Antonio Carlos Egypto
CINE MARROCOS. Brasil, 2018.
Direção e roteiro: Ricardo Calil.
Documentário. 78 min
Documentários buscam apresentar,
retratar, uma realidade. Ao fazer isso,
na verdade, já está havendo uma interferência nessa realidade. O que filmar, como filmar, como selecionar e
difundir o que é relevante, são escolhas do cineasta. Estão, obviamente, interligadas à sua visão
de mundo e do próprio cinema.
Também é possível intervir de forma
planejada e direta na realidade que se escolheu retratar. É o caso do trabalho de Ricardo Calil em
“Cine Marrocos”, documentário vencedor do festival É TUDO VERDADE 2019.
O cine Marrocos, um luxuoso cinema do
centro de São Paulo, ornamentado por ícones e elementos artísticos marroquinos,
foi inaugurado em 1951. Em 1954, sediou
o primeiro festival de cinema internacional no Brasil, que trouxe filmes hoje
considerados grandes clássicos em sua seleção.
Entre eles, “Crepúsculo dos Deuses”, de Billy Wilder, “A Grande Ilusão”,
de Jean Renoir, “Pão, Amor e Fantasia”, de Luigi Comencini, “Noites de Circo”,
de Ingmar Bergman, e “Júlio César”, de Joseph Mankiewicz.
Só que o cinema, com toda a sua pompa,
foi abandonado pelo antigo dono que, deixando de pagar os impostos, o perdeu
para a prefeitura. O abandono prosseguiu
por vinte anos, também sob a responsabilidade do poder municipal. Acabou por ser ocupado por um pequeno grupo
do pessoal do Movimento Social dos Trabalhadores sem Teto. Dos 25 membros
iniciais, chegou-se a mais de 2000 moradores no local.
O documentário “Cine Marrocos” mostra
o que é e como funciona a ocupação, para além dos preconceitos habituais, inclusive
contrastando o que dizem e fazem os moradores com as notícias dos telejornais,
indo até a inevitável desocupação do prédio do cinema, realizada pela
polícia. Mas interveio na realidade do
grupo, ao recuperar e projetar os filmes clássicos citados e ao convidar os
interessados a realizarem um curso de teatro, visando a recriar algumas cenas
famosas desses clássicos cinematográficos.
Mostra um pouco do resultado obtido,
com imagens em preto e branco, como os filmes originais, do desempenho, do
talento e da dedicação dos atores e atrizes sem teto, nos espaços do velho
cinema. Deu um sentido de recuperação
artística ao prédio abandonado do Marrocos, para além da questão da moradia, do
desemprego e da crise econômica.
Retratou os brasileiros sem teto, ao lado dos
imigrantes latino-americanos e dos refugiados africanos que lá viviam, em sua
humanidade, buscando oferecer a essas pessoas condição de exercerem seu
potencial criativo, dramático, cômico ou musical. Ao mesmo tempo em que mostrou a importância
da arte, da cultura e da educação na vida das pessoas marginalizadas,
abandonadas à própria sorte, como o que sucedeu com o outrora ostentatório cine
Marrocos, símbolo das mudanças na estrutura urbana, mas também do descaso do
setor público com a cultura.