quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

FELIZ ANO NOVO?

Antonio Carlos Egypto

 


Um ano que termina nos leva a desejar um feliz ano novo, com muito amor e prosperidade.  Claro que é o que eu desejo a todos e todas que me acompanharam por aqui, em 2021.  Mas não é fácil.  Temos vivido num tempo sombrio, em que falar de amor e flor é esquecer que tanta gente está sofrendo tanta dor, como dizia Bertolt Brecht (1898-1956).

 

A dor da fome que se alastrou pelo país e que tem relação direta com a inflação, o desemprego, o desalento.  A dor da violência doméstica contra as mulheres e da violência e morte que atinge sobretudo a população jovem, negra, pobre e periférica.

 

A dor dos desastres “naturais”, provocados pela crise climática, o aquecimento global e a deterioração progressiva do meio ambiente. A dor dos indígenas, invadidos e contaminados por mercúrio.  A dor da Amazônia, que queima como nunca.

 

A dor da perda e morte dos entes queridos que a pandemia levou.  E que no Brasil atingiu a cifra alarmante de 619 mil mortes.  A maioria delas evitável, como demonstrou de forma cabal a Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado, por conta de um governo negacionista que trabalhou, e ainda trabalha, contra a vacina.  Mas, aos trancos e barrancos, ela chegou aos braços da maioria das pessoas, graças ao bom senso do povo já acostumado à cultura da vacinação, que soube se opor às fake news e estupidezas que rolam por aí.

 

Isso nos deu um alívio e uma esperança por aqui, mas as notícias que nos chegam de fora são alarmantes.  Ontem, por exemplo, um milhão de pessoas contaminadas por Covid-19 em todo o mundo, num único dia.  E sabemos que, enquanto a África e uma boa parte da Ásia não estiverem com a maioria absoluta de sua população vacinada, e falta muito para isso, o mundo não poderá ter sossego.  Como todos sabemos, nós não somos uma ilha.

 

Não vejo no horizonte próximo como esperar que o nosso Brasil se torne melhor e mais justo.  2022 indica um novo ano muito difícil, mas com uma esperança no fim do túnel.  Havemos de solidificar nossa democracia para que ela nos possibilite superar essa etapa tão triste de nossa história.  E que a partir de então possamos reparar os estragos e construir/reconstruir uma nação digna e fraterna.  Aí, sim, com amor e prosperidade. 



sábado, 25 de dezembro de 2021

UNDINE

Antonio Carlos Egypto

 

 



UNDINE (Undine), Alemanha, 2020.  Direção e roteiro: Christian Petzold.  Elenco: Paula Beer, Franz Rogowski, Maryam Zaree, Jacob Matschenz.  90 min.

 

Undine é uma mulher que trabalha como historiadora, na cidade de Berlim.  Faz encontros e palestras sobre o desenvolvimento urbano da cidade ao longo da história e nos tempos mais recentes com a integração, pós queda do muro, da Berlim Ocidental e Oriental.  Por meio de maquetes, ela explica aos estudiosos e visitantes de várias partes do mundo todo o processo, com didatismo de professora.

 

Ocorre que Undine é também um ser da água e isso fica muito claro no seu relacionamento com um escafandrista com quem ela tem uma relação amorosa muito forte.  Que flerta com a morte.  Obviamente, na água. Tanto ela quanto ele passam por situações-limite de sobrevivência.  Os sonhos exercem papel decisivo nessa questão.  Um boneco escafandrista representa visualmente esse mundo aquático que envolve a personagem central do filme.  Assim como um aquário que se rompe, por exemplo.

 

Ela, como um ser aquático, também tem consequências quando em sua vida na terra se envolve com um homem que não é da água.  E aí a morte tem um peso decisivo.  Ela terá que matar o homem, se ele a trair.

 

Tudo isso remete ao mito de Ondine ou Ondina, mas numa das narrativas que encontrei é ela que morre por ter sido traída.  Neste caso, o filme faz uma correção feminista da história.  Porque, afinal, se ela é que tivesse de morrer, estaríamos culpabilizando a vítima, só por ser mulher.


