sexta-feira, 28 de abril de 2023

JAIR E O CINEMA

   Antonio Carlos Egypto

 

Entrou em cartaz nos cinemas um documentário que comentei aqui por ocasião do festival É TUDO VERDADE de 2020 sobre o nosso saudoso cantor Jair Rodrigues. 

 


JAIR RODRIGUES – DEIXA QUE DIGAM, dirigido por Rubens Rewald, é um documentário muito competente sobre um artista cujo talento se evidencia por inteiro.  Jair Rodrigues (1939-2014) foi um excelente cantor de sambas, mas também dos mais diferentes gêneros, com um repertório muito bem escolhido e momentos memoráveis, quando, com seu primeiro sucesso, antecipou o rap com “Deixa Isso Prá Lá”, o Fino da Bossa, com Elis Regina, os Festivais e a inesquecível interpretação de “Disparada”, sucessos como “Tristeza”, “Majestade, o Sabiá” e tanta coisa mais, que o filme mostra com toda a clareza.  É possível conhecer e apreciar esse trabalho muitíssimo bem.  É isso o que importa, quando se focaliza uma obra artística de peso, como é o caso aqui. 90 min.

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A mostra AMOR AO CINEMA, que está acontecendo de 27 de abril a 10 de maio de 2023, no Cinesesc em São Paulo, permite rever filmes famosos e alguns recentes, que têm o cinema como protagonista.  Entre os que podem ser considerados clássicos, vale a pena rever na telona “Cantando na Chuva”, “Crepúsculo dos Deuses”, “A Noite Americana”, “A Rosa Púrpura do Cairo”, “A Invenção de Hugo Cabret”, “Meu Melhor Inimigo” e o recente “Os Fabelmans”.  Mas há filmes muito bons sobre a temática do cinema, que são menos conhecidos, como “Serbis”, “Adeus, Dragon Inn”, “Salve o Cinema”, “Depois da Vida”, além de brasileiros, como “Um Filme de Cinema”, “Matou a Família e Foi ao Cinema”, “Cine Marrocos”, “Saneamento Básico, o filme” ou “A Mulher de Luz Própria”.  O que não falta nessa mostra são bons filmes.  Reproduzo aqui o comentário postado no cinema com recheio em outubro de 2022  sobre um desses filmes.

 


O DEUS DO CINEMA (Kinema no Kamisama), Japão 2021, do diretor Yôji Yamada, que tem 91 anos (nasceu em 1931) é, como o nome já indica, uma homenagem ao cinema.  O cinema percebido até como um bálsamo, uma cura para problemas de difícil solução.  Como o de Goh, apostador inveterado, que perde tudo e está sempre à espera da bolada que vai saldar suas enormes dívidas.  Enquanto isso, a família sofre e resolve confiscar o dinheiro da sua aposentadoria.  Mas, sabendo do seu amor pelo cinema, mantém a verba para que ele possa ver todos os filmes que quiser, retornar ao cinema onde trabalhou com seu amigo Terashin, dono de uma sala e projecionista.  Goh chegou a tentar ser diretor de cinema e tinha engavetado um belo roteiro, chamado “O Deus do Cinema”.  Esse roteiro, revisto e retrabalhado, pode ser a sua tábua de salvação, desde que atualizado e modernizado, contando com a nova geração representada por seu neto.  Revemos, então, todo o passado que deu origem a isso, enquanto a magia do cinema e aspectos da história do cinema japonês clássico e suas estrelas são mostrados com admiração.  Yoshiko, sua mulher desde há muito, também faz parte importante dessa história, dá o toque não só romântico como de disputa, ciúme e rompimento, entre os amigos.  Exploram-se, portanto, dois grandes momentos da vida de Goh: o seu passado no cinema e o seu momento envelhecido, em que o cinema volta a ocupar o primeiro plano na sua vida.  Amor que é amor é assim: Goh queria morrer numa sala de cinema, assistindo a um filme.  Fez-me lembrar do nosso Jô Soares, tão cinéfilo quanto, que preferia viver seus últimos dias em casa, vendo filmes, em vez de estar numa UTI, isolado, entubado, com todos os equipamentos à disposição, mas infeliz e prolongando algo já sem sentido.  Com o cinema, o sentido estaria lá até o último instante de vida.  Com Kenji Sawada, Masaki Suda, Mel Nagano, Nobuko Miyamoto, Keito Kitagawa.  125 min.

