quinta-feira, 30 de maio de 2024

A FILHA DO PALHAÇO

                                 

 Antonio Carlos Egypto

 


A FILHA DO PALHAÇO.  Brasil, 2022.  Direção: Pedro Diógenes.  Elenco: Lis Sutter, Demick Lopes, Jesuíta Barbosa, Jupyra Carvalho, Ana Luiza Rios.  104 min.

 

A questão da paternidade num contexto familiar complexo coloca-se para a jovem Joana (Lis Sutter) aos 15 anos. E, como é natural, ela vai em busca de respostas para um relacionamento que praticamente não aconteceu ou restringia-se a momentos de Natal ou aniversário, quando muito.  Por que o pai a teria abandonado, deixando à mãe toda a responsabilidade pela educação e convívio com ela?  Por que ela sente a rejeição da mãe a ele e percebe o distanciamento que existe ali?

 

Só há uma maneira de enfrentar o desconhecido e é encará-lo, ainda que doa ou seja sofrido.  A oportunidade se coloca e ela conviverá com o pai Renato por uma semana inteira.  Um mundo a descobrir diante de tanta distância e ausência.

 

Renato (Demick Lopes), o pai, trabalha como ator transformista em bares, restaurantes e outros locais, fazendo humor e provocações aos frequentadores, com base numa personagem que construiu, Silvanelly, para ganhar a vida.  Mas seu momento não é de glória, mas de decadência. Numa cena do filme, um diálogo é bem esclarecedor.  Renato conta para Joana que o pai dele (avô dela) não tinha o filho que queria ter.  Ao que ela responde, mas às vezes também não temos o pai que queremos ter.

 

Escancarado o sentimento de rejeição de Renato, fica mais fácil a aproximação do espectador com o seu personagem.  E, vendo o esforço que ele e ela fazem para estar juntos, entendemos que é de relações e afeto que trata o filme.  Levantando questões que dizem respeito à diversidade, evidentemente, às transformações pelo que as pessoas passam, às mudanças que acontecem e com uma característica primordial: a busca pela aceitação, pelo afeto que faz falta.  A farta trilha musical do filme, repleta de canções, enfatiza bem isso.

 

Numa primeira leitura, pode-se ver uma família destroçada, que não existe ou que fica restrita a mãe e filha.  Mas por que não poderia ser uma família como qualquer outra, que possa encontrar caminhos de unir-se e conviver, quem sabe corrigir, perdoar ou relevar erros do passado, em busca de uma reconstrução?  Afinal, existem os mais diversos tipos de famílias na realidade social e concreta da vida.  Elas não seguem regras ou fórmulas, por mais que continuemos insistindo nisso.  Não existe a família, existem famílias no plural, de todos os tipos e modelos, com pais separados, cuidada só pela mãe ou só pelo pai (embora muito menos frequente), família com dois lares dividindo os filhos pelos dias da semana, famílias homoafetivas, de gays, lésbicas e de todas as variações não-binárias, que hoje não mais se escondem, tendem a se revelar.  Tudo é bem mais complexo do que parece, ou pareceu, num passado não muito distante.  Tem gente que nunca saiu dele, mas esses ficarão para trás, serão superados pelas evidências.

 

Jesuita Barbosa e Pedro Diógenes no Cinesesc

Nesse filme de relações e afetos, o papel desempenhado por Demick Lopes é central.  Seu desafio é viver dois personagens distintos, o tempo todo.  Simbolicamente, o palhaço e seu drama nos bastidores.  Travestido de mulher de forma exagerada, esse contraste se estabelece estridentemente.  O palco e a queda em um segundo.

 

O curioso é que quem aparece com cara de palhaço é o personagem Marlon, de Jesuíta Barbosa, muito à vontade no papel, que faz o elo de ligação entre as duas vidas, digamos assim, de Renato/Silvanelly e sua história, agora com a filha ali, mas com o desejo lá, também.

 

Da estreante Lis Sutter, no papel de Joana, percebe-se o trabalho realizado pelo diretor Pedro Diógenes e pela equipe do filme.  Ela segurou muito bem o seu papel de protagonista.

 

É importante apontar ainda que o filme foi realizado durante uma pequena trégua da pandemia.  Não há ninguém usando máscara, no filme, mas o clima dos contatos é tenso, cuidadoso, às vezes travado, indicando claramente que o momento também faz, fez, no caso, o filme.

