terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

FLOW

Antonio Carlos Egypto

 


FLOW (Straume).  Letônia, 2024.  Direção: Gints Zilbalodis.  Roteiro do diretor e de Matiss Kaza.  Animação.  85 min.

 

Uma animação da Letônia vem se destacando no cenário cinematográfico, venceu o Globo de Ouro da categoria e está indicada para o Oscar não só como animação, mas também como filme internacional. “Flow” é um desenho fascinante, que deve encantar as crianças, mas se comunica bem com os adultos.

 

Trata-se de um pequeno gato preto, de fortes olhos de cor amarela e preta, que vê seu mundo, seu refúgio, destruído por uma grande inundação, que não para de crescer e vai cobrindo de água tudo o que vê.  Uma consequência do desequilíbrio climático e dos problemas com o meio ambiente, um tsunami?

 

Seja como for, o gato, isolado e independente como é, se vê acuado e posto em perigo a todo instante.  E os espectadores vivem a ansiedade e os riscos pelos quais o gato passa e acompanham toda sua aventura de sobrevivência tensos.

 


Não é comum que seres humanos se identifiquem, se projetem, num personagem felino, que emite sons, mas não fala.  No entanto, isso acontece.  O filme não tem diálogos, afinal, os animais soam, mas não falam.  E não há seres humanos entre os personagens de “Flow”.  Mas há, sim, outros personagens do reino animal que acabam reunidos pelas circunstâncias, tendo de conviver num barco e colaborar entre si, apesar das diferenças.  Unidade na diversidade, para sobreviver.  Amizades improváveis de espécies tão diferentes, que se expressam efusivamente nos sons, mas cada qual com o seu.  Há comunicação possível?  Parece que sim, nessa improvisada arca de Noé.

 

O barco segue à deriva, enquanto a água ocupa o cenário da natureza, até então exuberante, e inclusive com toques mágicos.  A fábula da comunicação entre as espécies, do valor da diversidade e da adaptação necessária às circunstâncias, como forma de sobrevivência diante do inesperado, se realiza, explorando cada um dos diversos personagens da história.

 

Se de início o gato corre, foge da perseguição dos cães e outros animais, agora o seu mundo se fará do convívio pacífico com os diferentes, que antes o assustavam.  A gente acaba se acostumando com o que é desconhecido.  E aprende a conviver com o que antes soava misterioso e perigoso.  O filme nos diz que com os animais e com os seres humanos pode ser assim.  Diante do mal maior, todos caminham juntos.  Uma boa proposta, muito bem realizada.




domingo, 23 de fevereiro de 2025

O BRUTALISTA

Antonio Carlos Egypto

 


 O BRUTALISTA (The Brutalist).  Estados Unidos, 2024.  Direção: Brady Corbet.  Elenco: Adrien Brody, Felicity Jones, Guy Pearce, Raffey Cassidy, Alessandro Nivola.  215 min. com intervalo.

 

“O Brutalista” é uma peça de ficção roteirizada pelo diretor Brady Corbet e por sua esposa Mona Fastvold.  O personagem central é László Tóth (Adrien Brody), um arquiteto judeu húngaro, que sobreviveu ao Holocausto nazista, escapou do domínio soviético em Budapeste, durante a Segunda Guerra Mundial e imigrou para os Estados Unidos, em busca do chamado sonho americano.

 

O filme explora, em toda sua longuíssima duração, uma série de questões ligadas à imigração: a difícil sobrevivência inicial, mesmo contando com um parente no local, a oportunidade que surge, sim, na figura de um mecenas que reconhece o talento do arquiteto e lhe oferece uma grande obra a ser feita, ao mesmo tempo em que desfila preconceitos diversos e desrespeitos flagrantes à figura de László. É o papel de Harrison Van Buren, vivido com brilhantismo por Guy Pearce.  A batalha para conseguir trazer para a América a mulher, Erzsébet (Felicity Jones), e a sobrinha Zsófia (Raffey Cassidy), os problemas com as doenças e a dependência de drogas necessárias para aguentar o tranco.  Enfim, o sonho americano pode ser muito amargo e estranho, como a figura, óbvia, da Estátua da Liberdade de cabeça para baixo.