 


terça-feira, 25 de abril de 2023

DOCUMENTÁRIOS PREMIADOS

Antonio Carlos Egypto

 

O Festival Internacional de Documentários É TUDO VERDADE concluiu sua 28ª. edição com a reapresentação dos longas (e curtas) vencedores da competição internacional e nacional.

 

Confiança Total

O longa internacional escolhido pelo Júri foi o ótimo CONFIANÇA TOTAL (Total Trust), dirigido pela chinesa Jialing Zhang, produção da Alemanha e Países Baixos.  O filme nos mostra, com toda a clareza, o Estado chinês utilizando recursos tecnológicos cada vez mais avançados, para controlar as pessoas de modo quase absoluto.  Não só pela imensidade de câmeras espalhadas por todos os cantos, mas pelo controle exercido por elementos da vizinhança, pelas instituições que controlam e manipulam dados de saúde, por exemplo, e os aplicam para tolher movimentos ou entradas em locais públicos.  A função de advogado leva à provável imputação de subversão do Estado, quando o assunto é a defesa dos direitos humanos, e por aí vai.  Em nome da suposta transparência, alcança-se amplo abuso de poder estatal sobre as pessoas.  A contrapartida do crescimento do padrão de vida e de consumo é a perda da liberdade?  A denúncia é clara, se não lutarmos contra a evolução do autoritarismo, na China ou em qualquer outro lugar, passaremos a estar submetidos a ambientes assustadoramente opressores, mesmo com a aparência da maior normalidade.  O que não é possível é ser conivente. 97 min.

 

O documentário polonês, PIANO FORTE, de Jakub Piatek, que recebeu Menção Honrosa do Júri Internacional, focaliza a lendária Competição Internacional Chopin de Piano, que acontece a cada cinco anos em Varsóvia.  Num processo de seleção rigorosíssimo, vão sendo eliminados, pouco a pouco, os cerca de 160 concorrentes selecionados, até chegar aos  10 melhores.  Uma competição que gera muita tensão, ansiedade, exige dedicação extrema e produz, consequentemente, decepção e frustração.  O filme acompanhou alguns candidatos e candidatas sem saber até onde eles iriam.  Retratou a realidade humana dessa disputa, que, como qualquer disputa decisiva, é dilacerante, já que pode garantir ou podar de vez as chances de uma carreira brilhante.  Uma oportunidade que pode acontecer, talvez com esta força, só uma vez na vida.  Quem sabe?  Bem dirigido, com boa música e honesto na compreensão psicológica dos participantes, sem fazer julgamentos, o filme flui muito bem. 91 min.

 


Já que estamos falando de música, gostaria de destacar o documentário estadunidense LITTLE RICHARD – EU SOU TUDO (Little Richard – I am everything), que celebra a empolgante trajetória do arquiteto/criador do Rock and Roll, negro, gay, cantor, dançarino e instrumentista de grande vibração.  Suas vitórias, lutas e sofrimentos, estão bem abordados no filme dirigido por Lisa Cortez que, entre outras coisas, destaca o embranquecimento que se tentou operar no rock, às custas de Little Richard, promovendo Elvis Presley e Paul Anka a grandes ídolos.  Mas a aura de Richard resistiu e o reconhecimento do próprio Elvis, dos Beatles, de Mick Jagger, de Elton John e de David Bowie, é eloquente.  O homem era uma fera, mesmo.  98 min.

