terça-feira, 26 de agosto de 2014

FILHA DISTANTE


Antonio Carlos Egypto



FILHA DISTANTE (Días de Pesca).  Argentina, 2012.  Direção e roteiro: Carlos Sorín.  Com Alejandro Awada, Victoria Almeida e um grupo de não atores.  78 min. 


O diretor argentino Carlos Sorín tem entre seus filmes “Histórias Mínimas”, de 2002.  À parte de ser um belo trabalho, esse título, na realidade, resume a obra do cineasta e sua postura.

“Filha Distante”, a tradução brasileira para “Dias de Pesca”, é também uma história mínima.  Pouca coisa acontece de fato.  O filme é marcado pelos climas que produz, pelos gestos, olhares, hesitações, tempos mortos e uma locação especialmente atraente por sua beleza, mas também por seu vazio e isolamento.  Estou me referindo à região da Patagônia, o lugar para onde Marco (Alejandro Awada) se dirige para tentar uma virada em sua vida.  Na região, vive sua filha Ana (Victoria Almeida), de quem ele se distanciou por muitos anos.  No meio dessa distância, está o alcoolismo, do qual Marco se sente agora reabilitado, após um longo tratamento.



O reencontro com a filha, por certo difícil, aparece como sendo uma motivação a mais na escolha que Marco faz de adotar a pesca como hobby.  O título original remete a essa escolha.  O título brasileiro, à motivação subjacente, na realidade a mais forte e importante.

O filme nos levará à Patagônia por meio das experiências e emoções vividas por Marco.  Pouco se fala, mas muito se mostra dos sentimentos que ele vive.  A interpretação minimalista de Alejandro Awada cai como uma luva nesse fio de história.  A sua interpretação é sutil, refinada, revela tudo nas pequenas coisas que manifesta.  O ambiente, de uma beleza desoladora, pode tanto remeter à tranquilidade e a uma aposentadoria calma e isolada quanto pode ser hostil e fonte de frustrações.  Há espaço para a somatização das emoções e a perda do controle de si mesmo.  Perder-se e reencontrar-se equilibram-se, de um modo um tanto imprevisível e surpreendente.  Cabem interpretações diversas.



Segundo Sorín, os filmes não são feitos na tela, mas na mente do espectador, que com sua sensibilidade e experiência, completa o filme.  Acho que, além disso, cada um vê seletivamente o que as imagens trazem.  É curioso notar que, em filmes como esse, coisas bem diferentes podem ser retidas e interpretadas por cada crítico ou espectador.

É, de fato, uma jornada pessoal o que se experimenta a partir daquele personagem e seu ambiente.  É um cinema para onde se vai aberto, disposto a pensar e sentir, na condição privilegiada de observador da vida.  Mas o que se capta tem mesmo a ver com as características de personalidade, a experiência e a vivência de cada um.  E o observador entra na tela ou se vê invadido por ela.


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

25º. FESTIVAL INTERNACIONAL DE CURTAS METRAGENS DE SÃO PAULO


Antonio Carlos Egypto

Já começou em São Paulo o Festival Internacional de Curtas Metragens organizado pela equipe chefiada por Zita Carvalhosa.  É a vigésima quinta edição de um festival que reúne o que de mais significativo se produz no formato curta, no Brasil, na América Latina e no mundo, na medida em que traz os premiados dos principais festivais de cinema que incluem os curtas.

Neste ano serão exibidos 337 filmes selecionados entre 3400 inscritos, cerca de metade deles são produções brasileiras e estão representados 51 países.  Os filmes são apresentados em blocos de 3 a 6, agrupados por origem: Mostras Internacional, Latino-Americana, Brasil, Panorama Paulista, Cinema em Curso.  Ou em programas especiais temáticos, como 100 Anos de Cortázar, Diversidade Sexual – Assunto de Família, Mostra Infanto-Juvenil e o muito apropriado Quebrando Muros, que celebra os 25 anos não só do próprio festival, como da queda do muro de Berlim.



  As sessões são todas gratuitas, com ingressos distribuídos uma hora antes do seu início.  Os locais que fazem parte do festival são o MIS – Museu da Imagem e do Som, a Cinemateca Brasileira, o Cinesesc, o Espaço Itaú Augusta, o cine Olido, o Centro Cultural São Paulo, o Cinusp e o Circuito Municipal de Cultura, que inclui vários CEUs municipais na programação.

São tantas opções, e tudo ocorre simultaneamente em todos esses espaços, que é difícil indicar o que assistir.  É uma grande variedade e certamente tem muita coisa que vale a pena ver.