 

Bem, e por fim, mas não menos importante é salientar que “A Filha do Palhaço” é um filme cearense até a medula.  Não só porque seja filmado em Fortaleza com equipe cearense, mas porque se vale da cultura cearense, com seu humor característico e onipresente por lá, inspirado e homenageando um ator recém-falecido, Paulo Diógenes, primo do diretor, e sua famosa personagem Raimundinha, que todo mundo sabe quem é, no Ceará.  E nós, que não sabemos, podemos apreciar muito bem toda essa simpática e honesta trama que o filme nos oferece.  Questionando, problematizando, abrindo caminhos.





sexta-feira, 24 de maio de 2024

DOIS FILMES BRASILEIROS

                             

 Antonio Carlos Egypto

 

 


Helena Ignez, uma das mais importantes mulheres do cinema brasileiro, com 60 anos de carreira, aos 85 anos de idade, lança seu filme colagem ALEGRIA É A PROVA DOS NOVE, Brasil, 2023, título emprestado da obra de Oswald de Andrade (1890-1954), fonte inspiradora do seu trabalho, assim como o poeta Arthur Rimbaud (1854-1891).  Por que filme colagem?  Porque ela lançou um sem-número de questões, discussões, imagens, que mesmo que remetam a lembranças, experiências de todo o tipo, procuram falar à contemporaneidade.  Com toda a intensidade.  Dá destaque à sexualidade feminina e à liberdade da mulher, por meio da personagem Jaida (Helena Ignez), artista, sexóloga e roqueira, que dá cursos e promove o orgasmo como fonte de autoconhecimento.  Num clima sempre libertário, aborda a contracultura, o desbunde, a carnavalização, com preocupações com a fome, a desigualdade, a diversidade e os direitos humanos.  Ney Matogrosso, no papel de Lírio, é um defensor desses direitos humanos e uma figura de reflexão, afeto e amizade, que confere ao filme uma dimensão muito positiva e propositiva.  O filme aborda também a questão palestina, identidade e representação num Estado, por meio de um personagem que, professando o islamismo, evita qualquer contato com mulheres fora ou antes do casamento.  É difícil explorar tantos temas, tantas preocupações, emoções e memória, ainda mais tendo de inseri-las no contexto da pandemia, que abateu a todos.  De qualquer forma, o filme deixa uma espécie de legado de toda uma geração com uma história de vida com generosidade, em busca do prazer e da felicidade para todos.   100 min.

 


“Que história é esta que meu avô não contou para meu pai, que não contou pra mim, que não aprendi na escola, nem nos livros”, canta o rapper no início de REVOLTA DOS BÚZIOS, documentário dirigido e roteirizado por Antonio Olavo.  Ele está falando de uma revolta ocorrida em 1798, na Bahia, também chamada de Revolução dos Alfaiates, Conjuração Baiana, Sedição ou Inconfidência.  Mas que, na verdade, é quase desconhecida, ficou escondida na história.  Assim como a Inconfidência Mineira, de Tiradentes, ocorrida alguns anos antes, a inspiração era francesa, com as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade, que impunham o fim da escravidão e o desejo de uma República.  Organizada pelo povo negro, acabou contando com a ajuda de membros da elite branca, que acabaram sendo poupados, enquanto os heróis negros daquele levante: Luiz Gonzaga, Manoel Faustino, Lucas Dantas e João de Deus tiveram destino semelhante ao de Tiradentes, com todas as crueldades daquele período.  O filme mostra o empenho da luta, no dia-a-dia, mas o resultado foi pífio, já que houve delações que acabaram inviabilizando as ações.  No entanto, houve uma devassa que durou quinze meses.  A repressão foi fortíssima e desproporcional a tudo o que aconteceu.  É importante resgatar episódios como esse da história brasileira, para mostrar a resistência e a luta do povo negro frente à escravidão e os anseios por liberdade e uma vida digna para todos, que as elites trataram de impedir por todos os meios.  A produção é da Bahia, de 2018, com duração de 73 min.



terça-feira, 21 de maio de 2024

CONTO DE FADAS

                           

 Antonio Carlos Egypto

 


CONTO DE FADAS (Shazka).  Rússia, 2022. Direção e roteiro: Alexandr Sokurov.  Elenco: Alexander Sagabashi, Wakhtang Kuchava, Fabio Mastrangelo, Lothar Deeg.  80 min.