 

O documentário nacional premiado como melhor pelo Júri foi INCOMPATÍVEL COM A VIDA, em que a diretora Elisa Capai registra a sua experiência de uma gravidez com a sentença de morte do feto já definida do ponto de vista médico.  E sai em busca de outras mulheres que tiveram experiências similares.  É algo trágico e muito sofrido, e também uma questão de saúde pública, à medida em que o aborto, legal e necessário, num caso de anencefalia, é frequentemente negado pelos hospitais e pelos médicos.  O que só aumenta a sensação de solidão e abandono das gestantes.  O filme enfatiza o aspecto emocional do problema e dá vez e voz às mulheres que estão imersas nessa situação.  92 min.

 

Incompatível com a Vida

O curta-metragem brasileiro premiado foi MÃRI HI – A ÁRVORE DO SONHO, do cineasta yanomami Morzaniel Iramari, que aborda os sonhos e experiências de sua comunidade indígena, tão sofrida e agora doente.  Mas o filme não se refere às mazelas atuais e, sim, às características culturais do povo yanomami.  17 min.

 

O curta ucraniano/polonês PTITSA, de Alina Maksimenko, trata do relacionamento mãe e filha no período de lockdown, em função da pandemia.  O que aproxima, para o bem e para o mal, quem vivia num convívio mais distanciado.  Foi o premiado internacional.  É um filme sensível, que trata de uma questão que, de um modo ou de outro, todos tivemos que viver.  30 min.

 

Esses filmes oportunamente poderão ser vistos, pelo menos os longas, nos cinemas.

 

 

 

 

quinta-feira, 20 de abril de 2023

MAIS DOCS EM DESTAQUE

                       Antonio Carlos Egypto

 

 


Um dos melhores filmes da seleção de documentários do É TUDO VERDADE 2023 é FRONT DO LESTE, produção que envolve Ucrânia, Letônia, República Tcheca e Estados Unidos, dirigido por Vitaly Mansky e Yevhen Titarenko.  O filme mostra a guerra da Ucrânia, em andamento, da perspectiva do cidadão comum, que tem que conviver com ela todos os dias, lidar com bombardeios, destruição, mortos e feridos e tantas outras questões daí decorrentes e que precisa de força, de dedicação e, por incrível que pareça, de humor.

 

Acompanha um grupo de jovens voluntários dedicados a atender os feridos do front ucraniano, em condições precárias – gostaria de dispor de um veículo blindado, por exemplo – na base do desespero, mas com empenho, amor e fé.  E mostra as pessoas discutindo questões práticas um tanto inusitadas, como a de tentar salvar vacas de um atoleiro que a guerra acentuou, lidar com escombros, moradias destruídas e até com a perspectiva de procurar bancos de espermas para congelar o sêmen dos que podem partir em plena juventude, mas desejariam procriar.  As conversas num encontro festivo especial, que acabou acontecendo, tornam-se até engraçadas e surreais.  Como a do jovem que, por uma doença dos ossos, estava totalmente incapacitado para a ação militar, mas que acaba de inapto total a plenamente capacitado para as ações da guerra em que ele queria lutar pela Ucrânia.

 

As relações entre ucranianos e russos, sobretudo nas cidades fronteiriças, estão borradas e os vínculos são complicados.  E ainda sujeitos a uma guerra de versões, sobretudo pela propaganda russa que alcança e convence ucranianos.  Enfim, o tema é bastante complexo e o documentário dá conta de nos mostrar tal complexidade, pelo menos no sentido de como isso é vivido pelos cidadãos que sofrem as consequências desse conflito bélico dos nossos dias.

 

O filme é muito bom, também, porque é bem filmado.  Usa uma câmera na mão ativa e pulsante, enquadramentos surpreendentes pela performance, principalmente nas cenas que envolvem tensão, leveza no registro de falas e conversas informais, climas que oscilam entre o drama e a amargura da guerra e o sentimento do cotidiano de que essa é a nossa vida agora e que é preciso encará-la com disposição e espírito de vitória.  98 min.

