sexta-feira, 2 de setembro de 2016

AQUARIUS


Antonio Carlos Egypto




AQUARIUS, Brasil, 2015.  Direção e roteiro: Kleber Mendonça Filho.  Com Sônia Braga, Maeve Jinkings, Irandhir Santos, Humberto Carrão, Carla Ribas.  143 min.



A personagem Clara, em grande desempenho de Sônia Braga, é uma mulher-coragem, que não hesita em desafiar interesses poderosos para preservar seus direitos.  No caso, o de habitar um apartamento do qual ela cuida com carinho, de frente para o mar, na praia de Boa Viagem, em Recife.  Num ambiente aconchegante e cercado de produtos culturais, principalmente livros e LPs de vinil, ela vive sua vida tranquila de viúva, jornalista e escritora aposentada.  Seus três filhos adultos já estão fora de casa, vivendo suas próprias vidas.

Seu direito fica ameaçado por uma empresa de engenharia que resolve demolir o prédio onde ela mora e construir lá um novo empreendimento.  Compra todas as unidades, mas Clara não está disposta a vender a sua.




Nesse confronto, que se estabelece porque os interesses em jogo são incompatíveis, Kleber Mendonça Filho vai construindo uma trama que revela os múltiplos aspectos das relações que permeiam a sociedade brasileira, sua história, os conflitos de classe e de poder, o caráter autoritário que a posse e o dinheiro trazem, o vale-tudo que acaba sendo gestado para impor e obrigar decisões que contrariam direitos individuais.  E mais: mostrar quem pode mais, a qualquer preço, com a disposição de se utilizar da violência mais abjeta.  Isso se faz, no entanto, sob a aparência de cordialidade.  Ou seja, do homem cordial a serviço da opressão.  Para tentar resistir a isso, é necessária uma tenacidade absurda.  Há um sistema que sustenta tudo isso e fragiliza o indivíduo na luta por seus direitos.  O que torna a resistência uma questão política fundamental.

Há outras questões humanas que permeiam essa narrativa, envolvendo elementos como o câncer e o preconceito, o desejo e a pornografia, as relações familiares e os interesses de cada um, o respeito a uma reação obstinada que a todos pode parecer enlouquecida, a avalanche de uma religiosidade que também oprime e por aí vai.




“Aquarius” alonga sua história para recheá-la da complexidade das relações humanas e sociais e possibilitar uma reflexão séria sobre a realidade brasileira dos dias atuais.  Torna-se um produto oportuno e importante, nesse momento grave que o país vive.  Não podemos ser governados por simplificações grosseiras, ódios e pelos interesses mais inconfessáveis.  Temos de encontrar nosso eixo, nosso rumo, superando atavismos históricos terríveis.  Em “O Som Ao Redor”, de 2013, o diretor Kleber Mendonça Filho já havia apontado nessa mesma direção e partido também das questões urbanas da modernidade, onde os arcaísmos se escondem.

O filme tem uma trilha sonora forte e expressiva, composta quase totalmente pela MPB da melhor cepa que hoje, em tempos digitais, já pode ser considerada antiga.  Mas é magnífica.  Tal como a figura da personagem Clara, a quem a trilha, de certo modo, descreve.  Destaque para a canção “Hoje”, composição e interpretação de Taiguara.





“Aquarius” foi exibido no Festival de Cannes e teve grande repercussão, não só pela qualidade do trabalho, mas também pela manifestação que a equipe do filme realizou no tapete vermelho, denunciando ao mundo o que estava ocorrendo na política brasileira.  Isso incomodou muito os que estão agora no poder.  Por conta disso, pode deixar de ser indicado como o nosso representante, na disputa pelo Oscar de filme estrangeiro, uma indicação que ele, sem dúvida, mereceria.  



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