quinta-feira, 28 de setembro de 2023

4 FILMES

      Antonio Carlos Egypto

 

 

Nesta semana, de hoje a 04 de outubro, todos os cinemas estão rebaixando os valores dos ingressos a $12,00 (exceto 3D e sessões especiais).  Boa oportunidade para ver alguns bons filmes em cartaz.  Eu começo por sugerir dois filmes que vi na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do ano passado, que entraram agora.

 


Um é o filme italiano AS OITO MONTANHAS (Le otto montagne), de 2022, dirigido por um casal de belgas, Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch, um trabalho tocante sobre amizade entre dois homens distintos que têm em comum a vivência, eventual para um, constante para o outro, da vida nas montanhas.  Os atores principais são Alessandro Borghi e Luca Marineli.  147 min.

 


O outro é TERRA DE DEUS (Vanskabte land), produção da Islândia e Dinamarca, dirigido por Hlynur Pálmson, em 2022, com Elliott Crosset Hove, Victoria Carmen Sonne, Ingran Eggert Sigurdsson, no elenco.  A história que nos conta a viagem de um padre dinamarquês, no século XIX, a uma remota região da Islândia e que é engolido pela paisagem inóspita e pela relação com o mundo das pessoas, perdendo-se em sua missão, é extraordinariamente bela, visualmente.  Pelas locações espetaculares e pela belíssima fotografia que nos remetem a um mundo distante e estranho. Gelado, naturalmente.  143 min.

 


NOSTALGIA, outro filme italiano de 2022, dirigido por Mario Martone, com Pierfrancesco Favino, Francesco Di Leva, Tommaso Ragno, Aurora Quattrocchi, Sofia Essaidi, nos leva à retomada de um passado marcante, embora prematuro, que estava negado, “esquecido”, por quarenta anos.  O personagem Felice construiu sua vida pelo mundo, casou-se, venceu financeiramente, vive no Cairo, mas, em função de ver sua mãe no fim da vida, volta a Nápoles e encontra a cidade muito mudada, com sua região entregue ao banditismo.  Ocorre que seu grande amigo de infância, que ele quer rever e com ele resolver questões pendentes, é ninguém menos do que o bandido-mór da localidade. Um padre tentará ajudá-lo, ele poderá prestar uma assistência final a sua mãe já velhinha (uma cena tocante é o banho que ele dá nela), mas a trama se adensará nos lembrando que não se volta ao que se foi, nada será igual, nem o lugar, nem as pessoas, nem nós mesmos.  A nostalgia é uma ilusão, como veremos aqui, bem perigosa.  117 min.

 


E, por último, destacar o trabalho documental do diretor brasileiro, de ancestrais argelinos, Karim Aïnouz, de filmes como “A Vida Invisível”, de 2019, “Praia do Futuro”, de 2014, “Madame Satã”, de 2002.  Em MARINHEIRO DAS MONTANHAS ele nos leva à sua viagem solitária a Argel e a Cabília, localidade natal de seu pai argelino.  Conversa imaginariamente com sua mãe, morta recentemente, tentando entender o amor que ela viveu com o pai, que sumiu.  Ele nunca aparece em cena, nem o pai, que está vivo, mas não foi com ele.  Acompanhamos a sua jornada pela Argélia que ele está conhecendo, na paisagem, nas pessoas, nas vestes, na comida, no contexto social empobrecido e também autoritário.  Esse road movie  solitário nos traz a “intimidade” da Argélia, além da epopeia pessoal/familiar do diretor cearense que encontrou até um homônimo em Cabília.  E pensar que por aqui ele sempre tem de soletrar seu nome.  O filme é de 2021 e tem 80 minutos.




quarta-feira, 27 de setembro de 2023

PÉROLA

                Antonio Carlos Egypto

 



PÉROLA.  Brasil, 2022.  Direção: Murilo Benício.  Elenco: Drica de Moraes, Leonardo Fernandes, Rodolfo Vaz, Cláudia Missura.  90 min.

 

“Pérola” é a história de uma mãe, daquelas muito especiais, pelo estilo de se comportar, pela dedicação à casa e à família, mas também pelas excentricidades e pelo apelo ao álcool, à bebida, como combustível diário da eletricidade dessa figura.  Seria preciso uma grande atriz para dar conta desse papel.  O filme “Pérola” conta com Drica de Moraes brilhante, luminosa.  Só ela já vale o filme.