 

                        DOIS DESTAQUES NACIONAIS

 

NADA SOBRE MEU PAI, o documentário de Susanna Lira, fala da busca da própria diretora por seu pai, que ela não conheceu, no Equador. Natural de Quito, foi um jovem guerrilheiro equatoriano, que lutava contra as ditaduras que pipocaram pela América Latina, nos anos 1960-1970, principalmente. E o plural ditaduras cabe bem ao caso porque ele veio para o Brasil também para combater a nossa ditadura militar, por sinal mais prolongada, avançou pelos anos 1980.  Na busca pela origem e identidade, ela explora em uma espécie de road movie as instituições e os órgãos de comunicação do Equador, em busca de pistas que pudessem levar a ele.  Numerosos indícios surgem, mas igualmente possibilidades e pistas falsas.  Seja como for, a jornada de busca é rica e tem muito a ver com a cineasta, que se percebe com a inquietação e a determinação política que seu misterioso pai deixou de legado.  Muito interessante acompanhar essa viagem que ela registrou e participar das memórias e reflexões que um país antes desconhecido pôde lhe trazer.  93 min.

 



171, de Rodrigo Siqueira, se debruça sobre o chamado estelionato, em que as pessoas usam suas habilidades para manipular os outros, aplicar golpes, praticar crimes. Evidentemente, esse tipo de crime pode ter origem em coisas como a fome, o desemprego e o desespero da falta de perspectivas. Porém, quando alguns descobrem que a coisa dá certo, se especializam nessa atuação e têm tanto prazer nessa conquista que ela se torna uma autêntica dependência, já se separou de suas motivações originais.  O documentário 171 encontra pessoas encarceradas em presídios de São Paulo, que são narradores astuciosos, envolventes, que contam suas histórias, mas não sabemos quantas e quais delas são verdadeiras ou simples enredos inventados ou incrementados por outros elementos. Em tempos de mentiras, fake news, disputa de narrativas, as cenas e situações que o filme mostra são muito esclarecedoras do que pode ser a fraude, a encenação de papéis que nos confunde e hipnotiza e das quais é difícil se livrar.  Além do mais, curtir esses personagens na tela é bem divertido. O diretor é o mesmo de um dos documentários mais instigantes que eu vi: “Terra deu, Terra come”, em 2010.  95 min.

 

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domingo, 16 de abril de 2023

DOCS EM DESTAQUE

Antonio Carlos Egypto

 

Documentários surpreendentes, inovadores, instigantes, provocadores, informativos.  Essa é a matéria-prima do festival É TUDO VERDADE 2023, com sua variedade de temas, referências e estilos de narrar a realidade.


 

Beleza Silenciosa

O abuso sexual é o tema do documentário norte-americano (México/EUA) BELEZA SILENCIOSA, em que a diretora estreante Jasmín Mara López conta sua própria história, de como ela enfrentou e superou o abuso sofrido aos 9, 10 anos de idade, pelo avô Gilberto, 30 anos atrás.  Ela optou pelo processo corajoso do enfrentamento, levando o assunto à família diretamente.  Descobriu que houve vários outros casos, encontrou ceticismo, negação, defesa do abusador, omissão e até orientação para calar-se, passar o pano, como se diz atualmente.  Pelo abusador, como de costume, obteve a resposta de que era delírio, imaginação dela.  O filme é muito interessante, bem realizado, inclusive visualmente bonito e corretíssimo ao colocar os elementos relevantes da questão como ela de fato se dá: geralmente dentro da família e com a conivência de familiares.  88 min.