 

O cinema joga com o tempo, o espaço, a realidade, o sonho, a imaginação, a fantasia. Grandes criações partiram de explorações inusitadas de um ou mais desses aspectos.  O êxito da produção depende, essencialmente, da forma, da criatividade com que esses elementos são trabalhados.  Em princípio, tudo é possível e é muito interessante quebrar regras, expectativas, tirar o espectador da sua zona de conforto.

 

Estou falando tudo isso para entrar no novo filme de Alexandr Sokurov, um diretor autoral russo para lá de inovador e criativo, capaz de gerar uma estética cheia de beleza e que dialoga com o tema tratado pelo filme à perfeição.  É o caso da louca proposta de “Conto de Fadas”, um sonho, ou melhor, um pesadelo.  Um lindo pesadelo.

 

Supostamente as almas dos que morrem, ou parte delas, não vão direto para o paraíso nem para o inferno.  Ficam num limbo chamado purgatório, à espera de uma decisão final de Deus, sobre o seu paradeiro.  Não sei se nos dias de hoje o Papa Francisco ainda fala em purgatório ou valida sua existência.  Enfim, seja como for, no filme de Sokurov, lá está o purgatório e rodeado de figuras históricas, vagando a esmo.  Ninguém menos do que Adolf Hitler, Benito Mussolini, Joseph Stalin e Winston Churchill.

 


Surpreendentemente, também está por lá Cristo, deitado, amargando ainda as dores da crucificação, à espera do chamado do Pai.  Também aparece por lá Napoleão Bonaparte.  E muitos outros, soldados, o povo destroçado pelas guerras que esses senhores produziram ou que se fazem ainda em nome deles ou de suas ideias disruptivas. 

 

Eles convivem entre si, envergando suas roupas que remetem aos impérios e à militarização dos conflitos.  Observam-se, comentam as vestimentas, coisas pessoais, têm tiradas irônicas ou sarcásticas, uns em relação aos outros, pensam sobre a vida que levam agora e a que levaram antes.  Tudo de modo amistoso e sem pressa.  Afinal, tempo ali não vale mais nada.

 

Sokurov, muito ligado aos fatos históricos e aos personagens do poder que os encarnam, coloca-os num mundo de fantasia que, como eu disse antes, é um verdadeiro pesadelo.  Poderia ser insuportável se não fosse bonito, fotografado em preto e branco, mas contendo cores em algumas poucas cenas, projetado em tela quadrada, em enquadramentos maravilhosos.  E altamente expressivos.  Remetem ao momento de expectativa e frustração que se vive no purgatório, à espera de uma porta que parece não querer se abrir para ninguém, ao menos por muito tempo ainda. 

 


Acompanhamos essa aventura post mortem de personagens tão conhecidos quanto polêmicos (alguns claramente odiados).  Se podemos embarcar na fantasia absoluta de uma Mary Poppins, de um Batman ou de um Homem Aranha, por que não podemos embarcar nessa fantasia histórico-realista?  É original e artisticamente relevante.

 

Para quem não está se lembrando, Alexandr Sokurov é o diretor do brilhante “Fausto” (2011), do inovador “Arca Russa” (2002), filmado de uma só vez no Museu Hermitage para contar a história russa, e também de “Francofonia – Louvre Sob Ocupação” (2015), que mostra o museu como elemento vivo da civilização humana e do que a arte nos ensina sobre a história e o poder.


Em “Conto de Fadas”  Sokurov montou uma estrutura narrativa que envolve atores vivendo os personagens, que se multiplicam, e imagens originais dos citados, manipuladas para existir e interagir com os elementos oníricos do filme, com clareza cristalina.  Mas também em meio a brumas e distorções de imagens, sempre que é necessário enfatizar algo.  O início do filme informa que foram utilizadas imagens de arquivo, mas não recursos de inteligência artificial para essa criação.

 

 

 

quarta-feira, 15 de maio de 2024

UM DIA NOSSOS SEGREDOS SERÃO REVELADOS

                              

 Antonio Carlos Egypto

 




UM DIA NOSSOS SEGREDOS SERÃO REVELADOS (Ingendwann werden wir uns alles erzeblen).  Alemanha, 2023.  Direção: Emily Atef.  Elenco: Marlene Burow, Felix Kramer, Cedric Eich.  130 min.