 

O personagem central da história, ou melhor, o que conduz a trama e nos mostra quem é Pérola é, na verdade, seu filho Mauro, papel de Leonardo Fernandes, excelente, também.

 

Mauro, o filho, é o escritor e dramaturgo Mauro Rasi (1949-2003), que se colocou na peça teatral que escreveu com muita honestidade, com uma riqueza de detalhes de sua vida familiar (e também profissional, artística) e conquistou o público no teatro.  “Pérola” foi um sucesso teatral enorme e é o que impulsionou sua adaptação ao cinema.

 

Era um risco, até porque o texto contava com a reação direta do público numa série de situações curiosas, engraçadas, provocantes, e que pressupunham identificação da plateia com aquela realidade, bastante familiar, do interior de São Paulo, da Bauru de origem de Mauro Rasi e de acolhida ao seu retorno.  Ou não.  Ou, talvez, quem sabe.

 




A adaptação deu certo, flui bem, creio que vai provocar envolvimento do público, semelhante ao que se deu no teatro, e do qual fui testemunha na época.  Mérito de Murilo Benício, o diretor, que a maioria das pessoas conhece como ator, mas que já mostrou seu talento de cineasta em “O Beijo no Asfalto”, de 2018, em que fez uma versão em construção do texto de Nelson Rodrigues muito eficiente e criativa.  Atuou também como roteirista nesse filme e em “Pérola”.

 

A Pérola da peça teatral foi Vera Holtz, num papel marcante e inesquecível, mas Drica de Moraes faz jus ao mesmo papel no cinema.  Não vou comparar Rodolfo Vaz com Sérgio Mamberti, que chegou a fazer o pai de Mauro no teatro.  Dizer apenas que a atuação de Rodolfo, como o marido que não só admira como faz escada para a mulher, ou seja, oferece a ela todas as condições de brilhar e de se destacar, incluindo os drinques especiais que cria, é muito bom e cativante também.

 

O filme tem tudo para funcionar bem para um público amplo, é diversão de qualidade e bem inteligente.  Resta saber se chegará ao número de pessoas que poderiam apreciá-lo.  Aí vai depender do lançamento, do marketing, essas coisas.  Torço pelo sucesso do filme, reeditando o do teatro.  Antes de mais nada, porque o texto de Mauro Rasi faz por merecer, mais uma vez.





quarta-feira, 20 de setembro de 2023

ELIS & TOM

                

Antonio Carlos Egypto

 

 



ELIS & TOM, SÓ TINHA DE SER COM VOCÊ, documentário brasileiro de 2022, dirigido por Roberto de Oliveira e Jom Tob Azulay, com roteiro de Nelson Motta,    encanta qualquer um que tenha sensibilidade musical.  Vai em busca de resgatar uma experiência de 1974, já tem quase 50 anos, quando Elis Regina, ao completar 10 anos de carreira artística, muitíssimo bem-sucedida, ganha de presente de sua gravadora o projeto de realizar um disco histórico ao lado de Antônio Carlos Jobim, reconhecidamente compositor maior da nossa música.  Além de maestro, arranjador e instrumentista exímio. 

 

Figuras emblemáticas que tinham de se entender para produzir juntas o que, hoje sabemos, seria um dos mais importantes discos de toda a história da música popular brasileira.  Como o filme conta, não foi fácil.  César Camargo Mariano, pianista e arranjador no disco, relata sua epopeia naquele estúdio MGM de Los Angeles, Califórnia, onde o disco foi realizado.

 

Inicialmente, César foi rejeitado por Tom, que esperava dar o rumo ao trabalho e se surpreendeu com a vinda dele e dos músicos que atuariam no disco.  Afinal, era a obra de Tom que estava em jogo e ele não se via como mero convidado no LP de Elis.  O clima ficou difícil, César tratou de lidar com essa rejeição, Elis chegou a pensar em desistir e fez as malas para voltar, Roberto de Oliveira conseguiu evitar que isso acontecesse. O talento de todos e a paixão musical acabaram por uni-los, o clima foi mudando e o trabalho andou.  Com entusiasmo, paixão, muito empenho e até relaxamento e brincadeiras.  A faixa “Águas de Março”, com Tom e Elis se divertindo, é a maior comprovação disso.