 

A produção canadense AMERICANO: UMA ODISSEIA A 1947, dirigido pelo jovem Danny Wu, traça a já conhecida trajetória do gênio Orson Welles desde o início da sua carreira no teatro, no rádio e no cinema, até a sua saída definitiva dos Estados Unidos rumo a Roma, em 1947.  Estão lá o “Cidadão Kane”, a invasão dos marcianos na rádio transmissão histórica, a vinda ao Brasil para filmar o carnaval, o empastelamento do filme “The Magnificent Ambersons” (“Soberba”, no Brasil), a rejeição e derrocada em Hollywood, mas também e principalmente seu claro posicionamento político em defesa dos direitos humanos, que o levou à acusação de comunismo e de atividades antiamericanas. Inclui histórias de americanos de origem japonesa e suas relações com Pearl Harbor e a bomba de Hiroshima.  E ainda o herói negro esquecido, que, agredido, ficou cego e foi defendido enfaticamente por Welles no rádio, o que ampliou seus problemas na época.  Ou seja, uma narrativa mais ampla e abrangente da grande figura que Orson Welles foi, para além do grande e polêmico criador que o cinema conheceu. 102 min.

 

Danny Wu


O CASO PADILLA (Espanha/Cuba), dirigido por Pavel Giroud, trabalha com uma fita contendo a gravação da autocrítica do escritor e poeta Heberto Padilla, feita em 1971, após prisão pelo regime cubano, em encontro de escritores marcado para esse fim. Um depoimento em que ele se humilha, nega todas as suas ideias e sua obra premiada, ao se declarar contrarrevolucionário, rebaixando-se e repetindo que estava completamente errado e a Revolução Cubana, completamente certa.  Não só no seu caso, mas no de alguns de seus colegas escritores ali presentes e de sua própria mulher.  A que ponto de degradação pode chegar alguém, no caso, um intelectual, para salvar a pele e se autodestruir?  Sua autocrítica é tão obviamente falsa que, longe de proteger o regime cubano naquele período, só o comprometeu.  87 min.

 


Hot Club Montevideo

O documentário uruguaio HOT CLUB DE MONTEVIDEO, dirigido por Maximiliano Correnti, filho de um grande músico, resgata a notável trajetória da instituição de jazz mais antiga da América Latina, que sobrevive até hoje, mesmo tendo perdido sua sede física, o que ocorreu outras vezes.  Em sede própria, num porão, na Aliança Francesa, no Kalima Boliche, ou onde quer que seja, o jazz de pioneiros uruguaios, como Paco Mañosa, Horacio “Bocho” Pintos, Edgardo Falero, Ricardo León Serena e muitos outros, se une a todos os grandes nomes do jazz mundial.  Pelo menos, todos aqueles que um dia passaram por Montevideo e, inevitavelmente, tocaram lá.  Os registros de fotos e filmagens comprovam.  O filme respira música da melhor qualidade e caminha por décadas pela história da capital uruguaia.  Há uma nostalgia, relativa, no ar e nos depoimentos.  Afinal, com a pandemia e com todas as dificuldades, o Hot Club de Montevideo continua vivo.  90 min.

 

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quarta-feira, 12 de abril de 2023

O PASTOR, O GUERRILHEIRO E O LODO

     Antonio Carlos Egypto

 

 



O PASTOR E O GUERRILHEIRO.  Brasil, 2022. Direção: José Eduardo Belmonte.  Elenco: Johnny Massaro, Julia Dalavia, César Mello, Cássia Kis, Sérgio Mamberti.  115 min.

 

João ou Miguel Souza (Johnny Massaro), jovem comunista, opta pela luta armada de resistência à ditadura militar, no Araguaia, nos anos 1970.  Zaqueu (César Mello) é um pastor evangélico de fala fácil e bom canto.  O    que teriam em comum não fosse o fato de ambos acabarem presos na mesma cela e submetidos às torturas habituais do regime militar?  Zaqueu foi preso por engano, ou pela pueril acusação de ser amigo de estudantes que seriam comunistas.