Vou destacar alguns que me agradaram, como o colombiano “Leidi”, de Simon Mesa Soto, de 15 minutos, os alemães “Berlim, Berlim”, de Hartmut Jahn, de 4 minutos, uma colagem musical sobre a queda do muro de Berlim, e “Três Pedras para Jean Genet”, de Frieder Schlaich, de 7 minutos.  Há um francês em 3D, bem original, “Diário de uma Geladeira”, de Josephine Robe, de 6  minutos, que trata de trinta anos na vida de uma família, do ponto de vista de uma geladeira.  Espetacular é o brasileiro “Meu Amigo Nietzsche”, de Fauston da Silva, de 15 minutos.  Nele, a leitura reiterada de “Assim Falou Zaratustra”, de Nietzsche, provoca uma hilária e violenta revolução na mente de um garoto, sua família e a sociedade.  Humor muito inteligente, de alta qualidade, em timing perfeito, que produz sonoras gargalhadas na plateia.  Vale a pena garimpar esses curtas e encontrar pérolas como essas.  Deve haver muitas na programação e para todos os gostos.


quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A PEDRA DE PACIÊNCIA

Antonio Carlos Egypto




A PEDRA DE PACIÊNCIA (Syngué Sabour). Afeganistão/França, 2012.  Direção: Atiq Rahimi.  Com Golshifteh Farahani, Hamidreza Javdan, Hassina Burgan, Massi Mrowat.  102 min.


Imagine-se vivendo uma vida cotidiana no Afeganistão.  Como o país está em guerra constante, sua casa será parcialmente destruída, de tempos em tempos, andar na rua será perigoso, pode faltar trabalho, dinheiro, água, víveres.  Se você não é mulher, imagine-se sendo uma e precisando da burca para sair da porta de casa em diante.  No meio das lutas tribais, seu marido foi baleado e segue vivo, mas em coma.  E ele tem de ficar em casa, não há hipótese de deslocá-lo ou obter um tratamento hospitalar.  Nessas condições, sobreviver vai ser muito difícil, mas quem sabe possa lhe oferecer a possibilidade de conversar com ele e abrir seu coração. Vocês estão casados há dez anos, mas ele não a conhece e nem imagina o que já se passou com você ao longo desses anos, ou antes deles.  Se ele não puder ouvir, pelo menos você fará uma terapia para aliviar sua carga tão pesada de vida.



Mas, à semelhança do trabalho de Pedro Almodóvar no filme “Fale com Ela”, de 2001, é possível ter esperança de que, falando com ele, enquanto provê o soro e cuida de seu corpo, a vida possa retornar e, quem sabe, em outras bases, ao menos no relacionamento conjugal.

É por aí que vai o filme do escritor e cineasta afegão Atiq Rahimi, nascido em Cabul em 1962, que vive na França, onde estudou e trabalha, com dupla nacionalidade.  Sua história remete ao Afeganistão.  “A Pedra de Paciência” foi escrita por ele e roteirizada em conjunto com Jean-Claude Carrière, um dos mais destacados roteiristas do cinema francês.




É uma narrativa tocante.  Vivemos a vida de uma mulher desamparada, que só pode contar com uma tia.  No entanto, para procurá-la, tem de se aventurar nas ruas belicosas da cidade, onde a morte ronda a todo instante, e não sabe o que encontrará quando retornar.  Pode ter sua casa invadida por soldados, terá sempre o risco de ser estuprada, desrespeitada, e a burca que a cobre inteira não a protege de nada.  Apenas a oprime.  Mas ela é forte.  É uma personagem que briga pela vida, sob as condições mais improváveis.




A jovem atriz que vive essa mulher é Golshifteh Farahani, brilhante num papel em que ela trabalha sozinha a maior parte do tempo: fala a um homem inerte.  Ela salienta a luta dessa personagem e a sua força, muito mais do que a sua desgraça ou falta de perspectivas.  Isso dá ao filme uma dimensão extremamente interessante e nos envolve com a personagem.  E ainda nos dá uma boa noção do que é viver em alguns países do mundo tomados pelas invasões estrangeiras, pelas guerras internas, pelos fundamentalismos étnicos e religiosos.  Quem sofre são as pessoas simples do povo, a quem não se dá o direito de uma vida minimamente respeitável, digna, corriqueira.  De uma vida humana, enfim.


terça-feira, 12 de agosto de 2014

AMANTES ETERNOS

Antonio Carlos Egypto




AMANTES ETERNOS (Only Lovers Left Alive).  Estados Unidos, 2013.  Direção e roteiro: Jim Jarmusch.  Com Tilda Swinton, Tom Hiddleston, Mia Wasikowska, Anton Yelchin, John Hurt.  122 min.


