiro.  Conta as aventuras do explorador português Fernão Mendes Pinto, narradas num livro publicado postumamente, nos idos de 1614.  As aventuras fantasiosas, mas, ao que parece, correspondendo às suas longas viagens pelo Oriente, estão entre as mais incríveis vividas, lá pelos reinos da China e do Japão, entre outros.  Verdade histórica, mentira pura e simples, imaginação, desejo e fantasia se misturam numa narrativa que se dá aos saltos, sem linearidade ou evolução natural.  Um filme que tem pegada e estilo próprio.

VIDAS DUPLAS, do talentoso e experiente cineasta francês Olivier Assayas, é um filme sobre troca de infidelidades inesperadas e que surpreendem.  Sim, mas também é sobre as questões editoriais e literárias que se colocam diante da revolução digital.  É seu tema, também, até onde a ficção é criação ou está muito calcada na vida de seu criador, a ponto de se tornar indisfarçável.  E sobre o direito dos retratados “ficcionalmente”, que se veem expostos, de fazerem exigências, impedir a publicação e outras coisas mais.  Que papel tem o livro físico no presente e no futuro?  A leitura digital resistirá ao tempo, como o livro resiste?  Enfim, são muitas faces de uma trama afeita mais aos intelectuais do que ao público em geral.  Talvez nem tanto na França, que cultiva e discute os livros e a literatura muito mais do que nós.  O filme é bem feito e tem bom humor.  Destaque para uma cena divertida, metalinguística, que envolve a personagem de Juliette Binoche, onde ocorre uma especulação sobre a atriz Juliette Binoche.



A DOCE INDIFERENÇA DO MUNDO


Outro belo filme é A DOCE INDIFERENÇA DO MUNDO, do Cazaquistão, de Adilkhan Yerzhanov, que, em tom fabular, reflete sobre a inviabilidade da crença na bondade do ser humano e de uma percepção ingênua do mundo.  A indiferença pode ser gentil, pode aparentar interesse ou até vontade de ajudar, mas quando o dinheiro está em jogo não há saída.  O mundo parece infestado pelo banditismo, pelos mafiosos.  O interessante é que o filme é poético e visualmente elaborado e tem leveza e humor na narrativa, o que torna tudo mais bonito e palatável.

No filme romeno LIMONADA, de Ioana Uricaru, o sonho de obter o green card  para viver nos Estados Unidos é confrontado pelos caminhos para se chegar a ele.  Um casamento de conveniência pode alardear seus propósitos diante de algumas evidências e ensejar chantagens.  Mais do que isso, pode revelar-se um casamento perigoso e fonte de infelicidade.  Enfim, o sonho vai ser posto à prova.  Até onde vale a pena ir por ele?  Será que o próprio sonho não se desfará, ou nem  valerá a pena, diante dos dilemas que se interpõem em seu caminho?  Bastante interessante a proposta do filme, ao trabalhar dilemas e limites a partir da perspectiva da protagonista Maria, enfermeira romena que busca, como tantos, encontrar sua América idealizada.

AMOR ATÉ AS CINZAS, de Jia Zhang-Ke, grande diretor chinês da atualidade, não está entre seus trabalhos mais elaborados ou empolgantes.  Mas a história de amor e conflito que atravessa décadas, em meio a disputas de gangues rivais, separação, prisão e retorno em outro momento e situação de vida, está longe de ser desinteressante.  Tem um elenco eficiente, é bem filmada e suscita algumas reflexões.  É que a gente acaba esperando mais dele, mas é um bom trabalho, não há dúvida.