Juliana (Julia Dalavia) é militante estudantil e filha ilegítima de um coronel, que comete suicídio e deixa uma herança para ela.  Convivendo com sua avó doente, D. Ivani (Cássia Kis), o dinheiro será bem-vindo.  Mas ela descobre que seu pai foi o torturador dos dois jovens, sendo que João era seu namorado.  A questão ética, então, se coloca.  A questão legal encontra a barreira da postura moral.

Com esses personagens, José Eduardo Belmonte fez uma ficção, apresentada como baseada em fatos reais, que nos remete aos anos de chumbo da ditadura e seus métodos terríveis, além de erros absurdos, como teria sido a prisão de Zaqueu.

Mesmo sem se aprofundar na questão política, que está no centro da trama, o filme é importante porque remete à reflexão sobre esse período autoritário da nossa história que muitos, pelo jeito, ainda não entenderam o mal que nos causou.

Johnny Massaro está brilhante no papel do guerrilheiro, com uma entrega física e psicológica notável.  Julia Dalavia e César Mello estão muito bem nos seus papéis e só não dá para entender a presença de Cássia Kis no elenco, já que ela foi vista em eventos bolsonaristas, apoiando a intervenção militar em manifestação antidemocrática.  Seu papel no filme fica incoerente com sua atuação política.  Já a presença do saudoso Sérgio Mamberti, num pequeno papel, é absolutamente coerente com sua atuação, que sempre foi firme pela democracia, fora das telas.


 


O LODO.  Brasil, 2022.  Direção: Helvécio Ratton.  Elenco: Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Teuda Bara, Renato Parara, Rodolfo Vaz.  94 min.


“O Lodo” mostra a experiência aterrorizante do personagem Manfredo (Eduardo Moreira), em sua vida pacata de funcionário de uma agência de seguros.  Remete à experiência do personagem kafkiano de O Processo, porém, aqui, a situação é diferente, ela se explica, ou se apresenta, pelo mundo interno do próprio Manfredo.  A opressão externa é um sentimento dele, não um fato que possa ser atribuído a um regime, por definição, opressor.  Ou a uma burocracia que engula e sufoque o indivíduo.  Embora ela possa estar presente, o que importa mais é como ela é percebida.

Acompanhamos Manfredo em seus sentimentos, desejos, hesitações, medos e culpa, enquanto ele resiste a um tratamento psicanalítico, projetando no dr. Pink (Renato Parara) a figura maligna e massacrante de quem é obsessivo por curá–lo, purgando o lodo que toma conta de suas entranhas.  E prescrutando seu passado, insistentemente.  Assim, realidade, sonho, pesadelo e fantasia, andam juntos sem se distinguirem e a figura de Manfredo sucumbe e adoece em meio a esse emaranhado de pressões, que ele já não tem como suportar.

As figuras femininas com quem ele convive são fortes, mas não aliviam sua angústia.  O affaire com a mulher do chefe traz prazer, mas também traz perigo.  E elas acabam por decidir por ele, enquanto ele se omite.

Uma filmagem quase toda feita em espaços internos, e reduzidos, torna o mundo sufocante de Manfredo uma realidade palpável para o espectador.  Assim como a materialização do lodo.  Não diria que o espectador acompanhe aterrorizado essa sina, mas que o suspense se mantém e envolve quem o acompanha.

O filme é uma adaptação do conto homônimo de Murilo Rubião.  Um ótimo elenco, encabeçado por Eduardo Moreira, com atores e atrizes do grupo Galpão de teatro, que já têm uma longa parceria no palco, faz de “O Lodo” um espetáculo cinematográfico forte e contundente

 

 

segunda-feira, 10 de abril de 2023

E TUDO VERDADE 2023

 Antonio Carlos Egypto

 

 