 



Bem, mas o filme de Christian Petzold desenvolve essa história fantástica com belas sequências e sempre num registro sério.  Uma questão mitológica tratada como drama, que traz sentimentos à tona, sofrimentos palpáveis, traições, omissões que rompem vínculos, com o espectro da morte sempre presente.

 

O elenco dá conta dessa situação de forma admirável, nos colocando num contexto mágico, porém, eivado de realidade.  Destaque para a protagonista Paula Beer, premiada como melhor atriz no Festival de Berlim, assim como a produção, que recebeu lá o prêmio da crítica Fipresci de melhor filme.

 

O fantástico sempre exerceu uma grande atração no cinema.  Muitas vezes como brincadeira, humor ou musical.  Ou no registro de horror e de suspense, que tanto interessa às pessoas.  Na forma de romance e drama com que o fantástico é tratado em “Undine”, conseguimos nos envolver com personagens da água como se eles fizessem parte do nosso dia-a-dia.  Sem estranheza.  Coisas que fazem parte da imaginação, mas só o cinema é capaz de concretizar.

 

 

sábado, 18 de dezembro de 2021

SEM RESSENTIMENTOS

Antonio Carlos Egypto

 


 

SEM RESSENTIMENTOS (Futur Drei).  Alemanha, 2020.  Direção e roteiro: Faraz Shariat.  Elenco: Benjamin Radjaipour, Banafshe Hourmazdi, Eidin Jalali.  92 min.

 

 

“Sem Ressentimentos” é um filme que focaliza imigrantes e refugiados jovens, provenientes do Irã, vivendo na Alemanha, sem conseguir se sentir realmente em casa.  O longa-metragem, que é o primeiro do realizador Faraz Shariat, é considerado semi autobiográfico.  Quer dizer, parte da experiência concreta do diretor.  Já foi premiado com o Teddy Award no Festival de Berlim.

 

O jovem iraniano Parvis vive com seus pais numa pequena cidade alemã como imigrante, tentando se soltar e viver de acordo com seus desejos e a intensidade e urgência de experiências que a sua juventude demanda.  Se a família até tem interesse em voltar a seu país de origem, ele não.  Afinal, para o regime dos aiatolás, essa liberdade e o desejo homossexual são interditados.  Na linguagem corrente, mal existe uma palavra para designar homossexualidade ou o equivalente ao gay, em inglês.  Lá ele se sente bem, embora não consiga ser parte efetiva da sociedade alemã.

 

Um pequeno furto de uma garrafa de bebida numa danceteria, no dia do seu aniversário, vai resultar em uma condenação a realizar trabalhos comunitários como pena por seu crime.  É isso que o conecta, então, a um centro de refugiados, na Saxônia, de onde se destacarão dois outros iranianos: Amon e sua irmã, Banafshe, que fugiram de seu país.  Amon pode permanecer na Alemanha, mas a irmã será deportada.  Seu pedido de permanência não foi aceito.

 




Enquanto vivem suas histórias pessoais, apaixonam-se, tentam se divertir, dançar, cantar, curtir a vida.  Mas não é fácil viver fora de seu país, sentir que não pode ou não vale a pena voltar e, ao mesmo tempo, não se sentir acolhido no novo país, no caso, a Alemanha.

 

Esse drama dos imigrantes é um dos maiores problemas do mundo, atualmente.  Vê–lo na ótica da juventude pode trazer alguma vida, alegria e cor, mas é tão difícil quanto é para os mais velhos.  Talvez a esperança, pelo menos, seja maior de que algo possa mudar a tempo de se poder viver melhor neste mundo.

 

O filme tem sequências bem construídas e um elenco jovem que compartilha com vigor suas esperanças e aflições, de forma eficiente, com o público.



quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

AZOR

Antonio Carlos Egypto

 

 



AZOR (Azor), Suíça, Argentina, 2021.  Direção e roteiro: Andreas Fontana.  Elenco: Fabrízio Rongione, Elli Medeiros, Pablo Torres Nilson, Alexandre Trocki, Stéphanie Cléau.  100 min.

