sexta-feira, 18 de julho de 2025

FILHOS DO MANGUE

                       

 Antonio Carlos Egypto

 



FILHOS DO MANGUE.  Brasil, 2024.  Direção: Eliane Caffé.  Elenco: Felipe Camargo, Genilda Maria, Titina Medeiros, Maria Alice da Silva, Roney Villela.  110 min.

 

Na primeira cena do filme “Filhos do Mangue”, vemos um homem deitado na areia de uma praia deserta, já num horário tardio, aparentemente em má situação, e vemos um cavalo e um cavaleiro passeando ali, ignorando o acontecimento.  Rejeitando qualquer interesse ou ajuda à figura humana desamparada, ou supostamente desamparada.  Esta sequência já define o confronto homem e comunidade que se contará a seguir.

 

Um acidente pode produzir uma situação extrema de amnésia total, em que a pessoa não se lembra de nada do que viveu ao longo da vida. Mal sabe quem é ou o próprio nome.  Acrescente-se a isso uma série de acusações gravíssimas que lhe são imputadas por toda uma comunidade. 

 

O sujeito é descrito como dono de um belo barco, com recursos.  Mas, opressor, além de bater na esposa, está envolvido com tráfico de mulheres, prostituição forçada delas e, ainda, roubo de uma significativa quantia de dinheiro da população local.  Sem memória, como se defender disso ou resgatar essa dívida tão ampla? 

 


A relação desse personagem, Pedro Chão (Felipe Camargo) com a mulher, a filha e toda a comunidade local é o fio central da narrativa de “Filhos do Mangue”, dirigido por Eliane Caffé, com base no livro Capitão, de Sérgio Prado, lançado em 2011.  A ação se passa em Barra do Cunhaú, Rio Grande do Norte, conhecida como o Caribe do Nordeste.  Isso se evidencia na filmagem, que nos mostra uma beleza cênica, única, e o encontro do rio com o mar.  A fotografia acentua e valoriza a beleza do lugar e movimentos de câmera convidam à contemplação e ao deleite.  Isso combinado com um som magnificamente construído, que destaca tudo o que acontece na natureza e com as pessoas: movimento das águas, chuva, vento, pássaros e outros animais, caminhadas, gritos e discussões, mas também sussurros e palavras quase inaudíveis, indicando a distância e a imprecisão da percepção.  Um trabalho primoroso.

 

O roteiro da diretora e de Luís Alberto de Abreu privilegia a discussão do poder na vida comunitária numa vila de pescadores e, especialmente, a questão feminina, a opressão que se abate contra as mulheres, o uso, o abuso, a desvalorização e a violência que atingem o gênero feminino.  Por outro lado, mostra os caminhos da união entre elas, para se empoderarem e resistirem, a sororidade como necessidade e cooperação mútua.  E, ainda, a separação dos homens que as violentam, a busca de uma vida mais livre e respeitosa, quando necessário.  Não há que se suportar calada uma situação que não se sustenta e que não traz sinais de prazer e felicidade.  Enfim, os personagens são representativos do ambiente social de uma pequena comunidade, mas as questões que aparecem têm uma dimensão maior do que essa, a de um caráter universal.

 

A cineasta Eliane Caffé já nos deu filmes importantes, como “Os Narradores de Jafé”, 2003, e “Era o Hotel Cambridge”, 2016.  Conseguiu reunir um elenco competente para contar essa história, com destaque para o protagonista Felipe Camargo, que dá conta muito bem do seu complicado papel.  E alcança um alto nível estético, com esse filme.




domingo, 13 de julho de 2025

2 FILMES

                      

Antonio Carlos Egypto


   


         

YÖG ÃTAK: MEU PAI KAIOWÁ.  Brasil, 2024.  Direção: Sueli Maxakali, Isael Maxakali, Roberto Romero e Luísa Lanna.  Documentário.  94 min.