É reconhecida a excelência do trabalho do festival de documentários É TUDO VERDADE já há bastante tempo.  Tanto assim que esta edição, que acontece de 13 a 23 de abril, é a 28ª. do festival, coordenado por seu criador, Amir Labaki.  E que acontecerá em São Paulo na Cinemateca Brasileira, no Cine Marquise, no Instituto Moreira Salles SP, no Sesc 24 de maio e no SpCine—Centro Cultural São Paulo.  No Rio de Janeiro, o festival acontece no Estação NET Botafogo e no Estação NET Rio.  Todas as sessões do É TUDO VERDADE tem entrada franca.  Serão 72 produções entre longas, médias e curtas-metragens de 34 países. A programação inclui ainda conferências, debates e sessões em streaming.

 

Dos filmes em competição, os vencedores dos prêmios dos Júris, tanto brasileiros quanto internacionais, estarão automaticamente classificados para apreciação na disputa pelo Oscar do próximo ano.  A cerimônia de premiação do festival está marcada para o sábado 22 de abril, às 18 horas, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo.  E os filmes vencedores serão reapresentados tanto em São Paulo quanto no Rio.

 

Além das mostras competitivas, de longas/médias e curtas-metragens, brasileiros e internacionais, haverá mostras não competitivas e programas especiais: O Estado das Coisas, Foco Latino-americano e Clássicos É TUDO VERDADE.

 

Dois ciclos especiais merecem toda a atenção dos cinéfilos, um, do cineasta Humberto Mauro (1897-1983), com a exibição de filmes e documentários desse grande pioneiro do nosso cinema.  O outro ciclo é dedicado a Jean-Luc Godard (1930-2022), com a apresentação de 8 episódios da série História(s) do Cinema, 1987/1988. 

 

Acompanhe a programação completa em www.etudoverdade.com.br

e usufrua desse que é um dos nossos mais importantes eventos cinematográficos.  A seguir, comento os dois filmes que farão a abertura do festival É TUDO VERDADE 2023: SUBJECT, em São Paulo, no dia 12, e 1968 – UM ANO NA VIDA, no Rio de Janeiro, no dia 13.

 

 


SUBJECT, Estados Unidos, 2022.  Direção: Jennifer Tiexiera e Camila Hall.  93 min.

O cinema documental tem despertado cada vez mais interesse e obtido divulgação relevante pelo mundo, de modo a alcançar sucesso real de público e de bilheteria.  O que acaba por levar seus realizadores a ganhar um bom dinheiro com alguns deles.  Documentários famosos como “A Escada”, “Basquete Blues”, “Os Irmãos Lobo”, “Na Captura dos Friedmans” e “A Praça Tahir”, são abordados pelo filme SUBJECT, que levanta um grande número de questões éticas a respeito dos documentários.  Um exemplo, é justo que os produtores e realizadores desses filmes ganhem bastante dinheiro e as pessoas que abriram suas vidas, foram o tema e objeto dos produtos audiovisuais, não ganhem nada, o façam, como é habitual, voluntariamente, sem remuneração?  Por outro lado, instituir o pagamento habitual aos protagonistas reais do assunto retratado não desvirtuaria a razão de ser do trabalho, gerando um interesse comercial muito sujeito a manipulação, na própria escolha do tema e das pessoas a serem retratadas?  Deveria o cinema documental se guiar também pela lógica do cinema comercial?  Esse é só um exemplo do que o documentário SUBJECT trata, ao acompanhar, conversar e registrar a experiência das pessoas que foram documentadas, que foram retratadas na tela.  De que forma a vida delas mudou a partir da ampla divulgação do filme, nos casos citados internacionalmente, ao serem colocadas em evidência e terem suas questões e problemas mostrados?  Afinal, elas se tornam estrelas e sua vida cotidiana será muito afetada por isso.  Tanto a popularidade quanto o julgamento moral, como a mudança de perspectiva na vida familiar, na escola, no trabalho, nos locais que frequentam.  Muita coisa vai mudar, para o bem e para o mal.  Como lidar com as responsabilidades e consequências produzidas pelos documentários de sucesso?  São muitas as questões éticas levantadas pelo ótimo SUBJECT.  Se ele não encontra as respostas, pelo menos nos faz sair da sessão cheios de perguntas e dúvidas.

