sábado, 29 de maio de 2021

CINE MARROCOS

Antonio Carlos Egypto

 

 



CINE MARROCOS.  Brasil, 2018.  Direção e roteiro: Ricardo Calil.  Documentário.  78 min

 

Documentários buscam apresentar, retratar, uma realidade.  Ao fazer isso, na verdade, já está havendo uma interferência nessa realidade.  O que filmar, como filmar, como selecionar e difundir o que é relevante, são escolhas do cineasta.  Estão, obviamente, interligadas à sua visão de mundo e do próprio cinema.

 

Também é possível intervir de forma planejada e direta na realidade que se escolheu retratar.  É o caso do trabalho de Ricardo Calil em “Cine Marrocos”, documentário vencedor do festival É TUDO VERDADE 2019.

 

O cine Marrocos, um luxuoso cinema do centro de São Paulo, ornamentado por ícones e elementos artísticos marroquinos, foi inaugurado em 1951.  Em 1954, sediou o primeiro festival de cinema internacional no Brasil, que trouxe filmes hoje considerados grandes clássicos em sua seleção.  Entre eles, “Crepúsculo dos Deuses”, de Billy Wilder, “A Grande Ilusão”, de Jean Renoir, “Pão, Amor e Fantasia”, de Luigi Comencini, “Noites de Circo”, de Ingmar Bergman, e “Júlio César”, de Joseph Mankiewicz. 



 

Só que o cinema, com toda a sua pompa, foi abandonado pelo antigo dono que, deixando de pagar os impostos, o perdeu para a prefeitura.  O abandono prosseguiu por vinte anos, também sob a responsabilidade do poder municipal.  Acabou por ser ocupado por um pequeno grupo do pessoal do Movimento Social dos Trabalhadores sem Teto. Dos 25 membros iniciais, chegou-se a mais de 2000 moradores no local.

 

O documentário “Cine Marrocos” mostra o que é e como funciona a ocupação, para além dos preconceitos habituais, inclusive contrastando o que dizem e fazem os moradores com as notícias dos telejornais, indo até a inevitável desocupação do prédio do cinema, realizada pela polícia.  Mas interveio na realidade do grupo, ao recuperar e projetar os filmes clássicos citados e ao convidar os interessados a realizarem um curso de teatro, visando a recriar algumas cenas famosas desses clássicos cinematográficos.


Mostra um pouco do resultado obtido, com imagens em preto e branco, como os filmes originais, do desempenho, do talento e da dedicação dos atores e atrizes sem teto, nos espaços do velho cinema.  Deu um sentido de recuperação artística ao prédio abandonado do Marrocos, para além da questão da moradia, do desemprego e da crise econômica.

 

 Retratou os brasileiros sem teto, ao lado dos imigrantes latino-americanos e dos refugiados africanos que lá viviam, em sua humanidade, buscando oferecer a essas pessoas condição de exercerem seu potencial criativo, dramático, cômico ou musical.  Ao mesmo tempo em que mostrou a importância da arte, da cultura e da educação na vida das pessoas marginalizadas, abandonadas à própria sorte, como o que sucedeu com o outrora ostentatório cine Marrocos, símbolo das mudanças na estrutura urbana, mas também do descaso do setor público com a cultura.



sábado, 15 de maio de 2021

MEU PAI

Antonio Carlos Egypto

 

 



MEU PAI (The Father).  Reino Unido/Estados Unidos, 2020.  Direção: Florian Zeller.  Com Anthony Hopkins, Olivia Colman, Mark Gatiss, Imogen Poots.  97 min.

 

O principal interesse para assistir a “Meu Pai”, que deu o Oscar 2021 de melhor ator a Anthony Hopkins, é precisamente o desempenho desse grande ator do cinema, o mais velho a receber a estatueta nessa categoria.

 

Ele faz seu xará, Anthony, que aos 81 anos vê suas certezas rolarem ladeira abaixo.  As memórias escapam, se confundem no tempo, os espaços também se misturam.  Ele já não sabe quem é, onde está, o que está acontecendo e por quê.  Embaralha as coisas e tenta reagir como pode ao que imagina que seja a verdade, com a sua própria identidade posta em xeque.  Não é só “quem está comigo aqui”, mas “quem sou eu, afinal”?

 

Pois é, o mal de Alzheimer é terrível.  As demais demências e escleroses decorrentes do envelhecimento não ficam atrás.  Perder-se em si mesmo, perder sua identidade e história, é algo inimaginável para quem não viveu tal coisa.  É um grande desafio para um ator conseguir passar para o espectador essa vivência.  Ela está mais dentro do que fora, na representação.  Anthony Hopkins tira de letra.  Seus movimentos, expressões, perplexidades, medos e reações intensas são perfeitos.  Não deixam dúvidas, falam por si, quase sem precisar de palavras.

 



Quanto à narrativa, que envolve o roteiro, edição e montagem do filme, tudo se faz para que os espectadores possam viver e sentir como supostamente vivem e sentem os pacientes representados no personagem de Hopkins.