 

A questão do judaísmo e o então recém-fundado Estado de Israel visto como o lar “obrigatório” dos judeus cria conflitos familiares, que voltam a separar a família que acabara de se reunir nos Estados Unidos.  A religiosidade também se destaca na criação do arquiteto para uma capela em que uma cruz se forma, a partir dos reflexos do sol no teto da obra.  Judaísmo e cristianismo perpassam a vida e o trabalho do arquiteto, mesmo ele não sendo uma pessoa religiosa.

 


A arquitetura está no foco central de tudo, desde o primeiro trabalho de László na América, ao criar uma formidável biblioteca, de início rejeitada. Trata-se aqui da arquitetura brutalista, de formas geométricas gigantes, ousadas, de concreto bruto e aparente.  Uma estética crua e muito resistente, sobreviveu à própria guerra, conforme comenta o personagem do arquiteto.  É uma espécie de design para a reconstrução sólida da Europa do pós-guerra, de inspiração germânica, que remete ao passado, mas com toques modernistas.  Vem daí o nome do filme. Mas há um brutalismo simbólico fluindo também pelo filme.

 

Outro ponto de destaque é a relação entre o artista criador e seu mecenas, seus patrocinadores.  Essa relação é sempre marcada pelo choque de visões, pelo poder que tanto impulsiona quanto censura ou destrói a criação. As idas e vindas, negociações e concessões e até mesmo humilhações que daí resultam, são a base de um conflito permanente em que os sucessos e fracassos se alternam continuamente.  E os limites, tanto de um lado quanto do outro, são postos à prova.  Pesando mais contra o artista, evidentemente.

 

É, sem dúvida, um trabalho competente, uma história contada de uma forma adequada e envolvente, especialmente na primeira parte, onde o convívio ainda corre bem, apesar dos ruídos.  Na segunda parte, quando os conflitos se projetam, as coisas ameaçam passar um pouco do ponto, aproximando-se dos excessos tão característicos do cinema atual.  No entanto, a eficácia do discurso prevalece. 

 

A estupenda trilha sonora se destaca, assim como uma bela fotografia, dão a “O Brutalista” um salto de qualidade que valoriza ainda mais o excelente elenco, liderado por Adrien Brody, em grande desempenho, o que pode lhe valer o Oscar 2025 de ator.  Além dele, o filme concorre em outras 9 categorias: melhor filme, diretor, ator e atriz coadjuvantes, roteiro original, trilha sonora, fotografia, montagem e design de produção.




sábado, 15 de fevereiro de 2025

PRÊMIO ABRACCINE - MELHORES FILMES 2024

 

Antonio Carlos Egypto

 

 

Associadas e associados da Abraccine, Associação Brasileira de Críticos de Cinema, elegeram seus filmes favoritos do ano nas categorias Melhor Longa Brasileiro, Melhor Curta ou Média Brasileiro e Melhor Longa Estrangeiro. Os vencedores foram definidos em votação realizada entre mais de 180 críticas e críticos de todas as regiões do país.

AINDA ESTOU AQUI, de Walter Salles, venceu na categoria Melhor Longa Brasileiro. Em um empate, os curtas EU FUI ASSISTENTE DO EDUARDO COUTINHO, de Allan Ribeiro, e QUANDO AQUI, de André Novais Oliveira, foram premiados na categoria Melhor Curta ou Média Brasileiro. E a produção francesa ANATOMIA DE UMA QUEDA, de Justine Triet, venceu como Melhor Longa Estrangeiro.

 

A Abraccine também divulgou a lista dos 10 mais votados de cada categoria: os TOP 10.