 

“Azor” é um filme estranho de se ver.  Porque nada do que acontece fica claro em momento nenhum.  Exceto no final, talvez.  Porém, como se passa em algum momento dos anos 1980 da ditadura militar argentina, sabemos o que se passava por lá: perseguições, prisões, tortura, desaparecimentos, sequestro de crianças e muito mais.  Vai daí que se alguém desapareceu misteriosamente, ou alguém foi preso ou há uma blitz policial na rua, tudo isso tem um sentido.  Aparentemente, não para o mundo dos endinheirados que passam de festa em festa, passeios, corridas na Hípica, jantares, encontros em que se fala de amenidades, superficialidades.

 

Isso é o filme.  De forma lenta, vamos vendo a vida dessa turma, para quem nada estaria acontecendo, aparentemente.  De qualquer modo, nada estaria acontecendo com eles.  Será? 

 

Bem, um banqueiro suíço, Yvan De Wiel (Fabrízio Rongione), vai à Argentina substituir seu sócio, René Keys, que sumiu sem deixar rastro e de quem se fala de forma cifrada ou dissimulada.  O que se passou?

 




Aqui e ali, as conversas fazem referência a algo do mundo lá de fora, de forma muito indireta ou apenas sugerida.  E a carnificina corria solta, disso sabemos os espectadores. Bem, mas pouco a pouco vai se tornando clara a ligação umbilical entre o regime militar e os bancos suíços.  A ditadura é um negócio, um bom negócio, para o grupo dominante na Argentina e pelo mundo, onde os suíços têm grande relevância financeira.

 

Quando o dinheiro manda, melhor praticar o azor, ou seja, o nosso famoso Cale-se! ou Preste atenção no que diz.  Curiosamente, quando nada está sendo dito.  Mas, de repente, algo pode sair do script. 

 

É bem interessante a tática narrativa do diretor suíço, estreante em longas, Andreas Fontana (também roteirista com Mariano Llinás).  A realidade só se mostra de relance, num descuido, numa palavra indevida, num lapso.  De certo modo, o medo e o suspense se agudizam.  É um mérito, inegável.  Mas não torna a fluência do filme melhor ou mais eficiente.

 

O andar lento, misterioso e distante do que de fato acontece, incomoda, nos deixa aflitos.  Quem acompanhou os fatos da época sabe o que está por trás.  Quem não souber da história recente argentina, pelo mundo, vai boiar.  Mas um tanto de tédio vai atingir tanto uns quanto outros.  Ou será que era eu que estava cansado, ou impaciente, quando vi o filme?

 

 

 

sábado, 11 de dezembro de 2021

NÓS DUAS

Antonio Carlos Egypto

 



NÓS DUAS (Deux).  França, 2019.  Direção e roteiro: Filippo Meneghetti.  Elenco: Barbara Sukowa, Martine Chevallier, Léa Drucker, Muriel Benazeraf.  95 min.

 

 Nina (Barbara Sukowa) e Madeleine (Martine Chevallier), aposentadas, são vizinhas de porta a porta no mesmo andar de um prédio de apartamentos e grandes amigas, há tempos.  Nina, solteira, Madeleine, viúva.  Na verdade, o vínculo entre elas, como já mostram as primeiras cenas do filme “Nós Duas”, é mais intenso.  Elas se amam, compartilham prazeres, de modo discreto e secreto.  Tudo parece andar muito bem, mas falta algo, já que ambas alimentam um desejo de se mudar da França para Roma, para viverem juntas.

 

O empecilho para isso poderia vir dos dois filhos e do neto de Madeleine, mas a relação dela com esses familiares tem arestas.  Nada a ver com o amor lésbico, desconhecido por eles, mas há uma cobrança no ar de que Madeleine não amava verdadeiramente o marido que se foi.  E isso incomoda.