 

Adaptação cinematográfica do romance da escritora alemã Daniela Krien, corroteirista do filme da cineasta germânica Emily Atef, “Um Dia Nossos Segredos Serão Revelados”, se situa no ano de 1990, último verão antes da reunificação da Alemanha, logo após a queda do muro de Berlim.  O ambiente onde se dá a ação faz parte da região rural da Alemanha, então, Oriental.  Esse, no entanto, é somente o pano de fundo de uma história que se centra na paixão desmedida da jovem Maria (Marlene Burow), de 19 anos, por um cidadão muito mais velho, Henner (Felix Kramer), de 40 anos, um homem que vive isolado em uma casa antiga e rústica, desconsiderado pela comunidade.

 

Maria vive numa fazenda (coletiva?) com a família de seu jovem namorado Johannes (Cedric Eich).  Ele nutre evidente paixão por ela, enquanto busca sua realização pessoal e profissional por meio da fotografia.  A agora assegurada liberdade de ir e vir entre as até então duas Alemanhas permite que ele adquira uma ótima máquina fotográfica, comprada no Ocidente.  E essa máquina terá um papel importante na história de amor, lembrando “Blow Up”, de Michelangelo Antonioni.

 

Maria é uma bela e atraente mulher jovem, desejada pelos dois homens, mas que não decide o seu rumo, ou o faz pelo impulso do momento.  O filme enfatiza fortemente a nudez, o erotismo e as cenas de sexo com Henner, que vão da agressividade e violência à ternura e ao desamparo.  Ela aceita e reforça o sentimento por ele, mantendo-se aparentemente controlada, sem expressar o turbilhão que viveria internamente.  A interpretação de Marlene Burow é sutil, mostra em pequenas expressões a satisfação ou o tormento que a invadem.

 




A própria literatura se insinua na trama pelos livros que Maria lê e cita, como Os Irmãos Karamazov, de Dostoiévski, e essa citação está no filme: “Algum dia todos nós ressuscitaremos, nos reencontraremos e nos contaremos tudo um ao outro”.  Recados poéticos são trocados entre os amantes sempre em busca do reencontro, improvável, complicado, mas sempre possível.  Essa literatura se revela muito mais importante do que a educação formal.  Maria lê muito, mas falta às aulas, não se interessa pela escola. 

 

Quando falta decisão, ou ela se dá tardiamente, o destino ou o acaso resolverão a questão, inevitavelmente.

 

O filme de Emily Atef, centrado no desejo feminino e explorando a sexualidade carnal desse desejo, coloca em segundo plano a masculinidade, seja ela tóxica, brutal, ou afetiva e respeitadora.  É a mulher que comanda o jogo, mesmo que, por vezes, pareça não se dar conta disso.

 

FIQUE ATENTO

Também está em cartaz o recém-lançado documentário brasileiro “Veríssimo”, dirigido por Angelo Defanti.  90 min.  Luís Fernando Veríssimo é acompanhado no período que marca a comemoração dos 80 anos de idade daquele que é um dos mais brilhantes cronistas do nosso tempo.  Mas que também é discreto, pacato e de poucas palavras.

 

A sessão Vitrine Petrobras, a preços reduzidos, está exibindo o clássico brasileiro restaurado “A Hora da Estrela”, de 1985, dirigido por Suzana Amaral, com base na obra de Clarice Lispector, que destacou Marcela Cartaxo no papel de Macabéa.  É uma ótima oportunidade de ver esse belo filme na telona.




quinta-feira, 9 de maio de 2024

EM CARTAZ NO CINEMA

                                

 Antonio Carlos Egypto

 



RIVAIS (Challengers).  Itália, Estados Unidos, 2024.  Direção: Luca Guadagnino.  Elenco: Zendaya, Mike Faist, Josh O’Connor.  131 min.