 

“Meu Pai Kaiowá” não é apenas um filme sobre indígenas, mas também feito por eles próprios.  A direção do filme, que é um documentário, é dos indígenas Sueli Maxakali e Isael Maxakali, com a colaboração do antropólogo Roberto Romero e da montadora e professora Luísa Lanna.  A história recuperada agora remete aos tempos da ditadura militar, que promovia deslocamentos indígenas à força, separando-os de suas bases originais e de suas famílias.  Isso foi feito por agentes do então chamado (imaginem!) Serviço de Proteção aos Índios.  No caso, a cineasta Sueli e sua irmã Maíza saíram em busca de reencontrar o pai, Luiz Kaiowá, separado delas há 40 anos.  O reencontro é difícil, porque ele já havia deletado a própria família, envergonhado e raivoso pelo que lhe sucedeu.  Recluso e resistente, ele acaba conversando sobre a sua história cheia de medo e dor.  Sua vida durante a ditadura militar partiu da região que hoje é Mato Grosso do Sul, passou por São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e fixou-se por 15 anos no Posto Indígena de Minas Gerais, onde casou-se e teve as duas filhas.  Em seguida, houve novo deslocamento forçado à sua terra de origem, sem a família.  Esse tipo de ação da ditadura é pouco conhecido e divulgado.  É apenas mais uma das atitudes desumanas, maldosas, que vigoraram naquele período autoritário que durou 21 anos e deixa estragos até o dia de hoje.  Quanto ao filme, é corajoso na denúncia, tem o ritmo de vida dos indígenas, soluções cinematográficas algo estranhas, mas merece ser conhecido, antes de mais nada, por sua autenticidade.

 




F1 (F1, The Movie).  Estados Unidos, 2025.  Direção: Joseph Kosinski.  Elenco: Brad Pitt, Javier Bardem, Damson Idris. 156 min.

 

Não é preciso gostar de automobilismo ou de Fórmula 1 para curtir o espetáculo das corridas no cinema.  Não só das corridas, mas das relações que se estabelecem nesse ambiente onde a grana dá o tom.  As disputas fora das pistas, a tentativa de colaborar como equipe num contexto que é eminentemente competitivo, o que se dá quando um veterano volta e um jovem talento já vai conquistando seu espaço.  Tudo isso num esporte que mobiliza equipamentos caros, complicados e sujeitos às perdas decorrentes de acidentes que, claro, fazem parte integrante desse esporte.  Para quem gosta de ação, é um prato cheio.  Para quem quer aprender um pouco sobre as regras da Fórmula 1, também.  Os atores que protagonizam o espetáculo merecem cumprimentos pelo belo desempenho.  A começar por Brad Pitt, que exerce um chamariz comercial para o filme por sua história como ator e seu charme. Ele está ótimo como o veterano que volta a correr na Fórmula 1, depois de um bom tempo.  Damson Idris, o novato, está muito bem no papel.  E o contratante dos pilotos, com seus problemas financeiros e expectativas, é ninguém menos do que o excelente ator espanhol Javier Bardem.  Por outro lado, o filme apresenta velhos clichês, como o daquele que já se sente quase aposentado que é impelido à volta às pistas e ao confronto com o novato que não domina tão bem seus limites.  Por ser jovem, arrisca-se demais.  Experiência versus juventude.  A previsibilidade do desfecho também é um elemento que incomoda, embora haja alguma inovação aí.  Mas o filme resiste por seu caráter de espetáculo, muito bem realizado.

 

quarta-feira, 9 de julho de 2025

JOVENS AMANTES

Antonio Carlos Egypto

 


 

JOVENS AMANTES (Les Amandiers).  França, 2025.  Direção: Valeria Bruni Tedeschi.  Elenco: Nadia Tereszkiewicz, Sofianne Bennacer, Clara Bretheau, Vasili Schneider, Louis Garrel. 126 min.

 

 

Valeria Bruni Tedeschi, atriz, roteirista e diretora italiana, nascida em Turim, desenvolveu sua já longa carreira no cinema na França. Sua formação incluiu a famosa escola de teatro Les Amandiers (que dá nome ao filme), dirigida por Patrice Chéreau (1944-2013), papel de Louis Garrel no filme, e Pierre Romans (1951-1990), vivido por Micha Lescot, na cidade de Nanterre. 