 

O desejo de mudança para Roma desencadeia uma série de situações que abalarão o mundo estável em que as duas mulheres idosas viviam.  Não esperem por um dramalhão.  Ao contrário, o filme dirigido por Filippo Meneghetti é cheio de pequenos detalhes e sutilezas que vão revelando os sentimentos dos personagens.  Um silêncio, uma ausência de resposta, um não cumprimento, uma movimentação no espaço, o toque num objeto, são indicativos disso.  Especialmente na primeira parte do filme, onde as coisas mais graves não aconteceram.  Os eventos se precipitam e as sutilezas se reduzem, porém, não desaparecem. 

 

O diretor está mais interessado no que se sente do que nos fatos e soluções em si.  No entanto, existe uma trama acontecendo e envolvendo o espectador.  Ela se move pelos sentimentos, o medo, especialmente, porém, o contexto social também está presente.  E, no fim das contas, conta muito.

 



O diretor e roteirista Filippo Meneghetti tem 41 anos, é italiano, vivendo na França, e, “Nós Duas” é seu primeiro longa-metragem.  Podemos dizer que, surpreendentemente, foi o filme escolhido para representar a França na disputa pelo melhor filme internacional no Oscar 2021.  Um feito para um jovem e promissor cineasta estrangeiro.  Merecido.  O seu trabalho é consistente, tem uma história bem concebida e ganha força nos detalhes, naquilo que fica em menor evidência, aparentemente.

 

O desempenho da grande atriz Barbara Sukowa tem muito mérito nesse êxito.  Ela transmite tudo o que sente, o que se passa dentro dela, nos menores gestos, posturas, olhares, entusiasmo ou desânimo.  Nossa conhecida desde os filmes de Rainer Werner Fassbinder, a atriz alemã de origem polonesa, é brilhante no desempenho que sustenta o filme o tempo todo.  Sua parceira de protagonismo, a atriz francesa Martine Chevallier, também é exigida na sutileza interpretativa e se sai muito bem.  Basta dizer que, em boa parte do filme, ela atua muda, sem emitir uma palavra.  E entendemos absolutamente tudo o que se passa com ela.

 

Tudo isso funciona bem, numa narrativa do tipo clássico, mesmo com algumas soluções questionáveis.  Por exemplo, guardar bastante dinheiro numa latinha dentro do apartamento não parece um comportamento razoável para uma personagem vivida e decidida como Nina.  Vai bem para a trama, mas não chega a convencer.  De qualquer modo, coisas como essas não comprometem um filme tão bem trabalhado, numa temática difícil e pouco, digamos, comercial.



quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

RETROSPECTIVA DO CINEMA BRASILEIRO 2021

Antonio Carlos Egypto

 

 


Começa hoje e vai até 30 de dezembro de 2021 a 22ª. Retrospectiva do Cinema Brasileiro, com uma seleção de títulos premiados que estrearam no último ano.  Ela ocorrerá presencialmente no Cinesesc e também on line na plataforma gratuita do Sesc Digital.  Entre aqui: sescsp.org.br/cinemaemcasa

 

Entre os filmes, vale lembrar: MARIGHELLA, PACARRETE, BABENCO - ALGUÉM TEM QUE OUVIR O CORAÇÃO E DIZER: PAROU, DOUTOR GAMA, VALENTINA, ALVORADA, MULHER OCEANO, HOMEM ONÇA, VENTO SECO, ACQUA MOVIE, A FEBRE, CABEÇA DE NÊGO, CIDADE PÁSSARO, CINE MARROCOS, LIBELU – ABAIXO A DITADURA, MANGUEIRA EM 2 TEMPOS, SERTÂNIA, TODOS OS MORTOS, ZIMBA, A ÚLTIMA FLORESTA e muito mais.

 

A maior parte desses filmes tem críticas minhas que podem ser acessadas aqui no cinema com recheio.  Basta digitar o título na linha de pesquisa da página inicial do blog.

 

É uma ótima oportunidade para ver ou rever o melhor do cinema brasileiro atual, indo à sala de cinema, usufruindo da belíssima projeção do Cinesesc, na rua Augusta, São Paulo, ou mesmo em casa, acessando um streaming gratuito de alta qualidade.  Aproveitem.