 

“Rivais” tem personagens que vivem no mundo do tênis, relacionam-se com o mundo do tênis, conversam sobre o tênis, que invade suas vidas amorosas, expectativas e, em última análise, determina a existência.  São três protagonistas: Tashi (Zendaya) e seus dois pretendentes, Patrick Sweig (Josh O’Connor) e Art Donaldson (Mike Faist).  Forma-se um triângulo em que todos se relacionam com todos e onde estão envolvidos amor e ódio, competição, disputa pelo poder e capacidade de manipulação de cada um sobre os outros.  Um embate representado pela disputa do tênis entre os dois rapazes, que dura anos, ensejará ao vencedor a conquista da mulher amada.  Flash backs sobre o que acontece ao longo dos anos em que os três se conhecem, desde a adolescência, e os dois homens, desde a infância, vão entrando na narrativa. As informações sobre o tempo, que são inseridas, mais atrapalham do que ajudam o que seria a compreensão linear das relações, que vão se alterando significativamente.  Não é uma partida de tênis, como se pode ver na TV, mas excertos que destacam esforços dos corpos, nos saques, nos impulsos, no suor, ao bater as bolinhas, no quebrar de raquetes.  E os sons correspondentes se impõem fortemente em cada sequência.  A música intensa e ritmada entra para marcar o nível de expectativa, do suspense, do que pode ou está para acontecer. O filme tem muita tensão e muito ritmo e vai construindo sua trama até desembocar num final moderno e surpreendente, que resolve a questão da competição e do desejo.  O roteiro vai dando elementos ao longo da trama do que se revelará ao final, mas o suspense continua fortemente no ar.  O diretor italiano Luca Guadagnino já nos deu pelo menos dois belos filmes: “Um Sonho de Amor”, em 2010, e “Me Chame Pelo Seu Nome”, em 2017.  Esses dois filmes têm críticas publicadas aqui no cinema com recheio, quando de seus lançamentos no cinema. 

 



LA CHIMERA. Itália, 2023.  Direção: Alice Rohrwacher.  Elenco: Josh O’Connor, Carol Duarte, Vincenzo Nemolato, Isabella Rosselini.  130 min.

 

O que são as quimeras?  Aquelas eternas buscas daquilo que nunca se consegue encontrar ou realizar.  Com base nisso é que a diretora Alice Rohrwacher armou uma narrativa curiosa, misteriosa e inteligente, cheia de elementos tão belos quanto provocativos.  As quimeras podem ser expectativas de encontrar objetos arqueológicos maravilhosos, cheios de significado religioso no passado, encontrando-os por mecanismos primitivos, como os que indicam onde pode haver água.  E se aí estiverem enterrados esses tesouros?  Se, indo atrás de quem efetivamente tem poder de encontrar essas coisas, pode vir dinheiro fácil e a riqueza, outra quimera.  Ou, ainda, esperando os que cavam e encontram tesouros para roubar-lhes e auferir grande lucro com turistas.  Mas a quimera também pode ser a busca da mulher perdida ou da pessoa que já se foi e não volta mais.  Ou que nem viva está.  Enfim, cada um tem sua quimera e vai seguir em sua busca, essa parece ser a sina de todos.  Um filme que nos leva por veredas estranhas, desconhecidas, mas estimulantes.  Em que não é preciso nem necessário entender tudo o que se passa ou o que pode significar.  Cinema é mistério, fantasia, beleza, provocação, reflexão e revelação.  “La Chimera” oferece tudo isso.  Destaques para a brasileira Carol Duarte e para o ator inglês Josh O’Connor, de “Rivais”, que é também protagonista de “La Chimera”.  Carreira em alta, em bom cinema.  Nada mal. 

 



HERE.  Bélgica, 2023. Direção: Bas Devos.  Elenco: Stefan Gota. Liyo Gong, Teodor Corban. 83 min.

“Here” é um filme belo, que explora os detalhes da natureza, em ritmo lento, de fruição, de contemplação.  É aí que ele chega, mas não é daí que ele parte.  Stefan, um imigrante romeno, trabalha em Bruxelas com construção civil e convive no complexo urbano, com seus ritmos e problemas.  Quando sai de férias, esvazia a geladeira, aproveita os produtos e faz sopa, para presentear as pessoas próximas e procura a natureza para relaxar.  Não só descobre a placidez da natureza, como mergulha no que ela tem de menor, mas atraente, ao conhecer uma jovem oriental que ele encontrará novamente, ao acaso, debruçada, observando musgos.  Descobre, então, que ela é brióloga, ou seja, estudiosa das briófitas, assunto de sua tese de doutorado.  A busca de beleza e de vida nas pequenas coisas parece ser o que o filme belga de Bas Devos quer nos mostrar.  Descobertas minúsculas podem ensejar importantes novidades.  Esse é o fio de um filme para apreciar sem pressa, enquanto o tempo passa, e, quem sabe, nos abre outras possibilidades que não estamos enxergando porque não nos debruçamos sobre elas.  Se você gosta de apreciar belas imagens, sobretudo da natureza, e se deleita com enquadramentos sofisticados, como quem vai apreciar um quadro, esse filme é para você.  Se essa não é bem a sua praia, por que não experimentar?  Nunca se sabe.