 

 


TOP 10 -- Longa-metragem brasileiro (em ordem alfabética):

 

“Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles
“Cidade; Campo”, de Juliana Rojas
“O Dia que te Conheci”, de André Novais Oliveira
“Estranho Caminho”, de Guto Parente
“A Filha do Palhaço”, de Pedro Diógenes
“Greice”, de Leonardo Mouramateus
“Malu”, de Pedro Freire
“Motel Destino”, de Karim Aïnouz
“Saudade Fez Morada Aqui Dentro”, de Haroldo Borges
“Sem Coração”, de Nara Normande e Tião

 

TOP 10 -- Curta ou média-metragem brasileiro (em ordem alfabética):

 

“Cavaram uma Cova no meu Coração”, de Ulisses Arthur
“Dona Beatriz Ňzîmba Vita”, de Catapreta
“Eu Fui Assistente do Eduardo Coutinho”, de Allan Ribeiro
“Fenda”, de Lis Paim
“Kabuki”, de Tiago Minamisawa
“A Menina e o Pote”, de Valentina Homem
“Quando Aqui”, de André Novais Oliveira
“Samuel Foi Trabalhar”, de Janderson Felipe e Lucas Litrento
“A Sua Imagem na Minha Caixa de Correio”, de Silvino Mendonça

 “Vollúpya”, de Éri Sarmet e Jocimar Dias Jr.

 



TOP 10 -- Longa-metragem estrangeiro (em ordem alfabética):

 

“Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet
“Dias Perfeitos”, de Wim Wenders
“Jurado Nº 2”, de Clint Eastwood
“Pobres Criaturas”, de Yorgos Lanthimos
“O Quarto ao Lado”, de Pedro Almodóvar
“Rivais”, de Luca Guadagnino
“A Substância”, de Coralie Fargeat
“Tudo que Imaginamos como Luz”, de Payal Kapadia
“Vidas Passadas”, de Celine Song
“Zona de Interesse”, de Jonathan Glazer

 

 



 


quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

ANORA e CALLAS

Antonio Carlos Egypto

 

 


ANORA, produção estadunidense, dirigida por Sean Baker, chegou à 48.a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com a chancela da Palma de Ouro no Festival de Cannes.  Mas a gente se surpreende com essa escolha.

 

A história envolve uma prostituta do Brooklin que vê a chance de mudar de vida ao se casar em Las Vegas com o filho de um oligarca russo, totalmente sem noção, que queima dinheiro nos Estados Unidos em sua temporada por lá, e se comporta como um tresloucado, obcecado pelos prazeres do sexo, recém descobertos.  Claro que seu “casamento” será posto à prova pela família do “noivo”.  E a profissional do sexo, naturalmente, lutará para mantê-lo.

 

  O filme é uma comédia amalucada, em que os excessos estão visíveis: quebradeiras, gritarias, xingamentos, vômitos, destruições.  Há que se reconhecer que a comédia funciona, produz risadas, tem sacadas interessantes aqui e ali, mas, no conjunto, beira o nada.  O que terá acontecido com o Festival de Cannes?  Não tinha nada melhor para premiar?

  

Acrescento agora minha surpresa ao ver que o filme também está bem cotado para melhor filme no Oscar 2025. Não o revi , nem teria interesse, mas começo a me questionar o que foi que eu não vi, ou não notei como mérito  em  “Anora”.

 

Bem, além de reconhecer que como comédia ele funciona, a atriz principal Mikey Madison é mesmo muito boa. Seu desempenho é forte e marcante. Mas o filme é um entretenimento que peca pelo excesso e não tem nada de importante a dizer. E, com certeza , há sim, filmes melhores do que esse na lista dos 10 indicados ao Oscar na categoria principal. A começar, é claro, pelo brasileiro “Ainda Estou Aqui”. Torcidas, à parte. 138 min.



 


 

MARIA CALLAS (Maria), produção internacional que envolve Itália, Alemanha e Estados Unidos, dirigido pelo conceituado diretor chileno Pablo Larraín, é um espetáculo cinematográfico/musical de peso.  Dá o devido e merecido destaque ao canto daquela que foi a maior na ópera em todo o mundo: Maria Callas (1923-1977).  O foco do filme, porém, é o período de decadência, de perda progressiva da voz de Callas, associado a seus problemas de saúde, em grande parte decorrentes do uso abusivo de remédios e, claro, dos excessos da profissão.  O brilhantismo vem dos flash-backs e das gravações.  Angelina Jolie vive muito convincentemente a diva do canto lírico, ao lado de outros colegas do elenco, como Pierfrancesco Favino e Alba Rohrwacher.  Foi o filme de abertura da Mostra 48. Concorre apenas ao Oscar 2025 de melhor fotografia.  123 min.