Uma história de amor que dura séculos, como a de Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton) não chega a ser surpresa, num filme de vampiros.  Adam and Eve?  Seriam os vampiros mais ancestrais do nosso planeta?  Não importa muito. 

O que mais me chamou a atenção no filme “Amantes Eternos”, de Jim Jarmusch, foi o modo como ele trata das velhas e conhecidas questões vampirescas que sempre estiveram presentes na história do cinema e nas suas constantes atualizações.



Vampiros do século XXI , refinados e sofisticados, já não saem por aí atacando as jugulares das pessoas.  Que coisa mais primitiva e arriscada!  Muito mais elegante e atual é subornar um profissional de saúde de um bom hospital, o que garante não só a boa qualidade do sangue, como já o entrega devida e adequadamente embalado para transporte e armazenagem.  E, em vez de se lambuzar todo de sangue, que tal sorvê-lo convenientemente em pequenas taças, como se faz com o melhor vinho?  Também é possível inovar e fazer picolés de sangue em forma de sorvete, mantidos no congelador.

Vampiros sofisticados será que ainda têm medo de alho?  Não se vê alho no filme e, a não ser por uma frase en passant, o assunto já não se coloca.  E aquela história de cruzes e outros símbolos religiosos, capazes de destruir os seres vampirescos?  Esqueça, isso é um papo antigo, que lembra o período medieval das caças às bruxas.  Bem, é claro que os vampiros se lembrarão não apenas desse episódio histórico, mas de muitos outros que eles viveram nos últimos quinhentos anos.  Só que o mundo mudou e eles mudaram, também. Hoje, os medos e os perigos que os envolvem são outros.



É preciso evitar a luz solar, viver à noite, afinal, isso é da natureza dos vampiros por todos os séculos.  Mas um risco maior, atualmente, é o do sangue contaminado.  Especialmente num mundo globalizado não se pode consumir qualquer sangue, não.  Isso, sim, é capaz de pôr fim à existência de um vampiro que, por exemplo, foi contemporâneo de Shakespeare e, como ele, escritor: Marlowe (John Hurt).

O problema também é que nem todos os vampiros alcançam o nível dos nossos protagonistas.  Ava (Mia Wasikowska), a irmã mais nova de Eve, é um caso sério: é bagunceira, nunca se sacia e não resiste a uma jugular atraente.  A ponto de matar seu fornecedor.  Uma coisa é morder e vampirizar a presa, outra, é matá-la.  Tudo tem limite.



Quanto aos zumbis, os mortos-vivos que convivem com os vampiros, eles podem estar em qualquer lugar, seja na indústria do cinema, em Los Angeles, seja na indústria fonográfica, e atrapalhar muitas coisas.  Mas também podem ser muito úteis em diversas situações, como a relação entre Adam e Ian (Anton Yelchin), que aparece no filme, demonstra. 

Essas são questões que surgem no filme “Amores Eternos”.  Eu pincei algumas das que me pareceram mais atraentes.  Elas perpassam a história de amor, dando-lhe um sabor especial (epa!).  Não significa que façam do filme uma comédia.  “Amantes Eternos” tem muito humor, mas se desenvolve num registro sério e romântico, até com baixo astral.  Adam, por exemplo, é um vampiro sofisticado, que compõe e adora música e instrumentos musicais maravilhosos e especiais, mas é um ser desanimado com a vida, depressivo.  Coisas que acontecem com o passar de tanto tempo.  Só mesmo o reencontro com Eve poderá mudá-lo.  Então, não espere agilidade, rapidez, correria.  Afinal, os vampiros têm todo o tempo do mundo, quando o sangue está à disposição e devidamente armazenado.  Essa estabilidade será rompida e aí as coisas se complicam.  Nem por isso o filme se acelera, mas o suspense cresce.

Se você gostou do que apresentei neste meu relato, não vai deixar de ver esse filme, claro.  Se você acha tudo isso irrelevante, tente uma outra estreia cinematográfica.  Simples assim.




terça-feira, 5 de agosto de 2014

O MERCADO DE NOTÍCIAS


Antonio Carlos Egypto




O MERCADO DE NOTÍCIAS.  Brasil, 2013.  Direção e roteiro: Jorge Furtado.  Documentário.  94 min.


“O Mercado de Notícias”, o documentário de Jorge Furtado, visa a discutir critérios e práticas jornalísticos, defender o bom jornalismo e o importante papel que tem na consolidação da liberdade de expressão e da democracia e, também, avaliar como a notícia é produzida, manipulada e difundida, enquanto negócio, o seu poder, os riscos que tudo isso envolve e o futuro da profissão.