 

Acompanhamos o filme com grande aflição, porque nunca sabemos o que de fato está acontecendo, se esta pessoa é ou não quem ele vê e pensa que é.  Nem onde se passa a cena ou quando, se foi antes ou depois.  E o que vem em seguida de quê.  Como “Meu Pai” assume o ponto de vista de Anthony, o personagem, nós sabemos o que ele sabe, ou pensa que sabe.  Sentimos o que ele sente, seja verdadeiro ou razoável isso ou não.  É um sufoco.

 

O mundo mental substitui o mundo real, a imaginação assume o lugar dos fatos, mas sem se afastar do naturalismo.  São personagens de carne e osso, bem reais, os vividos pelo pai e por sua filha Anne, em ótimo desempenho de Olivia Colman.  Não se trata de fantasia descolada da realidade, mas de confusão mental, algo totalmente palpável.  Por isso mesmo, o filme nos aflige.  E eu diria que aflige especialmente os idosos.  Porque o que vive Anthony é tudo que qualquer pessoa idosa não quer que aconteça com ela.



  

segunda-feira, 10 de maio de 2021

DRUK

Antonio Carlos Egypto

 

 


DRUK – MAIS UMA RODADA (Druk).  Dinamarca, 2020.  Direção: Thomas Vinterberg. Com: Mads Mikkelsen, Thomas Bo Larsen, Maria Bonnevie, Magnus Milang, Lars Ranthe.  117 min.

 

 

Todos nós temos experiência com a bebida alcoólica, de um modo ou de outro.  De forma frequente, eventual, compulsiva ou como abstêmios, por curtos ou longos períodos da vida, ou mesmo pela vida toda.  É sabido que o álcool é uma droga perigosa, geralmente lícita, que pode levar a uma dependência altamente destrutiva, demolidora, para a vida do indivíduo e daqueles que com ele convivem.  Sabemos também das possíveis consequências do uso do álcool quando combinado com a direção de veículos, com a utilização de máquinas e equipamentos e com a disciplina do trabalho.

 

Conhecemos, no entanto, igualmente, os seus benefícios, quando consumido de forma moderada e equilibrada ou em momentos que levam a uma maior descontração ou informalidade, reduzindo um nível alto de ansiedade, além de seu papel considerado indispensável em datas festivas, comemorações, eventos.

 

Como acontece com as drogas psicoativas, depende da finalidade, do tipo de uso, da dosagem, do ritual e do contexto social/legal envolvidos.  A mesma substância que pode curar pode matar.

 

Pois bem, o filme “Druk”, do talentoso diretor dinamarquês Thomas Vinterberg, aborda o tema da bebida alcoólica, levando essas coisas em conta, mas utilizando uma história curiosamente inovadora, que dá margem ao drama e à comédia.  Por incrível que possa parecer, sempre com leveza. Num estilo cativante de filmar, bem humorado, feérico, com estranheza e seriedade. Tudo junto e misturado.  Acrescente-se a isso belos planos, sequências com muito ritmo, enquadramentos magníficos e um elenco de primeiríssima, capitaneado pelo grande ator Mads Mikkelsen que, quem acompanha o cinema nórdico, certamente conhece de vários filmes de destaque.

 


“Druk” venceu o Oscar 2021 de melhor filme internacional, um prêmio merecidíssimo.  Thomas Vinterberg demonstra nesse filme o amadurecimento e a sofisticação de um trabalho sempre marcado pela qualidade e pela capacidade de gerar uma reflexão aberta e crítica, que contempla as várias visões de um tema.

 

É notável que, quando abordou o abuso sexual, ele nos deu “Festa de Família”, de 1998, mostrando o estrago que isso produz na família, enquanto que, em “A Caça”, de 2012, o mesmo tema é mostrado pelo lado do julgamento apressado e injusto, do linchamento moral que acaba com a vida de alguém inocente.

 

Em “Druk”, quatro professores, que lidam com crianças e adolescentes, sentindo-se um tanto desanimados e desestimulados com a vida diária, resolvem fazer um experimento com o uso de bebidas alcoólicas diariamente, para dar um up grade no seu cotidiano.  Partiram de um estudo nórdico que afirmava que todos temos um déficit de álcool no sangue, que, desde que reposto diariamente, tornaria a existência mais produtiva, mais prazerosa e mais divertida.  Mas isso para uso no horário normal, de trabalho, durante o dia, não à noite e nem nos fins-de-semana.  Experimentar, observar e medir os benefícios e, a partir daí, testar novas e maiores dosagens, foi o que eles se propuseram a fazer.  O problema é até que ponto é possível manter o controle e os riscos que se quer correr. Disso trata a história, muito bem contada, de “Druk”, na vida dos quatro personagens principais, seus trabalhos, amores e relacionamentos.  E da amizade que se desenvolve entre eles. O filme não está interessado em pregar nada, não moraliza, não apoia ou condena.  Mostra o processo.  E a gente se diverte.  Muito.