 

O clima de liberdade muito diferente daquele que existia no Brasil, com a ditadura militar, também ajudou.  Músicos brilhantes, que participaram do disco, também contam bastidores da produção, enquanto o filme nos lembra quem eram e o que faziam Elis e Tom, separados e reunidos nesse trabalho.  Tarefa difícil essa de sintetizar as carreiras de Elis Regina e de Tom Jobim em poucos minutos, para quem não os conheça direito, talvez porque muito jovem.  A opção por destacar a carreira internacional de cada um resolveu, em parte, a questão.

 


O destaque para a relação, os encontros entre os dois, cantando juntos outras músicas, como “Na batucada da vida”, de Ary Barroso, e “Céu e Mar”, de Johnny Alf, nos mostram uma afinidade musical que vai muito além das simpatias ou antipatias pessoais, ou dos ciúmes e da competição entre eles e com César Camargo Mariano, brilhante arranjador como o Tom, que era grande amor de Elis na época.

 

A proposta de um trabalho conjunto desses dois monstros sagrados da música brasileira, que parecia impossível de se viabilizar, aconteceu.  E o filme “Elis & Tom” é o registro dessa maravilha musical em vídeo.  Por que levou tanto tempo para ser apresentado nos cinemas?  Difícil saber, mas a espera valeu, porque o trabalho de restauração da imagem e do som está perfeito.

 

Música da melhor qualidade possível e imaginável toma conta da tela e dos nossos ouvidos de forma arrebatadora.  Sei que estou me valendo de adjetivos até pomposos para falar desse documentário.  Mas, podem crer, o filme vale tudo isso.  Ganhou o prêmio da Crítica na 46ª. Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, não foi à toa.  É um trabalho realmente espetacular.   100 min.

 


sexta-feira, 15 de setembro de 2023

ESTRANHA FORMA DE VIDA

Antonio Carlos Egypto

 

 



ESTRANHA FORMA DE VIDA (Strange Way of Life).  Espanha, 2022.  Direção e roteiro: Pedro Almodóvar.  Elenco: Pedro Pascal, Ethan Hawke, Manu Rios, José Condessa. 31 min.

  

Pedro Almodóvar está com filme novo nos cinemas.  E, como sempre, rompendo paradigmas.  Para começar, porque o filme que ele está lançando é muito curto, dura meia hora, tempo insuficiente para compor uma sessão de cinema.  Sendo ele quem é, no entanto, está lá nas telonas, complementado por uma longa entrevista que deu a uma jornalista, falando sobre o filme, dissecando seu processo de criação e comentando muita coisa mais sobre a sua obra em geral e não apenas “Estranha Forma de Vida”.

 

O filme é falado em inglês, assim como seu trabalho anterior, “A Voz Humana”, com Tilda Swinton, também um curta.  Aqui protagonizam o ator norte-americano Ethan Hawke e Pedro Pascal, chileno de origem, mas com carreira em Hollywood.  Dirigir em inglês significa um desafio a mais para o diretor espanhol, talvez por isso a opção pelo curta-metragem.  O cineasta experimenta, testa seu sistema de trabalho em outro idioma, com atores habituados ao padrão hollywoodiano de realização.  O resultado é ótimo, sem problemas.

 


Nesse filme, Almodóvar encara o gênero western, algo incomum na sua filmografia, embora ele sempre tenha valorizado alguns faroestes clássicos e incluído cenas em seus filmes.  O universo do gênero lhe interessa, desde que possa sair dos clichês habituais, que envolvem preconceitos e uma noção de masculinidade, digamos, restrita a um padrão estereotipado.  Para ele, os cowboys têm de olhar para seus desejos e a atração física que pode surgir entre dois homens.  Constrói, assim, um faroeste gay.  Procura também fugir do óbvio, transmitindo pelos diálogos e pela sutileza de atos o clima erótico necessário ao tema.  Foi o que ele fez em “Estranha Forma de Vida”.