Contou com a contribuição de treze importantes jornalistas brasileiros, que apresentaram sua visão dessas questões em entrevistas e depoimentos.  São profissionais de grande porte e experiência: Mino Carta, Jânio de Freitas, Luís Nassif, Raimundo Pereira, Paulo Moreira Leite, Bob Fernandes, José Roberto Toledo, Geneton Moraes Neto, Maurício Dias, Leandro Fortes, Cristiana Lôbo, Renata Lo Prete e Fernando Rodrigues.


JÂNIO DE FREITAS


O documentário, porém, não se resume só às falas dos jornalistas e a alguns vídeos esclarecedores de situações tratadas na conversa.  Há, também, o resgate de uma peça de título homônimo, “Mercado de Notícias”, no original, “Staple of News”, escrita por Ben Jonson, em 1625, que teve sua primeira tradução realizada agora, por Jorge Furtado e Liziane Kugland.  Trechos da peça são lidos e encenados, com roupas de época e tudo, e fazem a delícia e a originalidade desse filme. Ben Jonson, grande dramaturgo da renascença inglesa, contemporâneo de William Shakespeare, a escreveu nos primórdios da existência da imprensa e surpreende pelas questões que constata e prevê.  É impressionante a atualidade da peça.



Ela aborda um personagem jovem, Pila Jr., cujo tio Pila lhe deixa uma herança polpuda, desde que ele seja capaz de conquistar a bela e rica Pecúnia, ou seja, o dinheiro e o poder.  A dama é cortejada por muitos e tem como servas Hipoteca, Norma, Promissória e Taxa.  A novidade em Londres é o recém-criado mercado de notícias, um negócio que  parece muito promissor.  Emoções e novidades, que constituem o cerne da notícia, são o objeto de venda.  Custam mais ou menos caro, conforme o interesse do comprador.  As notícias podem ser aumentadas, inventadas, modificadas, se os compradores assim o desejarem.  A venda de fofocas é um sucesso, naturalmente.  E o departamento comercial é criado para ditar o rumo da produção e distribuição das notícias.



Na peça de Ben Jonson, fica evidente a denúncia da mercantilização da informação, num período imediatamente posterior ao nascimento da própria imprensa.  Ali já havia trambicagem, manipulação, venda de notícias por dinheiro e a maquiagem da informação.  Ao mesmo tempo em que mostra a valorização e, portanto, o poder, de quem detém a notícia.  Apresenta a discussão política sobre o interesse constante pelo dinheiro nesse negócio e como ele transforma a informação e relativiza a verdade.  Colocações incrivelmente atuais e que não se esperava que já estivessem tão claras no século XVII.

O filme de Jorge Furtado mostra alguns exemplos contemporâneos e brasileiros dessa manipulação das notícias.  Um caso marcante e já bastante citado é o das “denúncias” de abuso sexual na Escola Base, de Educação Infantil, que destruiu reputações e é emblemático do poder demolidor que pode ter a mídia.

Outro exemplo é o da famosa bolinha de papel que atingiu o então candidato presidencial José Serra e foi noticiada como agressão com um objeto pesado, com direito a ida a um pronto-socorro e realização de exame tomográfico.  Diferentes vídeos de várias emissoras de TV, por ângulos diversos, exibidos no filme, mostram claramente que era mesmo só uma bolinha de papel e levantam dúvidas sobre quem a teria atirado. Sempre estiveram disponíveis, mas essa “investigação” não interessou aos grandes órgãos da mídia naquele momento.



Chega a ser hilário um outro caso relatado: o da presença de um desenho original de Picasso, ornando uma sala do INSS.  Merece atenção e foi pouquíssimo divulgado.

Enfim, o filme “O Mercado de Notícias” é uma excelente oportunidade para refletir sobre o jornalismo e o consumo da notícia na atualidade.  Ajuda-nos a perceber ao que podemos estar expostos numa absorção ingênua da informação manipulada.  Valoriza a busca da informação qualificada, fruto de investigação e verificação, que é fundamental para a vida moderna.  E a separar o que é notícia, necessariamente dependente dos fatos, do que é opinião ou interpretação ideológica dos acontecimentos.  Ou seja, a colocar cada coisa no seu devido lugar.

Mais um ótimo trabalho de Jorge Furtado e da Casa de Cinema de Porto Alegre, que já nos deram filmes como “Ilha das Flores”, curta de 1989, “Houve Uma Vez Dois Verões”, de 2002, “O Homem que Copiava”, de 2003, “Meu Tio Matou um Cara”, de 2004, e “Saneamento Básico, o Filme”, de 2006.