 

Com base nessa experiência pessoal, intensa e exuberante, da escola de teatro dos anos 1980, ela realizou esse “Jovens Amantes”, um filme igualmente intenso e exuberante sobre a juventude que amava teatro naquele período.

 

Uma trupe de 12 atores e atrizes, aprovados dentre os muitos pretendentes, 40 pré-selecionados, vive uma paixão desmedida pela arte de representar.  Estimulados e cobrados para dar tudo de si, sem amarras e explorando a liberdade de criar, eles vivem, pensam, discutem, respiram teatro por todos os poros. Preparavam uma peça teatral escrita pelo jovem Tchekhov aos 17 anos: Platonov.

 

Ao mesmo tempo, vivem seus amores, as experiências sexuais, as drogas, vistas como vivências transformadoras, em meio à contaminação pela Aids, cujas principais vias de infecção eram os contatos sexuais e as seringas compartilhadas no uso de drogas injetáveis.  A gravidez, complicada nessa etapa da juventude – os 20 anos – as brigas, separações, conflitos.  O aborto também está presente, menos como polêmica do que como fato consumado.  E, naturalmente, a diversidade sexual.  Tudo está lá, mostrado como um painel da juventude do período.

 


O filme é muito feliz ao apresentar esse painel tão representativo de uma juventude daquele momento histórico com clareza, sem julgamentos morais, com muito vigor e ritmo.

 

Conta com um elenco que, como os atores e atrizes retratados, deu tudo de si, com muito empenho e grande vitalidade.  Destaque para Nadia Tereszkiewicz, no papel de Stella, que é uma protagonista dentro do grupo de jovens, embora o filme trate o grupo mais coletivamente, passando pelos diversos personagens em suas diferentes características e situações, mas deixando muito claro o contexto em que viviam.  É justamente isso o que dá a “Jovens Amantes” um sentido mais amplo e abrangente.




quinta-feira, 3 de julho de 2025

PELOS CINEMAS

    Antonio Carlos Egypto

 

Estão em cartaz nos cinemas filmes que já comentei quando da Mostra 48, além de “O Esquema Fenício”, que já vi há algum tempo, mas não tinha escrito nada sobre ele. 


 


LEVADOS PELAS MARÉS (Feng Liu Yi Dai), China, 2024, é o novo trabalho do grande diretor chinês, de Fenyang, Jia Zhang Ke.  A cinematografia desse diretor tem sido a de mostrar o lado B da China, essa potência atual do mundo, que cresce e se desenvolve econômica e tecnologicamente.  Ocorre que as mudanças que vão se concretizando a todo vapor têm um caráter autoritário, com consequências para a população mais pobre e desprotegida do país.  O povo tem de tolerar os efeitos de políticas públicas que demolem verdadeiras cidades, a constituição de uma represa gigantesca que desloca a população e tantas outras questões que aparecem documentalmente em seus filmes, como a pandemia e as máscaras onipresentes. Aliás, neste, ele reaproveita muitas cenas de seus outros filmes, ao colocar seus personagens viajando, em busca de se reencontrar, por várias partes da China.  Alguém precisa se lembrar de se preocupar com o povo quando manobras expansionistas não respeitam seus direitos e seus interesses.  O cinema de Jia Zhang Ke tem essa sensibilidade.  111 min.

 



APOCALIPSE NOS TRÓPICOS, documentário de Petra Costa, faz a pergunta: quando uma democracia termina e uma teocracia começa?  O filme perpassa todos os fatos recentes da política brasileira, do impeachment de Dilma Rousseff às tentativas de golpe de Estado, que culminaram na violência de 08 de janeiro de 2023.  Mas o faz seguindo o fio condutor das lideranças evangélicas, destacando o pastor Silas Malafaia e os fundamentalistas que sustentaram a experiência política negacionista do governo Bolsonaro, tentando entender seu modo peculiar de interpretar os fatos e seus fundamentos religiosos apocalípticos.  110 min.