 

 

 

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

OS PRIMEIROS SOLDADOS

Antonio Carlos Egypto

 

 



OS PRIMEIROS SOLDADOS.  Brasil, 2019. Direção e roteiro: Rodrigo de Oliveira.  Elenco: Johnny Massaro, Renata Carvalho, Vitor Camilo, Clara Choveaux, Alex Bonini.  107 min.

 

“Os Primeiros Soldados” começa por mostrar um grupo de jovens homossexuais masculinos, incluindo uma travesti, em Vitória, no Espírito Santo, na chegada do ano de 1983, entusiasmados e em festa.  Primeiro, o filme de Rodrigo Oliveira nos leva a conhecê-los mais de perto, um pouco antes do advento da primeira onda de epidemia de Aids, que seria alcunhada de peste gay.

 

A partir desse ano fatídico, tudo muda na vida deles, repentinamente.  Então, assistimos ao que acontece com o jovem biólogo Suzano (Johnny Massaro), Rose (Renata Carvalho), a mulher trans, e Humberto (Vitor Camilo), videomaker, que estava realizando filmagens sobre Rose.

 

Naquele momento, sintomas como o do raro Sarcoma de Kaposi, revelado por manchas que se espalham pelo corpo, trazem surpresa e desespero, porque não se sabe o que está acontecendo e por que os atingidos são somente os rapazes gays.  Se já havia muito preconceito, a coisa só se complicou com as primeiras descobertas de um tal de vírus gay, mortal, o hoje nosso conhecido HIV.

 

Sem saber nada da doença que os acometia, sem possibilidades de encarar qualquer tratamento efetivo e sem saber como se prevenir, os fatos tomam a dimensão de uma tragédia.  Advém o medo, a vergonha, o isolamento, a discriminação mais aguda e um vale-tudo para tentar descobrir, na prática, alguma coisa que pudesse fazer algum efeito.  Em vão, naturalmente.

 

Esses primeiros soldados capixabas na guerra contra a Aids são os personagens que resgatam a memória desses primeiros tempos, que ceifaram tantas vidas no Brasil e no mundo, trouxeram tanto sofrimento e produziram um retrocesso inicial no processo evolutivo comportamental que se seguiu à revolução sexual dos anos 1960 e 1970.



 

A própria evidência da Aids, em seguida, possibilitou uma discussão mais aberta sobre a sexualidade, em especial, o uso da camisinha, que seria o único meio concreto de prevenir uma doença que se transmitia pelas relações sexuais.  Todas, não só aquelas que se referiam aos gays.  Trabalhei bastante no terreno da educação e da psicologia com o tema da prevenção da Aids, por muitos anos na minha vida.  Posso atestar que avançamos muito e o Brasil serviu até de exemplo para a comunidade internacional, não só na prevenção, na educação e nas campanhas massivas avançadas, mas também na disponibilidade de medicamentos e serviços de saúde à população.

 

Voltar aos primeiros tempos, como faz o filme, é muito interessante já que, com o avanço no conhecimento, na prevenção e no tratamento das infecções pelo HIV, a Aids se tornou administrável, as mortes decaíram fortemente e as novas gerações já não viveram a tragédia que os personagens capixabas experimentaram no filme.  Obviamente, a consequência disso é o relaxamento da prevenção e o refluxo da doença a níveis preocupantes em relação aos jovens, inclusive às pessoas LGBTQIA+, que deixaram de ser alvo preferencial das ações.

 

Desde que se estabeleceu o dia 1º. de dezembro como dia mundial de luta contra a Aids, o último mês do ano tem servido para a difusão de informações, notícias, avanços na área médica, compartilhamento de textos científicos, literários, peças teatrais e filmes, para que não se perca o que foi conquistado.  “Os Primeiros Soldados” faz parte desse esforço e é bem-vindo.  É uma boa produção, bem dirigida, com bom elenco e um trabalho honesto, que está sendo lançado no Festival do Rio, após obter prêmios em festivais de Mannheim-Heidelberg e na Índia. 