 

quarta-feira, 1 de maio de 2024

CINEMA NACIONAL EM CARTAZ

                         

 Antonio Carlos Egypto

 



A PAIXÃO SEGUNDO G. H. Brasil, 2020.  Direção: Luiz Fernando de Carvalho.  Elenco: Maria Fernanda Cândido e Samira Nancassa.  127 min.

 

Com base na obra de Clarice Lispector, “A Paixão Segundo G. H.”, Luiz Fernando de Carvalho tenta filmar (e parcialmente consegue) a vida interior, os pensamentos e o que vem à mente de uma mulher adulta, escultora que vive em Copacabana, quando ela resolve vasculhar o ambiente de sua casa.  Ela perdeu a empregada e começa por inspecionar o quarto da prestadora de serviço, quando se depara com uma barata enorme, que a horroriza. Suas reflexões existenciais, a partir daí, abrangem um pouco de tudo, do ser mulher, dos privilégios da classe social abastada a que pertence, dos anseios, dos desejos, das fantasias, especulações sobre a vida, dúvidas.  O problema é que esses pensamentos ora são fugidios, ora anulam o que veio antes, não são nunca conclusivos, são etéreos, enfim. Alguns efeitos visuais, tornando indefinida ou nebulosa a imagem, dialogam perfeitamente com o que vive a personagem.  Em que pese a boa presença de Maria Fernanda Cândido em cena o tempo todo, o filme inevitavelmente cansa.  Exige uma atenção concentrada imensa e, embora seja composto de frases e falas inteligentes e provocantes, é um exercício penoso assisti-lo.

 



SEM CORAÇÃO.  Brasil, 2023.  Direção: Nara Normande e Tião.  Elenco: Eduarda Samara, Maya De Vicq, Maeve Jenkings, Alaylson Emanuel, Kaique Brito.  93 min.

 

“Sem Coração”, produção de Alagoas, passa-se no litoral desse Estado, no verão de 1996. Numa pequena vila pesqueira, o filme acompanha as ações e preocupações de um grupo de adolescentes, em que destacam Tamara (Maya De Vicq), que vai partir para estudar em Brasília, e seu relacionamento com a discriminada Sem Coração (Eduarda Samara), assim chamada por ter uma cicatriz no peito e pela forma como lida com os meninos, aceitando contatos sexuais sem nenhum afeto.  É um filme simples, que tem alguns achados sugestivos e interessantes, como a baleia encalhada na praia, e que tem sensibilidade para mostrar uma das muitas adolescências reais que existem, para além da categoria geral adolescência.

 



TRANSE.  Brasil, 2022.  Direção: Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães.  Elenco: Luísa Arraes, Johnny Mascaro, Ravel Andrade.  75 min.

Uma atriz, seu namorado músico e um garoto solto na vida, vão vivendo sua modernidade jovem na base do amor livre e na busca de experiência de liberdade e misticismo, por meio de drogas e outros estímulos, em pleno período das eleições presidenciais de 2018. A jovem Luísa integra as manifestações do “Ele Não”, das mulheres que visavam impedir a eleição de Jair Bolsonaro pelo que ele representava de retrocesso.  Misoginia, machismo, homofobia, racismo, defesa da tortura, imposição da maioria sobre as minorias e tudo o mais que o candidato dizia e é escrito na tela, com a sua voz, para não deixar dúvida.  Perplexos, como boa parte da sociedade, eles se sentem acuados e forçados a agir para impedir o pior.  O filme vai até o final da eleição, em segundo turno, com a constatação de que o pesadelo, afinal, se instalou.  E não só os jovens sofreriam muito com isso, mas toda uma sociedade, como se explicita em uma conversa de Johnny com um senhor idoso experiente.  A ideia é boa e deixa claro o que estava em jogo para todos nós, no varejo da política, pelo menos.  Senti falta de uma melhor caracterização dos personagens, eles soam mais como estereótipos do que como figuras humanas concretas.  Mas que refletem o que se sentia naquele momento político, não há dúvida.