 



O ESQUEMA FENÍCIO
(The Phoenician Scheme), filme de Wes Anderson, um diretor de quem costumo apreciar os trabalhos, é criativo nas sequências, provocadoras e esteticamente bem trabalhadas.  No entanto, é um amontoado de cenas desconexas, bonitas mas soltas, sem organicidade nenhuma.  Exagerou na dose e o filme ficou sem sentido.  O sujeito que sobreviveu a seis desastres aéreos não impressiona ninguém. Esperemos pelo próximo, que seja mais centrado, menos fragmentado.  Porque não é talento que lhe falta. Aliás, o elenco cheio de estrelas, como Benicio Del Toro, Scarlet Johansson, Bill Murray, Tom Hanks, Willem Dafoe, também não conseguiu salvar o filme.  101 min.

 

  

terça-feira, 1 de julho de 2025

HOT MILK

Antonio Carlos Egypto

 


HOT MILK (Hot Milk), Reino Unido, 2025.  Direção: Rebecca Lenkiewicz.  Elenco: Emma MacKey, Fiona Shaw, Vicky Krieps, Vincent Perez.  92 min.

 

Algumas pessoas produzem inconscientemente identidades que só se sustentam na dor e na doença.  A enfermidade é a condição da existência.  É uma característica psicossomática da doença, que pode produzir até sintomas físicos restritivos, paralisantes, sem que alguma condição orgânica pudesse justificá-los.

 

A personagem Rose (Fiona Shaw, em brilhante desempenho) apresenta esse tipo de atuação, uma estranha doença com direito a manipulação.  Uma forma de existir, mas também de controlar o comportamento e a vida da filha Sofia (Emma MacKey, também em ótimo desempenho).

 

Rose poderia andar, mas está presa a uma cadeira de rodas, dependendo em quase tudo de Sofia, que pauta toda sua existência para estar a serviço da mãe.  Permite-se apenas estudar, dedica-se a Antropologia.

 

Ambas partem para uma viagem a Almería, na costa espanhola, em busca do doutor Gomez (Vincent Perez), de quem se esperaria a cura dos problemas de Rose.  Ele é uma espécie de médico, psicólogo, curandeiro.  Isso não fica claro.  Mas sua ação remete a alguma forma de psicoterapia analítica.  Só que algo inteiramente fora do chamado set da análise.

 

Ele vai remexendo nos conteúdos emocionais da vida de Rose, mas no convívio normal, com a presença de outras pessoas, com sua própria filha, que é sua assistente, e com Sofia.  Ele vai eliminando os remédios que Rose usava e investigando caminhos do passado, traumas, situações reprimidas.  E conversando sobre a vida e o relacionamento de Rose e de Sofia, tentando ajudá-las a se reconhecerem e ressignificarem seu convívio, além de inquirir sobre os caminhos da individualidade de cada uma. O fato é que isso começa a mexer na ferida e a incomodar Rose, que se apega a sua condição de doente como defesa.  Um confronto se dará por aí.

 


Enquanto isso, na costa espanhola, Sofia se encanta com uma mulher misteriosa que chega a cavalo na praia em sua busca.  Um relacionamento se estabelece e isso estimula Sofia a tentar libertar-se do jugo materno, olhar para suas próprias necessidades e desejos.

 

A soma desses fatores produz uma narrativa que vai alterar as circunstâncias de vida das protagonistas da história, incrementar o conflito, o drama, a fantasia, e gerar impasses.

 

A proposta do filme dirigido por Rebecca Lenkiewicz, baseada em romance de Deborah Levy, é boa, instigante.  Mas não consegue explorar a fundo a questão que coloca.  De qualquer modo, propõe um tema para ser mostrado e debatido.  Levanta dúvidas, perguntas, questionamentos.  Tem sensibilidade para tratar da expressão emocional, contando com duas atrizes notáveis, que valorizam suas personagens, conferindo-lhes uma dimensão humana e tocante.

 

Por que o filme se chama “Hot Milk”? O leite quente pode ser entendido como uma espécie de cuidado, conforto, que é tudo o que Rose espera de sua filha Sofia que, por isso, se autolimita.  Será essa a ideia?  Fica aí a especulação.