 

 

 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

EMILIA PÉREZ

          

 Antonio Carlos Egypto

 



EMILIA PÉREZ.  França, 2024.  Direção: Jacques Audiard.  Elenco: Karla Sofia Gascón, Selena Gomez, Zoe Saldaña, Adriana Paz.  130 min.

 

“Emilia Pérez” é um filme ousado, que causa impacto, que tem uma forma moderna de expressão e que mescla e funde diferentes gêneros cinematográficos, com esmero visual.  Alguns o classificam como comédia musical de suspense e ação.  Tem humor, mas não é uma comédia, a meu ver.  E um thriller  que envolve crime e violência, drama e crítica social, onde cabe um inusitado musical.  Um filme em que todo cambia todo el tempo.  Mudança é o mote da empreitada francesa, dirigida por Jacques Audiard, cuja trama se passa no México, com o filme falado em espanhol.

 

“Emilia Pérez” me parece ser um representante da ideia de modernidade líquida, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, na sociedade da pós-verdade, em que tudo se dissolve, se liquefaz: o trabalho, a família, o amor e a própria identidade.  E com a marca do medo de não pertencer, de não se encaixar num mundo de violência e terrorismo, que produz angústia e muda velozmente.  Todo cambia.

 

Os personagens mudam, de corpo, de gênero, de identidade, de comportamentos, de valores, de papéis familiares.  Nada permanece sólido.  Consequentemente, as instituições ruem também.  Desafiador, assustador, caótico? Não sei, cada um faça a sua aposta.  Perdemos o controle, isso já faz tempo e tudo, absolutamente tudo, está agora em questionamento.  Um filme que nos traz esse retrato do nosso tempo tem valor, ainda que também tenha problemas.


Uma produção francesa que aborda a guerra do narcotráfico no México, sem ser filmada lá e praticamente sem mexicanos na produção e elenco, está naturalmente sujeita aos tradicionais estereótipos que, nós latinos, conhecemos bem.

 


Por outro lado, valer-se de uma atriz trans como Karla Sofia Gascón para o papel central de Emilia dá força e credibilidade à incrível história que ela vive. Tudo nela se liquefaz, inclusive o modo de viver e de encarar o mundo, não só o gênero ou a identidade.  Com a personagem de Rita, da ótima Zoe Saldaña, passa-se o mesmo, sua capacidade e talento profissional mudam de vetor, de campo, se liquefazem.  A família de Emilia, ex-mulher e filhos, desfaz-se, embaralhando os papéis familiares.  Vira uma família líquida.  E por aí vai.

 

Enfim, é um filme que dá o que falar.  Tem um maravilhoso quarteto feminino: Gascón, Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz, e uma equipe de produção para lá de competente.  Do trabalho do diretor aos criadores das músicas, coreografias e danças bem atraentes, “Emilia Pérez” é  um produto cinematográfico respeitável.

 

Agora, algumas considerações extra-filme.  Ele concorre ao Oscar nas mesmas categorias em que o brasileiro “Ainda Estou Aqui” foi indicado: melhor filme, melhor filme internacional e atriz.  Só que tem ainda mais 10 indicações, alcançando 13 no total. Um evidente exagero.  Sinal de que é o grande favorito do Oscar do ano?  Ou corre o risco de flopar legal? Aí vai muito da campanha, do trabalho de divulgação.  Da briga midiática e das redes sociais que já, ao que parece, causaram danos a Karla Gascón por surpreendentes manifestações preconceituosas, em passado recente.  Logo ela, que representa pela primeira vez uma transexual com chances?

 

As disputas paralelas das redes sociais nada acrescentam ou significam às qualidades ou problemas dos filmes, mesmo que interfiram nas decisões finais dos votantes da Academia.  Não farão de “Emilia Pérez” uma obra-prima, o que ela não é, mas também não transformarão um filme relevante e significativo em algo a ser rechaçado ou ignorado.  Aliás, é muito difícil ignorar um filme como esse.