A
FILHA DO PALHAÇO. Brasil, 2022. Direção: Pedro Diógenes. Elenco: Lis Sutter, Demick Lopes, Jesuíta
Barbosa, Jupyra Carvalho, Ana Luiza Rios.
104 min.
A
questão da paternidade num contexto familiar complexo coloca-se para a jovem
Joana (Lis Sutter) aos 15 anos. E, como é natural, ela vai em busca de
respostas para um relacionamento que praticamente não aconteceu ou restringia-se
a momentos de Natal ou aniversário, quando muito. Por que o pai a teria abandonado, deixando à
mãe toda a responsabilidade pela educação e convívio com ela? Por que ela sente a rejeição da mãe a ele e
percebe o distanciamento que existe ali?
Só há
uma maneira de enfrentar o desconhecido e é encará-lo, ainda que doa ou seja
sofrido. A oportunidade se coloca e ela
conviverá com o pai Renato por uma semana inteira. Um mundo a descobrir diante de tanta
distância e ausência.
Renato
(Demick Lopes), o pai, trabalha como ator transformista em bares, restaurantes
e outros locais, fazendo humor e provocações aos frequentadores, com base numa
personagem que construiu, Silvanelly, para ganhar a vida. Mas seu momento não é de glória, mas de
decadência. Numa cena do filme, um diálogo é bem esclarecedor. Renato conta para Joana que o pai dele (avô
dela) não tinha o filho que queria ter.
Ao que ela responde, mas às vezes também não temos o pai que queremos
ter.
Escancarado
o sentimento de rejeição de Renato, fica mais fácil a aproximação do espectador
com o seu personagem. E, vendo o esforço
que ele e ela fazem para estar juntos, entendemos que é de relações e afeto que
trata o filme. Levantando questões que
dizem respeito à diversidade, evidentemente, às transformações pelo que as
pessoas passam, às mudanças que acontecem e com uma característica primordial:
a busca pela aceitação, pelo afeto que faz falta. A farta trilha musical do filme, repleta de
canções, enfatiza bem isso.
Numa
primeira leitura, pode-se ver uma família destroçada, que não existe ou que
fica restrita a mãe e filha. Mas por que
não poderia ser uma família como qualquer outra, que possa encontrar caminhos
de unir-se e conviver, quem sabe corrigir, perdoar ou relevar erros do passado,
em busca de uma reconstrução? Afinal,
existem os mais diversos tipos de famílias na realidade social e concreta da
vida. Elas não seguem regras ou
fórmulas, por mais que continuemos insistindo nisso. Não existe a família, existem famílias no
plural, de todos os tipos e modelos, com pais separados, cuidada só pela mãe ou
só pelo pai (embora muito menos frequente), família com dois lares dividindo os
filhos pelos dias da semana, famílias homoafetivas, de gays, lésbicas e de
todas as variações não-binárias, que hoje não mais se escondem, tendem a se
revelar. Tudo é bem mais complexo do que
parece, ou pareceu, num passado não muito distante. Tem gente que nunca saiu dele, mas esses
ficarão para trás, serão superados pelas evidências.
Jesuita Barbosa e Pedro Diógenes no Cinesesc |
Nesse
filme de relações e afetos, o papel desempenhado por Demick Lopes é
central. Seu desafio é viver dois
personagens distintos, o tempo todo.
Simbolicamente, o palhaço e seu drama nos bastidores. Travestido de mulher de forma exagerada, esse
contraste se estabelece estridentemente.
O palco e a queda em um segundo.
O
curioso é que quem aparece com cara de palhaço é o personagem Marlon, de
Jesuíta Barbosa, muito à vontade no papel, que faz o elo de ligação entre as
duas vidas, digamos assim, de Renato/Silvanelly e sua história, agora com a
filha ali, mas com o desejo lá, também.
Da
estreante Lis Sutter, no papel de Joana, percebe-se o trabalho realizado pelo
diretor Pedro Diógenes e pela equipe do filme.
Ela segurou muito bem o seu papel de protagonista.
É importante
apontar ainda que o filme foi realizado durante uma pequena trégua da
pandemia. Não há ninguém usando máscara,
no filme, mas o clima dos contatos é tenso, cuidadoso, às vezes travado,
indicando claramente que o momento também faz, fez, no caso, o filme.
Bem, e
por fim, mas não menos importante é salientar que “A Filha do Palhaço” é um
filme cearense até a medula. Não só
porque seja filmado em Fortaleza com equipe cearense, mas porque se vale da
cultura cearense, com seu humor característico e onipresente por lá, inspirado
e homenageando um ator recém-falecido, Paulo Diógenes, primo do diretor, e sua
famosa personagem Raimundinha, que todo mundo sabe quem é, no Ceará. E nós, que não sabemos, podemos apreciar
muito bem toda essa simpática e honesta trama que o filme nos oferece. Questionando, problematizando, abrindo
caminhos.