 


1968 - UM ANO NA VIDA.  Brasil, 2023.  Direção: Eduardo Escorel.  91 min.

1968 foi um ano tão emblemático na vida do Brasil e do mundo e as emoções envolvidas são tantas, e algumas tão penosas, que é possível apagar muita coisa.  Mas a irmã do diretor Eduardo Escorel, Sílvia Escorel, escreveu um diário, Lost, em que narrou, comentou, fez colagens de fotos, textos, poesias, músicas, referentes a esse ano de sua vida, o que permite trazer de volta à tela tudo aquilo que vivemos (ou seja, os que têm pelo menos 60 anos de idade, k,k,k).  De maio de 1968 nas manifestações estudantis na França, passando pela guerra do Vietnã e chegando ao famigerado AI-5 no Brasil, em dezembro, aconteceu de tudo naquele ano.  Os hippies, os Beatles, a contracultura e a explosão da juventude nos costumes, no sexo, em tudo.  A partir da vida registrada e narrada em off por Sílvia no filme, numa bela edição de Eduardo, repassamos tudo isso como lembrança, informação ou curiosidade.  Depende de como cada um viveu, experimentou, ficou sabendo, estudou, se posicionou.  Mas que 1968 foi um ano muito especial, não resta dúvida.

 

 

terça-feira, 4 de abril de 2023

FESTIVAL SESC MELHORES FILMES

Antonio Carlos Egypto



 


O mais antigo festival de cinema da cidade de São Paulo completa agora 49 anos de atividade.  E a 49ª. edição do Festival Sesc dos Melhores Filmes mantém a fórmula que o consagrou: a apresentação dos melhores filmes nacionais e internacionais do ano passado, segundo votações realizadas junto à crítica especializada e junto ao público.

 

É, portanto, a oportunidade de ver, ou rever, o que de melhor foi lançado nos cinemas, em 2022, com a qualidade de imagem e de som do Cinesesc, um dos melhores cinemas de São Paulo.  Os preços por sessão: R$24,00 (inteira), R$12,00 (meia) e R$8,00 (credencial plena Sesc).  O Festival, que acontece de 05 a 26 de abril, trará ainda filmes disponíveis com recursos de acessibilidade (legendas open/close caption, libras e audiodescrição).

 

A plataforma Sesc Digital também exibe gratuitamente ao público de todo o país uma seleção de filmes da mostra. 

 

Estiveram em votação para esta edição 372 filmes, sendo 229 estrangeiros e 143 nacionais, que receberam mais de 125 mil votos do público para as categorias apontadas: filme, diretor, ator e atriz nacionais e estrangeiros, além de roteiro, fotografia e documentário nacional.

 

Os cinéfilos vão gostar de saber que haverá uma faixa especial no Festival, chamada Amor ao Cinema, que exibirá alguns filmes icônicos sobre o cinema, como “Cantando na Chuva”, de Gene Kelly, “Rebobine, Por Favor”, de Michel Gondry, “Depois da Vida”, de Hirokazu Kore-Eda, “Adeus, Dragon Inn”, de Tsai Ming-Liang, e “Um Filme de Cinema”, de Walter Carvalho, prevista para acontecer entre os dias 20 e 26, mais para o final do evento. 

 

Na sessão de abertura, no dia 05, às 20:30 h, apresentada por Christian Malheiros, serão conhecidos e premiados os vencedores e será exibido o filme “Tinnitus”, de Gregório Graziosi, de 2022, ainda inédito.  Essa sessão é gratuita, com retirada de ingressos uma hora antes, na bilheteria do Cinesesc, rua Augusta, 2075, São Paulo, SP.