 

Os avanços da ciência prosseguem e oferecem respostas e soluções inimagináveis naqueles anos 1980 e 1990, em que o medo e o desespero ocupavam lugar de destaque. Hoje a doença que nos apavora é a Covid19, que nos levou de volta para casa (para quem pôde, naturalmente) e graças à mesma evolução científica foi capaz de produzir, em tempo recorde, vacinas, que estão começando a nos libertar.  O mais importante é não negar a doença ou a gravidade dela.  Só é possível vencer aquilo que se conhece e que se reconhece como problema.  Pois é daí que vem a luta e a persistência no combate.  Os primeiros soldados foram abatidos, mas fizeram história na questão da Aids.  Que as mais de 615 mil mortes pelo novo coronavírus, da Covid19, no Brasil, nos alertem para que possamos não mais repetir os enormes erros praticados ao longo dessa pandemia.

 


 

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

A MÃO DE DEUS

Antonio Carlos Egypto

 

 



A MÃO DE DEUS (È Stata la Mano di Dio), Itália, 2021.  Direção e roteiro: Paolo Sorrentino.  Elenco: Filippo Scotti, Toni Servillo, Teresa Saponangelo, Luisa Ranieri, Marion Joubert.  130 min.

 

“A Mão de Deus” não é um filme religioso, nem nome de música de padre cantor.  A expressão remete, na verdade, ao famoso gol de mão de Maradona, da seleção argentina, na Copa do Mundo de 1986.   Mas também não é um filme sobre futebol, embora se alimente dele, nem mesmo sobre o grande craque mundial que foi Maradona, embora ele seja um personagem importante da narrativa.

 

Então vamos lá. “A Mão de Deus” é um painel da vida de um adolescente em Nápoles, nos anos 1980.  Seu convívio com a família, mostrada de forma caricata, na maior parte do tempo, incluindo pais amorosos, mas uma mãe que vive pregando peças nos outros, um irmão mais velho mulherengo, uma tia jovem e bonita, que toma sol nua diante de todos, e um exército de figuras obesas, sobretudo as mulheres, da família e da vizinhança.  Sem falar na nonna, desbocada, que só atua na base do palavrão.  São tipos inspirados em Fellini, que é citado e lembrado ao longo do filme, assim como outros diretores italianos, como Franco Zeffirelli.

 

Por sinal, o destino do adolescente Fabietto (Filippo Scotti) é ser diretor de cinema.  Bingo!  É uma autobiografia de Paolo Sorrentino, o realizador do filme.  Bem, pelo menos, inspirado na história pessoal do cineasta com certeza o filme é.

 

As questões que movem o adolescente estão lá, mostradas em várias sequências que exploram expressivamente o ambiente e o período de vida de Fabietto, seus interesses e preocupações.  Entre eles, o despertar da sexualidade, o amor e perdas irreparáveis que vão dar um tom também de tragédia ao filme.

 



A característica marcante de “A Mão de Deus” é, porém, a leveza, o humor.  A homenagem a Maradona é absolutamente natural, se considerarmos um adolescente vivendo em plena época em que o jogador foi contratado pelo time de futebol do Nápoles e alcançou tamanho êxito, a ponto de ficar conhecido como “o Rei de Nápoles”.  Era a glória, para preencher a vida de um jovem naquele momento.  Mas, como tudo, isso também passa e, no advento da maioridade, a festa do campeonato do time napolitano já não exerce o mesmo apelo de antes.

 

Quanto ao elenco, temos, no papel do pai de Fabietto, Savério, o grande ator Toni Servillo, colaborador habitual do diretor.  Teresa Saponangelo faz a divertida mãe Maria, a bela Luisa Ranieri explora sua sensualidade no papel da desejada tia Patrícia e Marion Joubert faz Marchino, o irmão mais velho e companheiro.  Filippo Scotti, o protagonista adolescente, onipresente na trama, segura muito bem o filme em sua juventude.  E todo o elenco adicional complementa tudo muito bem e acrescentando mais alguns tipos característicos à história.