 

A inovação da homossexualidade na cena do western já havia sido encarada por Ang Lee, em “O Segredo de Brokeback Mountain”, que chegou a ser cogitado para ser dirigido por Almodóvar.  O filme de Lee resultou muito bom.  Assim como “Ataque dos Cães”, de Jane Campion, outro excelente trabalho.  O que não impediu Almodóvar de incluir seu toque pessoal nesse curta que explora o erotismo pelas bordas e constrói uma boa história, que poderia perfeitamente ser explorada num longa.  Se a inspiração foram os westerns norte-americanos e os cenários os dos faroestes spaghetti de Sérgio Leone e outros, a marca literária e visual almodovariana cumpre seu papel muito bem, sem deixar margem a dúvidas.

 

E o que dizer da escolha de um fado, de Alfredo Duarte e Amália Rodrigues, cantado em português por Caetano Veloso em falsete, como presença musical relevante no filme?  Mais do que isso, que deu nome a ele? Quem poderia esperar tal contribuição artística a uma obra como essa?   Uma incrível quebra de paradigma, embora totalmente integrada à proposta do filme e de seus personagens.  Coisas do gênio espanhol do cinema contemporâneo.




terça-feira, 12 de setembro de 2023

RETRATOS FANTASMAS

Antonio Carlos Egypto

 


 

RETRATOS FANTASMAS.  Brasil, 2023.  Direção: Kleber Mendonça Filho.  Documentário.  95 min.

 

“Retratos Fantasmas” se apresenta como um documentário em primeira pessoa.  É isso, sem dúvida.  Mas também é bem mais do que isso.

 

O cineasta Kleber Mendonça Filho revisita seu passado no centro de Recife, a partir da casa em que viveu com a família, fruto de uma concepção da mãe e que foi reformada diversas vezes, surgindo com uma nova cara e novas divisões para atender a novas demandas e mudanças da família, da cidade e do mundo.  O convívio com a casa, com suas imagens, lembranças e registros históricos já nos remete às mudanças urbanas vividas pela cidade  de Recife.  Mas ele avança para sua paixão e  métier  e vai em busca das salas de cinema do centro da cidade que marcaram sua vida.  Por meio delas, escreve uma trajetória de amor ao cinema, enquanto registramos com pesar o que se perdeu nesse tempo, histórico e humano, que remete ao século XX.

 

Desse modo, o filme trabalha dimensões de reflexão que dizem respeito ao indivíduo, à memória, à experiência vivida, mas contemplam a cidade, como referência ao coletivo que nos molda, tanto quanto o fazem as ligações afetivas primárias.  Uma coisa não existe sem a outra, parece nos dizer Kleber.  Tudo se imbrica.  Nossos gostos e expressões pessoais refletem os costumes do tempo, mesmo que a vida pessoal possa ser muito criativa e transformadora.  Revolucionária, às vezes.  Mas somos criaturas do nosso tempo e nossos sonhos e realizações dialogam com ele, o tempo.

 

No desenvolvimento da narrativa de “Retratos Fantasmas”, como o nome já indica, também aparecem fantasmas, fantasias, aparições, crenças, que se imiscuem e dialogam com a chamada realidade, aquilo que faz parte da nossa vida de todos os dias.  Kleber incorpora isso à sua história e memória, o que relativiza a própria ideia de documentário, porque esse já é o terreno da ficção, embora para alguns essa ficção seja percebida como tão verdadeira que não se distingue da vida cotidiana.

 


“Retratos Fantasmas” é um filme muito bem construído e rico na evocação de estímulos que, de um modo ou de outro, servem de provocações a todos.  Afinal, cada um tem o seu Recife, o seu contexto, e é aí que vai se mover. 

 

A cidade de Recife é protagonista do filme na medida em que é o lugar de acolhida, o porto seguro, o mote da mudança, da paixão e do sonho.  O filme tem diferentes camadas de expressão, à medida em que remove aparências, registra a transformação, pede uma compreensão mais profunda daquilo que nos cerca, daquilo que está mais perto de nós, e acaba por nos remeter a questões sociais, políticas e econômicas, que são inevitáveis e indispensáveis.

 

Assim, o documentário pessoal se reveste de uma dimensão maior e muito mais interessante, que não nega a complexidade e abrangência da vida, de todos e de cada indivíduo.