 

O filme é bonito visualmente, tem um tom poético, mostra relacionamentos pessoais com muito afeto e bem à italiana.  Ou seja, com muita efusividade, gritaria e dramaticidade.  E, naturalmente, envolvidos pela comida. Presta uma homenagem àquele cinema italiano que encantou gerações, com seus mestres.  Paolo Sorrentino é um desses nomes importantes do cinema italiano na atualidade.  “A Grande Beleza”, de 2013, é um de seus trabalhos mais conhecidos.  “A Mão de Deus” levou o Leão de Prata no Festival de Veneza e está indicado à disputa do Oscar de filme internacional pela Itália.  É uma produção da Netflix, está em exibição nos cinemas, mas estará disponível por lá, para os que assinam o serviço de streaming.

 

 

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

A CRÔNICA FRANCESA

Antonio Carlos Egypto

 

 


 

A CRÔNICA FRANCESA (The French Dispatch).  Estados Unidos, Reino Unido, 2021.  Direção e roteiro: Wes Anderson.  Elenco estelar, listado ao final do texto.  108 min.

 

Wes Anderson é um cineasta a quem não falta criatividade.  Começando pelo aspecto visual, a principal razão de ser de um filme.  Ele se utiliza dos mais diversos recursos para compor um universo de imagens único.  Cenografia, ambientação e fotografia produzem um resultado altamente belo e sedutor, que inclui filmes a cores, em preto e branco, animação e efeitos diversos.  Tudo cabe nessa construção fílmica, marcadamente autoral.  O universo visual de Wes Anderson é único e inconfundível.

 

Sua criatividade vai além, histórias surreais, exóticas, extravagantes e improváveis recheiam essa embalagem de sonho.  O que traz leveza, humor, homenagens e brincadeiras, compondo um mosaico que representa uma realidade contemporânea, ou antiga, que dialoga com a contemporaneidade.

 

Como se não bastasse, ele reúne elencos do mais alto escalão, em interpretações inusitadas, surpreendentes, em que, com frequência, os atores submergem nos personagens, a ponto de nem serem claramente identificados, ao menos, num primeiro momento.

 

No caso de “A Crônica Francesa”, a principal curiosidade está na homenagem ao jornalismo e seus diversos campos de atuação em textos de ficção, publicados por uma imaginária revista norte-americana, The French Dispatch Magazine, numa cidade hipotética francesa do século XX.  Tudo começa com a morte do amado editor da publicação e seu desejo de que a revista feche com o seu passamento.  Do obituário parte-se para uma série de histórias que envolvem diários de viagem, reportagem sobre um pintor, sua musa fardada e nua, sua loucura e seus negociantes, de desmedida ambição.  Passa pela discussão da confecção de um manifesto político decorrente de uma revolta estudantil, em que a colocação das palavras ocupa espaço central na situação.  E, é claro, não poderiam faltar a polícia e a questão das drogas, um rapto e jantares gastronômicos, fechando assim os vários setores da abordagem jornalística.




A valorização da palavra escrita, da criação, do texto, mostra que daí algo importante vem, transformando as coisas e o mundo.  Recado fundamental associado ao significado que o jornalismo tem para a vida das pessoas e da sociedade.

 

Num mundo de internet, fake news, perseguição e risco aos jornalistas em tantas partes do mundo, a abordagem poderia ter ido mais fundo no tema, se ligasse o século XX, de algum modo, aos dias atuais.  Não importa, essa seria uma possibilidade a ser explorada, não foi essa a proposta do filme.  No entanto, o que “A Crônica Francesa” nos traz em termos de cinema e visões de realidade é muito bom.

 

Dizer o que de um elenco que tem Benício del Toro, Frances Mc Dormand, Adrien Brody, Tilda Swinton, Bill Murray, Jeffrey Wright, Léa Sedoux, Thimothée Chamelet, Edward Norton, Willem Dafoe, Mathieu Amalric, Christoph Waltz, Saoirse Ronan, Owen Wilson, Anjelica Houston e outros, juntos, num mesmo filme?  É uma seleção de talentos tão extravagante quanto a narrativa que os envolve.